sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Trabalho e docência


Afinal de contas, em que consiste o trabalho de um docente na esfera estatal?
Temos de dizer que somos contratados pelo Estado, não é exatamente uma instituição pública, no sentido do controle público, mas no sentido de um controle estatal em que a sociedade, de alguma forma, acredita que o Estado tem a delegação para cumprir.
Por outro lado, os mecanismos de controle do trabalho em parte diferem das instâncias privadas, mas, de maneira geral são parecidas às formas com que os trabalhadores são coercitivamente conduzidos para objetivamente cumprirem com as metas da produção – ressalvando o fato de que cumprirão até o momento em que permanecerão rentáveis, ou seja, técnica, tecnológica e mercadologicamente conforme os interesses de produção, competição e venda.
O processo burocrático é a grande investidura do trabalho docente no âmbito da esfera estatal.
Como uma grande empresa, o Estado é o maior contratador do país, mas por várias razões, o planejamento estatal para com ele mesmo é sempre um problema confuso. Como programar uma empresa que tem como função estabelecer a dita “justiça social” por meio de uma sociedade civil que se empenha para a sua própria autodestruição com as relações de mercado e alienadas?
Todos acusamos o Estado de ser uma entidade gigantesca e sem possibilidade de individualização, mesmo assim a sua indiferença perante o trabalho é uma espécie de abstração que não se sustenta a não ser por conta das leis de mercado.
Em última instância, mesmo que o Estado brasileiro seja o braço de sustentação do capital em todas as suas nuances, e que sua presença é ostensiva, sua determinação na relação com os seus empregados obedece cegamente às leis de mercado.
Isto nos revela que os indicadores da economia nada mais são do que balizadores dos mecanismos da relação de trabalho assalariado, portanto, o Estado não é capaz de avançar e de propor qualquer superação, disso estamos concordantes.
E como trabalhadores temos um duplo caráter, de um lado somos trabalhadores como quaisquer que estejam lançados pela mão invisível do sistema e de outro, somos o próprio Estado. Isso demonstra as contradições em que estamos metidos.
As velhas formas institucionais que regulam o trabalho estatal estão com os dias contados. Isto quer dizer que a estrutura patrimonialista da sociedade brasileira, que também deitou raízes no serviço público e no Estado não se sustentarão por muito tempo, dadas as condições em que a economia setorializada imporá a todos novas formas de gestão para apurar os ganhos e gastos numa balança de equilíbrio econômico-financeiro.
Dessa forma, a universidade, na qual muitos ainda depositam as esperanças iluministas de uma formação humana ampla, em que sejam os alunos preparados para superarem problemas, é uma ilusão de ótica. Talvez nossa visão míope, não nos deixar observar o que a História tem mostrado sobejamente de modo a nos convencer de que estamos diante de uma universidade que sucumbe de modo atroz às condições de mercado.
Na defensiva desde o começo do século passado, os trabalhadores não foram capazes, em âmbito global, de oferecer alternativas, a não ser as de manterem-se na defesa diante de um sistema absurdo. E por isso, fomos historicamente convencidos de que dependemos do capital, mas exatamente o contrário, é o capital que depende exclusiva e peremptoriamente do trabalho e do trabalhador.
E os partidos trabalhistas em todo o mundo nada mais fizeram do que administrarem, a partir do lento mas gradativo distanciamento de suas bases, hoje, ironicamente, nada mais são do que tentativas de gestores do capital e sua crise. As elites parece terem percebido que seria mais cômodo delegar aos trabalhistas do mundo todo a gerência de um modelo que está em crise há tempos.
Essa greve nos ensina muitas coisas. Deve nos mostrar que temos, novamente, um longo caminho de reflexão sobre o contexto total das relações engendradas pelo processo de produção de valor.
Mesmo assim, sinto que é promissora toda a experiência. É promissora porque há um grupo que se colocou no processo, apesar de todas as dificuldades que emergiram durante esses meses. E acredito mesmo que temos ainda energia para continuarmos com o movimento porque é preciso. A greve está aí e não podemos nos deixar levar por informações desencontradas.

sábado, 7 de abril de 2012

Capitalismo e Caretice

Se estamos pensando que vamos derrubar o capitalismo com esse comportamento careta, pastoso e sem espírito, estamos redondamente enganados. A nossa forma social em que parece haver uma espécie de permissividade que a tudo corrompe é uma grande falácia. Somos extremamente regressivos, chatos, pedantes, consumidores por excelência, conservadores que desejam manter as relações sob certos padrões ambientados, obedientes a uma estrutura apoteótica que nos subsume. E o pior é que esta subsunção ainda nos dá prazer e uma suposta dignidade.
 
Nossos corpos tatuados não são exatamente uma ordem à revolução corporal. A diversidade cultural garante mais e mais a nossa estimulante condição de direitos à mediocridade. Nossas profissões compulsórias não nos permitem um voo para além e acima das formações sociais que nos oprimem. 
Até o consumo das drogas nada mais é que um reflexo da ação cega e indivisível da sociedade que produz o valor e o autovaloriza ao infinito.
 
Imaginar que uma sociedade pós-capitalista será organizada, arrumada, limpa, obediente, absolutamente consciente de suas necessidades e obrigações, estamos, na verdade, a sonhar com um mundo que já existe, o mundo da obediência, o da mediocridade, da selvageria e especialmente da escravidão.
 
Sem poesia e erotismo e a sem paixão da recriação de nós mesmos, não haveremos de superar o capital e seus tentáculos linguísticos, sociais e políticos. Não podemos deixar de reconhecer que nossa sociedade é chata, sem brilho, sem perspectivas. Perdemos o tesão de conhecer e recriar o mundo, deixamos isso a cargo da sociedade produtora de mercadorias e seus preclaros administradores.
 
Falta-nos a compreensão da nova percepção de um mundo que deve ser destruído e não estrangulado pela tecnocracia. Pela força criadora de um propósito que não se aliena ao mundo idolatrado do trabalho social abstrato. Precisamos de novas deusas, divas, ninfetas. Precisamos rever nossos rumos. Há 300 anos, o que há de novo é a instituição da miséria. O desencanto nos persegue. A angústia é nossa companheira. A culpa pequeno-burguesa e cristã inunda nossa consciência, somos inquilinos dessa consciência petrificada do capital em nós.
 
Nossa história não nos dará qualquer trégua. Daqui a 200 anos seremos julgados pela nossa covardia. Não haverá compaixão, talvez alguma compreensão sobre nossas idiossincrasias. Somos uma sociedade fracassada. Nossa caretice nos denuncia socialmente.

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Uma tentativa de refletir o problema da NECESSIDADE

Atanásio Mykonios


Querido Rosenil

Embora o tema suscite uma série de questionamentos, penso que alguns elementos podem ser distinguidos no problema relativo à NECESSIDADE. Não tenho por costume dissecar um texto como se fosse eu um legista da contrariedade. Prefiro o grande debate sobre algumas ideias que percorrem o nosso diálogo, apesar de saber que em parte, as divergências têm um caráter na histórica leitura realizada pelos movimentos operários que tiveram inspiração no pensamento de Marx, por vezes fragmentado - pensamento exotérico.
 
A questão que me interessa, sobretudo, está no âmbito do Capitalismo. A NECESSIDADE entendida no interior de um sistema que, no meu modesto entendimento, inverteu o processo dialético da necessidade.
 
Inicialmente, as considerações feitas por você acerca da NECESSIDADE se encontram no campo de uma, digamos, ontologia dessa categoria. Para alguns setores da antropologia, da filosofia e da sociologia, sem contar as várias frentes da psicanálise e psiquiatria, tratam a NECESSIDADE como um elemento dado, conjuntural à espécie humana, condicionado às formas geográficas ou culturais. A NECESSIDADE como um elemento constitutivo do ser humano, parte de sua natureza intrínseca. 

A naturalização das necessidades.
 
Sim. Isto é um fato, mas não é sobre este fato que me debruço. O ser humano é uma espécie que se relaciona com a natureza por conta de sua NECESSIDADE. Essa relação é histórica e dialética, como pude apresentar em um artigo publicado no CEMARX, da UNICAMP, em 2010.
 
Nessa relação, o homem constrói sua história e faz a cultura. Em cada etapa histórica, a sociedade cria formas de extrair da natureza sua sustentação. Sem a natureza, penso, o ser humano não é, em qualquer possibilidade, não é nem será humano.
 
Mas o problema é que no capitalismo os indivíduos se situam entre dois polos do processo. Para isso, é importante compreender que o capital não se estrutura apenas pela concentração de riqueza e a exploração, especialmente pela não distribuição da riqueza. Durante muito tempo, e ao longo do século XX, as esquerdas lutaram pela distribuição da produção, criando a ideologia de uma justiça social da igualdade sobre do que era produzido, sem considerar o modo como tudo era produzido. Ou seja, pouco se voltou a atenção para o princípio ativo do sistema, o trabalho abstrato e o valor sobre valor, engendrando o mundo fantasmagórico das mercadorias.
 
Assim, o processo produtivo que é, na realidade, a condição sine qua non do capital, a autovalorização sob qualquer determinação, cria uma realidade na qual os indivíduos não mais têm controle sobre esta. A forma-valor inverte o contexto da necessidade, pois não é mais uma cultura que determina o que é ou não necessário, não mais a história de uma cultura que cria o espírito da necessidade. Mas é um sujeito histórico sem face, a sociedade do valor e da mercadoria. Nem mesmo podemos dizer que se trata de um conflito político entre os que querem e têm e os que não têm nada.
 
Os indivíduos, as instituições, os estados, o ordenamento jurídico, os sindicatos, os partidos e até as igrejas passaram a se submeter ao modo de produção do valor, que guia a ação e a consciência dos indivíduos. No primeiro capítulo de O Capital, Marx apresenta esse processo de forma magistral.
 
A reificação do processo social, a cultura, a linguagem, a estrutura das relações humanas, tudo isso está subsumido ao modo da autovalorização, uma obediência cega.  Além disso, o homem está preso a esta realidade, porque está entre a produção de valor (cega e autoritária, que reivindica tudo para si) e de outro lado, ele tem à sua frente nada mais nada menos que o mundo das mercadorias.
 
E o pior é que ele imagina ter a autonomia para decidir sua própria necessidade. Daí a característica social de culpabilizar os indivíduos pelo consumo exacerbado, como se estivéssemos num frenesi incontrolável e devasso do consumo.
 
Apesar de ser o mesmo indivíduo que se situa na relação, ele se divide em dois. Ele é, ao mesmo tempo, um trabalhador que produz valor sobre valor (e não exatamente coisas) e é, também, paradoxalmente, um consumidor, que adquire, não coisas para a sua necessidade (seja ela cultural, espiritual, simbólica, social, familiar ou pessoal), mas apenas mercadorias, que o transformam em coisa como as coisas que consome.
 
Essa cisão é o grande problema da complexa forma social adquirida por meio de um modelo que não é somente econômico.
 
Essa dura realidade é, por vezes, escamoteada ou é tratada como uma espécie de desonra à dignidade humana. Pois, onde já se viu nós nos compararmos às coisas que consumimos? Entretanto, não passa disso mesmo, desonrados, nada somos a não ser seres que reproduzem automática e cegamente um modelo social, imaginando que temos alguma autonomia para mudar o curso do capital. O capitalismo não é um motor distante, que não atinge a cultura, não atinge a linguagem, a gramática social, que não influencia a religião ou os mitos. Ao contrário, ele está em toda parte.
 
Então, qual é o problema político? Está na ordem do conflito estabelecido pelos mesmos indivíduos. Ora trabalhadores, ora consumidores. Mas esse é um dos conflitos políticos, não o mais importante, talvez, nem o mais insignificante.
 
Harry Cleaver, pensador americano, nos diz que a batalha política ocorre no interior do processo de produção, ali onde há uma hierarquia, onde há a necessidade de decidir o que se produz, quando, em que condições, para quem e como isso é distribuído. Isso vale tanto para uma linha de produção em larga escala, como para uma pastelaria ou um setor aparentemente não produtivo, burocrático. Mas no caso em especial, minha preocupação é acerca da luta encravada num mesmo personagem, dividido socialmente, entre produtor (e não entendamos aqui o proprietário) e o consumidor.

Como bem você mencionou, a política é um processo entre grupos e seus interesses.

A minha questão que é um problema contemporâneo, do qual não tenho uma resposta, nada próxima, por sinal, é até que ponto podemos compreender um enfrentamento do problema da NECESSIDADE no conflito entre as duas categorias sociais, compostas pelos mesmos indivíduos, a saber, trabalhadores e consumidores, uma vez que ambos constituem a contradição do mecanismo social do capital.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Uma interpelação acerca do último texto

Por Rosenil Barros Órfão*


Oi Grego... obrigado pela oportunidade da reflexão e do debate.... porém longe de querer desconstruir qualquer proposta... então lá vai...

Tenho dúvidas se a NECESSIDADE, seja um problema político. Me parece que o mundo da política dialoga com a cultura e nasce com a cultura. Isto se dá quando os grupamentos humanos começam a se organizarem com elementos cognitivos e não mais somente pelo instinto animal. Este é o momento que antecede a fala (palavra, verbo, nome de coisas, sinais emitidos com deferência a determinado algo, etc..) e a comunicação inicia um novo estágio. Começa a trajetória do sujeito. Inicia-se o fenômeno de poder dizer as coisas. Obriga-se, o primata, a refletir. Inicia-se a possibilidade do "pensar-se" para dizer. Aquilo que você chamou em um seminário que participamos de "vitória da razão" e no seu texto, lembrando a utopia iluminista: "emancipação da razão".

Tenho afirmado em meus diálogos ao "vivo e a cores" na atividade política, que esta é uma atividade sobre humana. Ou seja, não é uma atividade sobre-natural. Porém é acima de possibilidades humanas. Porém é uma tarefa de homens, não de deuses, se é que eles existam. E para executá-la com humanidade, somente é possível se for construída e exercida coletivamente no espaço geográfico concreto, e acessível, do primata tornado sujeito.

Espaço geográfico concreto e acessível é o que determinamos por território. Lugar onde ocorre a produção e a reprodução da cultura e tudo que a envolve, inclusive nossa nova condição de sujeito. Como por exemplo este primata, um pouco mais complexo, que voz fala. E tu que me ouve (lê). (mais complexo ainda... rsrsrs).

A política se estabelece para atender aos interesses que constroem as relações neste território. Porém, para ser exercida, e permanecer enquanto atividade política, deve fazê-lo de modo a garantir as necessidades. As necessidades são direitos básicos. Direitos básicos é aquilo que é necessário, ou seja, não é contigente dentro do universo social ou do território que se vive.

Se estes argumentos são válidos, posso afirmar que a necessidade é algo inerente ao nosso existir natural, primata, contrariamente ao que tenta determinar o mercado e a ideologia dominante, conforme você reflete, muito bem em seu texto.

Quando nos tornamos sujeitos, entramos em conflito, este com certeza permanecerá. Porém a NECESSIDADE, é algo que nos humaniza e nos prende ao nosso natural, e somente a partir dela que poderemos garantir interesses mais legítimos e em sintonia com nossas NECESSIDADES. Por conta disto a necessidade da luta política. (Fora esta questão da luta política que introduzo, temos acordo até agora, me parece).

Mas a luta política ocorre na arena da cultura enquanto espaço, e de nossa subjetividade enquanto materialização. A materialização da política se dá, então, de modo objetivo, em nossas ações e na adequação concreta de nossos interesses às nossas NECESSIDADES.

Neste sentido cabe ao primata, agora elevado a sujeito e promovido a animal político, tocar sua existência e acumular condições humanas para viver plenamente a satisfação de suas NECESSIDADES.

Aqui que gostaria de provocar um pouquinho. Pois não dou de "barato", com maior respeito a Adorno, que a política obrigatoriamente está subordinada às forças de e do mercado. Mesmo com a capacidade do sistema capitalista em criar "necessidades", e de algum modo, através de sua linguagem dominante, dominar vontades e interesses, esta força não transfere ao sujeito consumidor e ao mesmo sujeito trabalhador, suas contradições. As contradições me parecem ficar como predicado do sistema. E este sistema continua criando as condições para sua própria destruição.

Entendo que devemos aprofundar esta questão, e talvez, torná-la mais didática e mais acessível. Pois o problema da NECESSIDADE, que na verdade não é um problema, pois é da nossa natureza, pode vir a ser uma boa estratégia de apresentação de soluções políticas.

Quero dizer com isto que sua percepção, de ver na superação das NECESSIDADES, uma demanda ou um problema político pode ser a chave para valorizarmos nossa capacidade de viver e conviver com nossas necessidades.

Se isto é possível, fica claro a afirmação de Marx: o socialismo sé é possível na abundância. Neste sentido temos condições de promover o aprofundamento do debate atual sobre as "reais necessidades" para o sistema de produção e reprodução econômica e cultural, que deve deixar de ser abundante na criação de novas necessidades e ser mais eficaz na organização da política para sintonizar interesses e necessidades.
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Caro Grego.... não estou muito disciplinado para uma argumentação acadêmica... acho que o dia a dia do diálogo político me faz escrever e falar de modo um tanto desmedido.... mas mesmo assim gostaria de sua resposta... caso tenha conseguido me fazer entender....

Grande abraço.
Rosenil.

* Texto enviado por Rosenil Barros e que merece ser publicado em sua totalidade para que possamos responder e os leitores seguirem o debate acerca das ideias aqui propostas.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Necessidade, liberdade e submissão


Atanásio Mykonios

A necessidade revela, no atual contexto, uma objetividade que implica a sociedade das mercadorias, como seu fundamento. Theodor Adorno nos mostra que a totalidade que atingiu o sistema, impregna o mundo da subjetividade, pois está em jogo, também, uma crítica do sujeito e seu papel político na sociedade que produz mercadorias e cria uma naturalização desse processo, assim,

Quanto mais impiedosamente a sociedade se traveste de forma objetiva e antagonística até o cerne dessa situação, tanto menos se pode garantir qualquer decisão moral individual como uma decisão correta. O que quer que o singular ou o grupo empreendam contra a totalidade da qual eles são parte é contaminado pelo mal relativo a essa totalidade; e não menos quem não faz nada. No que diz respeito a isso, o pecado original se secularizou." (Adorno, 2009, p. 204)

Essa reflexão oferecida por Adorno nos remete à questão da crítica da necessidade, no sentido em que a ideologia da sociedade das mercadorias, em sua totalidade, assume um caráter decisivo na inversão em que se situa a consciência e a prática dos indivíduos. No pensamento adorniano, percebemos que o homem não é o sujeito, mas o seu produto se tornou historicamente o seu sujeito e que o conduz socialmente. Esse pensamento se reveste de uma vasta e rica compreensão das formas pelas quais o mundo da produção, da técnica, da ciência e tecnologia arrancam do indivíduo sua condição humana.  

Herbert Marcuse enfrenta o problema de uma estrutura imposta pela sociedade industrial, que abdicou de sua capacidade de impor a si mesma a reflexão para além de si mesma. Isto é ainda mais feroz se considerarmos o fato de que os fins são por eles mesmos, fins, tornando-se uma espécie de tautologia incondicional. Se havia, no início do processo industrial capitalista, uma oportunidade para a sua própria superação, a história nos mostra que, na atualidade, a oposição a esta forma social se tornou ridícula.

Se tratarmos desta questão, o capitalismo, na produção de mercadorias, impõe a necessidade absoluta. Este sentido absoluto leva a uma eliminação das contradições sociais em todos os seus âmbitos, cuja consequência é a criação de um ambiente de aquisição cega e que afeta as relações humanas. Seria de esperar, a propósito, que as condições de produção, sustentadas pela arrancada das pesquisas científico-tecnológicas, em consonância com as pressões das várias formas de concorrência (estrutural, mercadológica, salarial, empresarial, científica, trabalhista, sindical, estatal e de conhecimento) promovessem um amplo espectro de necessidades especializadas e, sobretudo, complexas.

Ao invés de criar as reais condições para a superação das necessidades, à medida que o ser humano tivesse possibilidade de se libertar das amarras sociais da necessidade desenvolvida pela expansão do valor, o sistema ultrapassa essa possibilidade e coloca um impasse na evolução do próprio sistema produtor de mercadorias. Naturalizando todas as necessidades, temos então a descaracterização de um processo que é, em suma, dialético – a relação entre o ser humano e a natureza e ambos com o processo social que, em última instância, atua sobre o político. Essa naturalização atinge os extremos do processo social, tanto o trabalho, que se torna absolutamente necessário, como o modo pelo qual se adquirem e se satisfazem as necessidades humanas. E nesse sentido, a ação política de ambos os lados, trabalhadores e consumidores, se torna difusa e contraditória. As ações políticas têm como pressuposto não os interesses sociais, mas o interesse do mercado.

Quem exerce o desencadeamento político não mais é a autonomia social, como mediadora da relação entre o humano e a natureza, mas a produção infindável de mercadorias, o próprio valor que exerce essa função, incinerando todas as construções históricas do processo da necessidade. Nesse sentido, Marcuse (1973, p. 24) salienta que

A liberdade de empreendimento não foi de modo algum, desde o início, uma vantagem. Quanto à liberdade de trabalhar ou morrer à míngua, significou labuta, insegurança e temos para a grande maioria da população. Se o indivíduo não mais fosse compelido a se demonstrar no mercado como um sujeito econômico livre, o desaparecimento desse tipo de liberdade seria uma das maiores conquistas da civilização. Os processos tecnológicos de mecanização e padronização podem liberar energia individual para um domínio de liberdade ainda desconhecido, para além da necessidade. A própria estrutura da existência humana seria alterada; o indivíduo seria libertado da imposição, pelo mundo do trabalho, de necessidades e possibilidades alheias a ele; ficaria livre para exercer autonomia sobre uma vida que seria sua. Se o aparato produtivo pudesse ser organizado e orientado para a satisfação das necessidades vitais, seu controle bem poderia ser centralizado; tal controle não impediria a autonomia individual, antes tornando-a possível.

Marcuse sugere um controle da produção destinada à satisfação das necessidades básicas. Considera que as liberdades individuais seriam ainda mais potencializadas, desde que houvesse a garantia das estruturas de produção. Mas, em que medida poderíamos garantir apenas a satisfação vital? Essa é uma das questões consequentes do problema político proposto por esta pesquisa. Os mecanismos atuais podem suprir as necessidades fundamentais, no entanto, o gatilho da produção de valor é contrário a esta ideia. O poder político para construir uma síntese social a fim de orientar as necessidades é um desafio importante que merece ser aprofundado nesse estudo.

Trata-se de supor uma sociedade organizada por meio de um governo capaz de ordenar e oferecer as condições mínimas a todos os indivíduos. Mesmo assim, seria necessária uma imensa força de controle e uma submissão a uma convenção social que transcende as consciências atualmente constituídas para a competição exacerbada e a individualização das necessidades.

A civilização industrial contemporânea demonstra haver alcançado a fase na qual a “sociedade livre” não mais pode ser adequadamente definida nos termos tradicionais de liberdades econômica, política e intelectual, não porque essas liberdades se tenham tornado insignificantes, mas por serem demasiado significativas para serem contidas nas formas tradicionais. Novas modalidades de concepção se tornam necessárias, correspondendo às possibilidades da sociedade. (Marcuse, 1973, p. 25)

As possibilidades são como que, um vislumbre de Marcuse. As novas modalidades convergem para dois aspectos cruciais. A incontestável colonização de todas as formas sociais pela sociedade das mercadorias e, conjuntamente, as liberdades institucionais que garantem o consumo, até para além do trabalho assalariado.

A liberdade de consumir está diretamente ligada ao contexto das decisões intrínsecas ao capitalismo, tanto no sentido de sua macroscopia quanto no que se refere aos microorganismos que sustentam as relações dessa modalidade de existência social. Decisões constituídas por políticas de Estado, concentrações de poder, legislação ordenadora das condições de produção, circulação e consumo; provimento das empresas que mantêm a produção em larga escala, ideologia dessa sociedade industrial; fortalecimento dos meios de comunicação; tecnicismo apuradíssimo, tecnologia tautológica e ciência maquiada pela imensa generosidade em favor da espécie humana.

Por outro lado, a microscopia social garante a liberdade em termos mais sutis de controle e exploração. A começar pelas relações de trabalho, hierarquizadas necessariamente para que a produção prossiga, as forças de coerção para o trabalho e, especialmente, para a conformidade para manter um exército em prontidão, com o discurso da inconformidade do não-trabalho; as veladas incompreensões do meio doméstico; a ascensão da mulher nos meios de trabalho e de produção; os discursos engavetados pela estrutura cartesiana da espacialidade desvinculada, ou, a metafísica dos costumes dos discursos sem enredo relacional; os grandes modelos de investidura pessoal, que assumem a máscara do bem comum e se tornam referências para o mundo do consumo.

Ainda assim, tais liberdades são condicionadas. Não temos clareza acerca delas, ou como se constituem como expressão da racionalidade. Aliás, é na sociedade do Iluminismo que encontramos a grande utopia da razão, pois acreditamos que haveria condições de realizar a liberdade por meio da consciência emancipada.

Mesmo assim, há algo de aproximado entre o Iluminismo e a teoria marxiana, na medida em que ambos consideram a vida consciente como um dado fundamental para enfrentar a necessidade como problema dado à liberdade. Marx (2006) acreditava que a emancipação do proletariado, àquele momento, figura central do capitalismo industrial, se daria pela luta contra o capital, pela tomada do poder do Estado e também por uma construção histórica da consciência de sua própria condição de classe social explorada.

Daqui se depreende que todas as lutas no seio do Estado, a luta entre a democracia, a aristocracia e a monarquia, a luta pelo direito de voto, etc., etc., são apenas formas ilusórias que encobrem as lutas efetivas das diferentes classes entre si (aquilo de que os teóricos alemães nem sequer suspeitam, se bem que sobre isso se lhes tenha mostrado o suficiente nos Anais franco-alemães e na Sagrada Família; depreende-se igualmente que toda a classe que aspira ao domínio, mesmo que o seu domínio determine a abolição de todas as antigas formas sociais da dominação em geral, como acontece com o proletariado, deve antes de tudo conquistar o poder político para conseguir apresentar o seu interesse próprio como sendo o interesse universal, atuação a que é constrangida nos primeiros tempos. (p. 20)

O fetiche da forma-mercadoria, segundo Marx (1983) impede que os indivíduos tenham a nitidez acerca do que os oprime, os objetos falam por si, assumem a condução das relações humanas, na mesma medida em que são reproduzidos por uma lógica do sistema, acima da determinação individual.

Para reter o ouro como dinheiro e, portanto, como elemento de entesouramento, é necessário impedi-lo de circular ou de dissolver-se como meio de compra, em artigos de consumo. O entesourador sacrifica, por isso, ao fetiche do ouro os seus prazeres da carne. Abraça com seriedade o evangelho da abstenção. Por outro lado, somente pode subtrair da circulação em dinheiro o que a ela incorpora em mercadoria. Quanto mais ele produz, tanto mais pode vender. Laboriosidade, poupança e avareza são, portanto, suas virtudes cardeais, vender muito e comprar pouco são o resumo de sua economia política. (p. 253)

O automatismo das relações não possibilita a observação do real movimento da necessidade e, por outro lado, a atividade produtiva cria uma subjetividade que os indivíduos se coloca no mundo, traduz essa realidade naquilo que Lukács chama de reificação, isto é, a coisificação da vida, das relações humanas, objetivando um modo abstrato de produção e trabalho. A reprodução automática, a dominação sem sujeito e sem face que qualifica a mercadoria como elemento estruturante da vida esvazia de conteúdo as possibilidades decisórias especialmente no campo político acerca das necessidades.

Assim, a sociedade produtora de mercadorias não pode mais responder à questão acerca das escolhas, uma vez que ao considerar a liberdade de adquirir mercadorias, está-se reportando à decisão dos próprios indivíduos, que não depende apenas de sua vontade, há outros fatores que concorrem para esse fato, o político é o que significativo nesse sentido. O capitalismo impõe uma aporia que, neste gênero de crítica social, assinala a impossibilidade de escolher com consciência histórica nossas próprias necessidades

Citações
ADORNO, Theodor W. Dialética negativa: conceito e categorias. In Dialética negativa. Tradução de Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.

MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial: o homem unidimensional. Tradução de Giasone Rebuá. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973.

MARX, K, ENGELS, F. A ideologia alemã. Tradução de Álvaro Pina. Lisboa: Editocoes Progresso Lisboa; Editorial Avante, 2006. Disponível em http://www.marxists.org/portugues/marx/1845/ideologia-alema-oe/index.htm, acesso em 4 de fevereiro de 2012.

MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Vol. 1, Livro Primeiro: O processo de produção do capital, Tomo 1. Tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Blog Crítica da TV

Queridos amigos do Blog.


Após algum tempo de reflexão, decidi incorporar uma nova página, CRITICA SOCIAL DA TV.

Me parece que não é possível mais compreender o tempo atual sem um olhar atento aos movimentos da TV. O processo social da comunicação envolve interesses globais de mercado e poder. As ideologias do poder das corporações e dos estados convergem para a programação da TV. Será que teremos possibilidade de penetrar os meandros de um processo social de criação de imagens em um mundo marcado pela imagem instantânea que insere a venda de produtos de forma absoluta?

Não se trata, com isso, de um olhar moral sobre a TV, mas de uma crítica necessária às condições com que o capitalismo se desenvolveu tendo como braço de divulgação a TV. Por isso, é fundamental refletir sobre as condições em que são impostos os determinismos da programação e especialmente pensar que como um produto de valorização do mercado, a TV não sabe fazer outra coisa a não ser vender.

domingo, 22 de janeiro de 2012

A barbárie contra todos os Pinheirinhos


Atanásio Mykonios



Pinheirinho é aqui! Pinheirinho é todo o lugar onde a barbárie do capital investe contra os pobres. O mundo é aqui. Toda a história dessa sociedade se encontra na contradição essencial da produção de mercadorias. Todos os paradoxos convergem para o que está acontecendo em Pinheirinho. Sua gente não é diferente de todas as gentes do mundo. Quem pode proteger os pobres contra a barbárie das forças de segurança institucionais?
A justiça, o Estado, a instituição, qualquer coisa que represente as relações sociais se move com o intento de proteger o dinheiro e a valorização do valor. E isso expulsa os pobres da cidade, empurra-os para os lugares de risco, para as terras sem valor, até que sejam alvos de nova valorização.
O sonho da cidade que transborda em indiferença aproxima todos para a sobrevivência. Agora, nesse mesmo momento, alguns dormem, outros assistem à TV, alguns jogam baralho, muitos no silêncio que o domingo nos oferece. Mas a cidade parece abrigar a todos, mas de formas diferentes, a crueldade e a perversão com que os mais fracos são tratados na cidade é algo que não se revela, porque as ruas não mostram tudo.
Mas não é possível calar diante da atrocidade imposta pela lógica social do valor. Nada parece poder barrar essa lógica, porque os indivíduos não existem, são apenas conformidades momentâneas à realização absoluta do valor-dinheiro.
O deus supremo investe sobre os ímpios, indolentes  incrédulos. Aos que tiveram o azar de nascerem no infortúnio das relações sem-valor, são lançados no inferno sem chance. Cabe à polícia, aos governos, aos equipamentos de segurança, aos exércitos, às igrejas, às escolas, controlarem os pobres, reprimirem suas manifestações, seus desejos de liberdade.
Poderão consumir e manter-se nos liames desde que não invadam os espaços limpos que a estetização da mercadoria faz resplandecer. O entretenimento faz com que os sentidos fiquem submersos e entorpecidos, assim todos poderão viver no conforto das emoções sem saída, cuja determinação expressa a condição dos seres humanos sem qualquer distinção para a sua própria individualização e humanização.
Pinheirinho nos mostra a intolerância com que a sociedade produtora de mercadorias enfrenta os problemas de seus indivíduos. A justiça, no mundo do valor de troca está acima dos pobres. Mesmo com o empenho do Estado em introduzir ou incluir os pobres no bolo da acumulação do capital, não haverá tantos pedaços para todos.
E para toda essa repressão, a burocracia tem o papel do carrasco social a serviço da ordem e da lei. Que sejam todos desapropriados, que sejam todos lançados à rua, que todos paguem em conformidade com a lei. Destitua-se o humano! Quem estiver em desacordo, é efetivamente excluído.
Ao olhar para o alto e para o horizonte, tenho pouco a dizer. Minha ânsia por justiça se transforma em protesto de palavras. Que ao menos penetrem a consciência.
Pinheirinho não é nada sem as pessoas que nele vivem. É preciso resistir contra esse sistema!

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Para Elis

Atanásio Mykonios

Quanta saudade!
A arte é filha da liberdade. O artista deve assumir seu ser no mundo, lançando-o para que o mundo receba o que ele tem a oferecer. Talvez, por isso, é que tantos se sentem atraídos pela arte, talvez pela imensa possibilidade que ela nos dá – a liberdade pulsa pela arte e seu fundamento é criação.
Seu olhar, sua história, sua miséria, a arte revela-nos o que somos por nós mesmos. O mundo se refaz e sobre o mundo outros mundos são criados pela arte. Ela não é uma manifestação espiritual, é a instância suprema da existência humana, a ânsia da liberdade absoluta e o gesto angustiado da criação que bate à porta dos seres humanos para lhes manifestar que não veem nem sentem.
Alguns artistas absorvem o mundo em sua criação. Outros percebem com sofreguidão as agruras do mundo, anteveem o fim de um mundo e o começo de outro. Alguns se retiram do mundo e da sociedade quando intuem que não haverá mais lugar para eles. A obra de arte contém a história e a sensibilidade humana, não menos atenta aos problemas e à riqueza da cultura.
Mas poucos são os artistas que realmente mergulham na consciência da arte e da liberdade. Poucos são os que assumem visceralmente a arte a ponto de se entregarem a ela e aos seres humanos. Poucos foram os que, como Elis Regina, foram consumidos e consumados pela sua própria arte.
Ela nos deu um facho de luz, nos colocou em rota de colisão com a emoção que a arte nos oferece. Trágica, interpretou o mundo com seus olhos e os deu para que pudéssemos vê-lo por dentro de sua consciência. A inquietude foi sua marca, transpirada pelo olhar brilhante e certeiro.
Obrigado Elis.
Por aqui, a vida está muito chata! A música e a poesia estão mais pobres. A metáfora parece que deixou de existir. Descrevemos fatos e emoções, mas não sabemos criar pontes. Queimamos todas as nossas pontes, porque o mercado é quem manda na arte, até para além e aquém da indústria cultural.
Por aqui, o bêbado e a equilibrista estão nos subsolos das grandes cidades. Como os nossos pais, pouca coisa mudou e pouco pudemos viver. As prisões estão cada vez mais lotadas. Os pobres e seus gritos ecoam por toda parte. Pinheirinho é o símbolo de uma sociedade marcada pela indiferença da produção de mercadorias.
Seu sorriso me faz falta. Sua voz imensa e profunda, larga e oceânica me cobre o corpo e as lágrimas se misturam à saudade.
Vida e obra, morte e arte. Elis, uma estrela que ainda brilha na arte. Não importa o tempo, a ausência é sentida!

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Prazer e horror na sociedade produtora de mercadorias

Atanásio Mykonios

Parece que a degradação humana não tem limites. Os seres humanos são lançados à própria sorte e sobre eles há o peso da destruição e do abandono absoluto. A intoxicação dos indivíduos revela, de forma ainda mais cruel e trágica, a intoxicação social e todos os seus veios. O temor pela catástrofe se junta à ansiedade pela realização plena dos sujeitos, como se o mundo terminasse amanhã.
Vivemos um paradoxo estranho na atualidade. De um lado, a educação social para o prazer se estende para todas as formas de consumo, para todas as condições de comportamento, especialmente para o afetivo e as escolhas individuais. A sociedade educativa nos educa para o prazer, mas não tem controle sobre ele, ela sabe o que fazer até que o prazer siga os padrões para a sua aquisição, mas não se sabe como agir sobre o próprio prazer. Esta contradição é latente.
O prazer é um dos elementos mais significativos dessa sociedade – cotidianamente, o prazer nos interpela. Somos convidados a experimentar o prazer de várias formas. A publicidade deve estimular-nos a um prazer em expectativa, ou seja, a ser realizado quando da aquisição de mercadorias. Os estudos se aprofundam nessa área, há um esforço interdisciplinar para atender as necessidades do mercado.
A própria mercadoria, em si, carrega sua metafísica com o escopo de atrair para si a atenção necessária a fim de que seja consumida, mas não sem prazer nem realização pessoal.
Não podemos nos esquecer do prazer que a comida nos dá. As contradições se apresentam de forma crua. Ao mesmo tempo em que comer é um ato necessário à manutenção de nossa constituição, é uma ação de grande valor social e estético. A sociedade brasileira está comendo cada vez mais, estamos socialmente mais obesos, não mais felizes, de alguma forma, porque a obesidade conflita com a estetização da sociedade produtora de mercadorias.
E convivemos com o inferno das drogas que nos têm dado ainda mais prazer. Prazer que é escamoteado socialmente e tratado de forma moral. Cabe aos indivíduos decidirem a respeito de seus prazeres, alguns são lícitos, outros devem ser proibidos. A vida miserável dos sujeitos sociais é destinada ao cumprimento cego de uma determinação compulsória e abstrata – trabalhar e consumir.
Somos adictos socialmente, nossa perversão não nos contentamos em controlar os indivíduos, é preciso colonizar seus corpos e suas consciências. O sonho de atingir um estado livre de consciência, desde Platão se tornara um objetivo formal especialmente do Ocidente. A liberdade do corpo implicaria liberdade absoluta da consciência. Estar livre é viver no reino do prazer sem limites e nesse sentido, a consciência é o lugar para que isso fosse efetivado.
Mas eis que o prazer tem nos dado outra face de horror. A iminência do prazer tem causado grandes transtornos psíquicos em pessoas que se sentem ameaçadas pela perspectiva do descontrole face ao prazer. Ele nos é oferecido e, mesmo que seja uma estratégia de mercado estimular as sensações e o prazer ao extremo, é fato que o prazer é algo que nos iguala.
Temos de considerar, ainda, a questão da demonização do prazer. Ele nos é oferecido e espera-se que os indivíduos, à moda de Kant, tenham autonomia para não aceitarem seu oferecimento que, a rigor, o identificamos com uma espécie de demônio que sabe de nossas fraquezas e nos engana, se aproveitando de nossa condição de incautos. Nossas necessidades se confundem com o prazer de que necessitamos para satisfazer outras tantas necessidades.
O prazer permanece no horizonte social. Mas a culpa também nos persegue. Somos todos perseguidos pelo fantasma que nos assombra. O fantasma do prazer com várias faces, um monstro que nos instiga ao descontrole.
Por exemplo, a mesma sensação que o açúcar nos dá é perseguida pelos diabéticos com os alimentos dietéticos. O que importa é sentir a mesma coisa e o mercado produz de tal forma que o prazer é reproduzido indefinidamente. O açúcar faz mal ao diabético, mas o prazer não.
Assim é com o crack. A dependência química é um fator que nos mostra a devastação herdada com o uso do crack. Mas é um dos elementos da questão. O acesso mercadológico da droga fez com que as camadas menos favorecidas tivessem condições de consumir o crack.
E com isso, assim como o fato histórico de que na sociedade atual são os indivíduos responsabilizados pelo próprio consumo e por suas necessidades, os usuários de crack são deixados à própria sorte. O tratamento, proporcionalmente, é infinitamente inferior às necessidades quantitativas de resgate dos indivíduos adictos.
Estranhamente, os indivíduos são acompanhados até adquirirem o prazer, mas ao consumirem-no, são abandonados de modo absoluto. Se cada um se tornar um esquizofrênico, um idiotizado ou um culto, não importa mais ao mercado. Caberá aos psiquiatras, aos sacerdotes, aos médicos e aos policias tratarem dessa devastação social.
Ao desbaratar a comunidade de usuários da Crackolândia, a cidade de São Paulo se viu diante de uma realidade que para ela era parecia invisível. Os usuários também têm outras necessidades, eles comem, bebem, dormem e espalhados se tornaram um problema.
Isso revela um aspecto interessante na sociedade produtora de mercadorias. Quanto mais o valor baixa, em função dos processos produtivos, mais o prazer se espalha, diga-se, o prazer proposto pela sociedade produtora de mercadorias. Nesse sentido, não podemos deixar de considerar que a produção de crack é, em última instância, produção de mercadoria, barata ou não, é mercadoria e que revela a face absurda do processo produtivo.
Não faz diferença se estamos submetidos a um bombardeio de prazeres instantâneos ou se seremos obrigados mergulhar em uma espécie de refletirmos tantricamente sobre nossa existência. O prazer será nosso companheiro daqui para frente.
Viver na perspectiva do fim do prazer é tão temerário quanto a sua escassez.
Teremos de viver com uma avalancha de mercadorias e um universo de prazeres. Ao que tudo indica, todo o prazer do mundo será um modo de instituição de uma civilização do prazer, até que a exaustão do capitalismo nos coloque na decisiva fase em que teremos de refletir sobre as necessidades impostas pelo prazer.

domingo, 1 de janeiro de 2012

O não-senso de nós mesmos

Atanásio Mykonios

Mas o que as pessoas querem ou o de que de fato precisam? De que precisam pode não ser a realidade de sua própria consciência. É possível que as reais necessidades sejam, na atualidade, apenas de ordem subjetiva. Ou, em outras palavras, conforme o que podemos objetivamente dizer, as necessidades estejam na esfera da decisão puramente pessoal. A auto-ajuda, o pensamento religioso, as demandas por um manual de instruções sobre o que fazer e como fazer. O discurso das grandes formas está impregnando o pensamento e o pensado. Não parece mais haver distinção entre ambos e especialmente estamos presos ao espetáculo absoluto. A absolutização do modo banalizante das relações é uma norma não mais relativa, parece uma lei que não permite nenhuma tergiversação.
Mais uma vez alguns são atirados ao abismo da cegueira social sem que haja condições de atingir a totalidade. A loucura silenciosa é uma companheira fiel de alguns, contra a imensa maioria anestesiada pelo torpor de uma vida insana e sem reflexão alguma. A raiva e o sentimento de impotência são constantes, certo voluntarismo sempre volta às possibilidades da consciência, mas tudo isso não passa de uma grande ilusão. A liberdade que segue no horizonte como u-topos nada mais é que uma miragem. As cartas estão postas à mesa tragicamente, alcançamos os objetivos tão caros à modernidade iluminista, avançamos sobre a natureza com a voraz petição do progresso da modernização capitalista, fincamos as bases da idolatria ao trabalho como forma de libertação das massas consumidoras, ativamos as condições de destruição dos indivíduos pela competição.
Mesmo assim, não estamos bem. A tristeza está por toda parte, a angústia que não tem nome, não tem face, não tem dono, permanece como inquilino absurdamente preso à nossa consciência vadia. São raros os momentos em que a experiência humana ganha o sentimento oceânico, nada parece mais importar a não ser o estar presente no presente sem qualquer história. O sujeito real da história não são as culturas ou os indivíduos, mas apenas uma constituição absoluta que abstrai às pessoas sua real possibilidade como indivíduos. Sentimentos humanos se confundem com os sentimentos construídos pela necessidade do ser social que ora não passa de uma fantasmagoria metafísica.
A política não mais existe. Mesmo antes das grandes guerras, havia o prenúncio de que o ato fundamental do Estado estava a serviço da relação econômica substancial – a produção de mercadorias. E quando chegou de forma definitiva a revolução científico-tecnológica com o fito de promover a mudança que faltava para o processo de produção, a política nada mais representava a não ser um jogo teatral que pudemos distinguir se se tratava de uma comédia, uma tragédia ou um drama de mau gosto. Mesmo com a derrocada do Estado democrático, do Estado socialista, do Estado fascista, o que importa é a noção de que o Estado serve peremptoriamente ao mundo ordenado juridicamente pelas abstrações do trabalho e do dinheiro absoluto. A tristeza é a marca de um mundo despolitizado até a raiz.
E a preguiça social graça como regra orgulhosa dos sujeitos sociais. Pessoas têm dificuldades em concentrarem seu próprio cérebro em favor de alguma atividade intelectual. Ler tornou-se um esforço descomunal e é preciso que toda leitura seja marcada com imagens que facilitem tal esforço. A ideia de alguma coisa não pode se fixar por muito tempo, como uma mercadoria que não deve sofrer o aprofundamento de suas mazelas, a leitura requer dos indivíduos uma atitude de desconfiança.
O que querem as pessoas ler? Ora, não sei, não posso mais distinguir. A crítica social parece perder seu sentido num mundo absolutamente recheado de insignificâncias e absurdidades sem qualquer racionalidade a não ser a racionalidade intrínseca que penetra o consciente inconsciente de todos. Por isso, a revolução pela liberdade virá, quiçá no âmago da exaustão humana, quando não mais houver saída para a alienação, o espetáculo, o grotesco da existência, quando não mais houver sentido no não-sentido, quando todas as formas da mediocridade não traduzirem o medíocre dos seres humanos ou, quando, de alguma forma, formos reféns da barbárie. Talvez quando estivermos banalizados pelas relações pessoais, reduzidos a meras formas disformes de um mundo de reprodução do nada para o nada, poderemos então perceber o vazio que nos toma por dentro vindo do mundo que fomos capazes de idolatrar.
Mas temo que apenas quando a família, o Estado, a propriedade, a religião, a educação e a política desabarem por completo, quando os discursos sociais e o comportamento encapsulado dos indivíduos forem de tamanha contradição que não mais poderão se sustentar. Quando as promessas não mais se cumprirão aí poderemos voltar a atenção a nós mesmos para além do que há a nos escravizar e do qual não temos qualquer controle.