terça-feira, 28 de agosto de 2007

PARA UM SENTIDO ACERCA DO ENSINO DE FILOSOFIA

Por Atanásio Mykonios

O ensino de Filosofia se tornou uma realidade, particularmente no Estado de São Paulo. Por meio de um decreto oficial, o Ensino Médio, o EJA, alguns projetos de Ensino Integral, além da perspectiva de que as escolas privadas incluam Filosofia em seus currículos, hoje há uma demanda que exige uma série de considerações e que estava reprimida devido a um histórico de autoritarismo que caracteriza nossa realidade. A começar pela possibilidade da própria Filosofia figurar como uma matéria com o mesmo estatuto que as demais disciplinas que vogam nas grades curriculares, temos os mesmos direitos que os físicos, químicos, letratos, lingüistas, biólogos, matemáticos, etc. É provável que não estivéssemos preparados para atender a esta demanda, que foi brutalmente reprimida ao longo de todos os anos de regime militar.Os governos ditatoriais cometeram um crime de lesa pátria ao serem extremamente eficientes em solapar a educação de base e transformar o ensino acadêmico em mera correia de transmissão das necessidades técnicas do então “milagre brasileiro”. Some-se a isto o fato de que nossa Escola não está preparada para a democracia, para a liberdade, para a diversidade social. Mas o ganho substancial que ora observamos é que as massas penetraram a escola por meio da democratização de acesso, no entanto, nossos cursos superiores permaneceram fechados, conservadores e elitistas, ofereceram um ensino hierarquizado, baseado nas formalidades de relação entre professor e aluno. Mesmo que a Escola tenha tentado heroicamente abrir caminhos nos processo de ensino e aprendizagem, nossas comunidades permanecem no veio histórico característico da nossa cordialidade, o autoritarismo disfarçado de cinismo social, mascarado pelo tapinha nas costas e pela grande capacidade de fingirmos que não temos problemas.Há inúmeras indagações acerca do ensino de Filosofia nas escolas públicas, encontros, reflexões, material em profusão é continuamente destilado a fim de darmos resposta a um problema que aflige os professores de Filosofia, a saber, a final, o que fazer em sala de aula? Como manter a honra da Filosofia com seu cabedal e a tradição de séculos, que vararam mais de dois mil anos de história do Ocidente. Ainda não sabemos como lidar com as reais condições da sala de aula e criar uma seqüência programática, parece, de certa forma, refletir a dificuldade em encontrar um ensino metodológico. Afinal, o que é melhor oferecer à 1ª série ou à 2ª série? Sócrates, os naturalistas, Platão, Aristóteles e sua Metafísica ou a Ética a Nicôcamo? Quando poderemos abordar o sistema hegeliano com os alunos da 2ª série, a dialética e o processo do real? E quanto à Escola de Frankfurt, nossos alunos terão algum dia o direito de conhecer aspectos sobre a Dialética do Esclarecimento, sobre a Indústria Cultural ou, quem sabe, a crítica a nossos valores ocidentais, feita por Nietzsche, Para além do Bem e do Mal? É bem verdade que nossas salas de aula são o retrato do pandemônio, e aqui não me refiro a um ou outro docente que tem a sorte de encontrar uma sinergia com suas turmas, de modo geral, estamos submetidos a um inferno que espelha o colapso institucional da Escola. Quem sabe devamos nos especializar em terapia filosófica grupal!Mesmo assim, insistimos em oferecer um inventário sobre os filósofos e suas escolas, isto é importante, mas como poderemos criar nos alunos o gosto pelo pensamento alheio se a própria Filosofia, até agora, não me parece ter sido capaz de oferecer um olhar original sobre a nossa própria condição, sobre o homem e sua realidade, o homem brasileiro, este homem que foi exaustivamente abordado por muitos campos de atuação brasileiros. Trata-se de reconhecer a universalidade e a originalidade do pensamento alheio, mas este está visceralmente vinculado a um contexto e a uma cultura. Fomos educados a não fazer uma ponte entre nosso contexto e a Filosofia, que parece flutuar incólume pelas nuvens ideais que se movem, mas em nalgum momento, elas descem ao chão. Por outro lado, quantos de nossos alunos conhecem nossos filósofos brasileiros mais importantes?Estamos diante de um problema estrutural que exige uma apreensão política da questão, pois de um lado temos a Filosofia como campo de pesquisa que avança assustadoramente em águas cada vez mais profundas, sendo que muitos dos nossos teóricos são internacionalmente reconhecidos por sua competência, por sua dedicação e empenho. De outro lado, encontramos o ensino de Filosofia que é dado pelas escolas oriundas da igreja católica, que têm por tradição situar a Filosofia como um apêndice institucional para a formação de um contingente de sacerdotes que, via de regra, não permanece na estrutura eclesial e migra para o campo da licenciatura, compondo assim um enorme exército de ex-seminaristas, ex-padres, ex-freiras, freiras (com todo respeito a esses profissionais!) os chamados leigos que estudam nessas escolas e que estão na sua grande maioria a lecionar Filosofia nas escolas públicas. Ou, por outras instituições cujas identidades não se mostram estruturadas para a pesquisa, mas tentam desesperadamente um lugar no mundo do pensamento filosófico. A burocracia e a estrutura exigidas fazem da Filosofia serva dos mecanismos produtivos. Qual a conseqüência? Um fosso enorme. As escolas da igreja não preparam para um senso crítico, apenas para um senso tomista ético, sem grandes repercussões e comprometimento, nossos professores se vêem manietados em torno de determinadas correntes e as pesquisas consagradas na grande academia jamais chegarão às salas de aula, a não ser daqui a 200 anos. E quando ingressamos na estrutura estatal de ensino temos poucas noções acerca de filosofia da interrogação, apenas, como bem disse Bertrand Russel, tratamos de enfatizar a filosofia da felicidade e da conversão, típica de um modelo de pensamento que vem da tradição aristotélica que fundou, de alguma forma, nossa cultura intelectual, no período colonial. A Filosofia moderna é vista com certo receio. E as escolas pesquisadoras aprofundaram a leitura a ponto de se afastarem desta realidade que urge e grita, a Escola de base.Então podemos dizer que há duas Filosofias no Brasil? A Filosofia dos especialistas e pesquisadores, os que se tornam referência filtradora dos grandes estertores da produção do Ocidente e a Filosofia do baixo clero, que se empenha desesperadamente em oferecer alguma luz para os milhões de alunos que entopem as escolas, que, por seu turno, se transformaram em depósitos de gente humana?Muitos filósofos migraram para outras áreas, especialmente para a Educação ou para a Psicanálise, a História, enfim. Isto pode indicar que há áreas de atuação que nos parecem mais promissoras do ponto de vista prático quanto aos resultados. Hoje, a Filosofia, esta Filosofia do baixo clero está sendo empurrada para pensar a si mesma no campo da Educação e aquilo que lhe é próprio é deixado para a grande Filosofia. Os problemas da Educação permanecem, são a expressão de um modelo social, que impõem à escola a promessa de que pela Educação seremos salvos, mas não poderá ser cumprida no futuro. A Escola está formando um exército que jamais servirá para o propósito de sua promessa. Prometemos especialmente aos pobres que a Escola é o lugar e a morada da inclusão pelo trabalho, isto está em franca decadência. A honra perdida da Escola!Daí sermos obrigados a discutir as questões relativas à Educação e ao ensino de Filosofia, pela via da Filosofia da Educação, estamos em um campo relativamente minado, porque não temos a condição de atuar conforme o que é precípuo à Filosofia, problematizar todo o contexto social, político e ético da Escola. Creio ser importante perfilar a discussão no campo do domínio da Educação, pois o que fazemos em sala de aula é, em última instância, Educação, mas também é preciso aprofundar nossa realidade, avançar, interpelar a Escola, seus agentes, sua comunidade, provocar a reflexão sobre as questões emergentes tanto quanto aquelas de perspectiva.O estatuto da sociedade contemporânea está prestes a receber um carimbo de impasse formal, uma vez que as condições de reprodução do sistema estão a provocar reflexões de fundo acerca do processo produtivo, do consumo, do trabalho, da tecnologia e sobre a exploração dos recursos e sua conseqüente exaustão. Em outras palavras, necessidade e tempo serão dois elementos que farão parte do nosso cardápio pedagógico muito em breve, no entanto, ainda não adquirimos a consciência de que estamos diante de escolhas sociais que obrigatoriamente deveremos fazer. Achamos que estas escolhas recairão sobre nossos netos, mas estamos enganados, pois vivemos o olho do furacão!Muitas vezes entramos em sala de aula como se o mundo estivesse pronto, acabado, com seus paradigmas formados e o futuro garantido, e tentamos nos proteger como domadores de leões metidos na arena da estupidez. Lecionamos nossos conteúdos filosóficos com vistas a um passado de conceitos, idéias, silogismos, estruturas éticas e políticas das quais não nos damos conta de que o mundo é o aqui e agora e que nos aponta para problemas reais dos quais não devemos nem podemos nos furtar, sob pena de sermos absolutamente engolidos pelos acontecimentos, a ponto de nos tornarmos anacrônicos e sem qualquer possibilidade de intervenção concreta sobre este mundo.De modo geral, é possível observar que a Filosofia e seu ensino no chão das salas de aula tem se arrastado como outras disciplinas, estas, mais legitimadas por uma sociedade ávida por ciência, por respostas pragmáticas, cujos conteúdos são oferecidos com vistas à preparação técnica e em virtude dos vestibulares. Mas a Filosofia! Ora, não encontra espaço na Escola, está confinada a um decreto que obrigou a uma mudança na grade curricular, mas, de certo, a sociedade ainda não se convenceu de sua “utilidade”, a não ser no sentido de ensinar a pensar e a oferecer certos preceitos éticos metafísicos que servem a um tipo de sociedade apartada dos problemas sociais e mergulhada e uma profunda desigualdade social.Aprender ética em uma sociedade cujos parâmetros de classe são abissais requer um exercício de engessamento da realidade a fim de colocar todos os espíritos manietados em uma mesma fôrma conceptual, e isto me parece ser um enorme exercício de fantasia especulativa, que se aparta da realidade. Por isto, o ensino de Filosofia não poderia, a meu ver, restringir-se a um punhado de enunciados nem no inventariar a trajetória do pensamento filosófico. Mas é preciso reconhecer que temos pouco a oferecer que não o nosso próprio esforço e dedicação, nosso empenho e a crença de que é possível marcar a diferença em sala de aula, pois nos HTPCs, nas salas de professores, nos corredores ou nos encontros de ADD, nossa ação se restringe ao ervanário comum e simplório do cotidiano social desta grande comunidade sem identidade que é a nossa Escola.Isto precisa e deve mudar! Talvez programas de formação social, de formação ética, de formação política, de leitura da realidade, de ampla discussão, de mudança de cultura e transformação do olhas sobre a realidade. Isto leva tempo!

sábado, 25 de agosto de 2007

O MORIBUNDO

Atanásio Mykonios


Um moribundo está na sala! Ele começa a feder, seu cheiro é uma podridão nunca antes sentida. Os homens e as mulheres se aglomeram para ver o moribundo, e mais, vivem dele, sonham com ele, nutrem-se de suas vísceras. Este moribundo está com a mortalha, em seu leito de morte, agoniza e geme, mas os que à sua volta permanecem, não se dão conta de que há algo de mais podre, a podridão humana que não se apercebe desse fim próximo. E todos se vêem manietados pelo forte odor exalado.
Quem é este moribundo à beira de uma morte anunciada? Por que os presentes insistem em não acreditar que sua morte é inexorável. Não se trata apenas de uma fatalidade, não! Não é uma fatalidade, essa podridão se espalha pelo corpo social, e seu estado putrefato nos indica que há algo a ser visto para além desse mundo fétido.
O novo sempre vem! Debaixo desse corpo moribundo que faz questão de se mostrar por inteiro, jaz em potência uma nova sociedade. No novo sempre vem! O casulo começa a se romper lentamente. A sociedade é este moribundo que agoniza e resiste em nome de uma vida que não mais lhe pertence. Seus órgãos e suas partes estão em convulsão, tudo nesse corpo é dor, sofrimento, um turbilhão de sensações e tristezas. Tudo é turvo e confuso. Cada parte do seu corpo começa a se decompor, partes que sempre mantiveram sua autonomia, como se fossem lugares próprios sem qualquer ligação com o todo. Esse corpo moribundo esta definhando! E com ele a Educação, com ele a escola e todos os seus paradigmas.
Não se pode entender o definhar da educação sem compreender o moribundo na sua totalidade, não se pode enxergar as forças que se movem para o fim de um tempo sem reconhecer que esse moribundo carrega em si a marca da crise e da transição. Nossa sociedade está doente! Esta é uma constatação aparentemente óbvia. Mas não nos parece tão óbvia a resposta que podemos dar a esse corpo doente. Como uma vida que precisa se manter, vemos razões suficientes para manter vivo o moribundo, com os remédios do passado. Não nos é lícito, em tese, diante dos paradigmas que nos deram a existência, deixar que o moribundo faleça, para algo novo surja. O falecimento é o fim e o fim parece não nos dar qualquer perspectiva para além desse aparente fim. E por que o cheiro do fim se aproxima? É preciso não perder de vista a grande confluência de uma sociedade que está em franca mudança, o novo sempre vem! Em todos os quadrantes há sinais visíveis de que a sociedade do capitalismo caminha para o colapso.
E o que a Educação tem a ver com isto? Definitivamente TUDO! Absolutamente tudo e mais um pouco. Em uma sociedade cuja crise atinge especialmente as estruturas da modernidade, todo modelo social da Educação Em uma sociedade cuja crise atinge especialmente as estruturas da modernidade, todo modelo social da Educação começa a feder. Tragicamente, uma sociedade sem perspectivas para o futuro, respondem com a barbárie no presente. E a Educação reflete peremptoriamente essa barbárie que crava no seio da modernidade a nossa incompetência para lidarmos com o novo. O novo sempre vem. Isto significa dizer que de roldão a Educação é levada e o único baluarte dessa estrutura a se manter de pé é a burocracia. Infelizmente a escola convenceu-se de que ela mesma se tornara a Educação. Ledo engano! A escola apenas carrega a Educação (parafraseando Martin Heidegger). Tornou-se assim um fim em si mesma, constitui-se em mestra e guia da sociedade, rompeu com a relação social intrinsecamente atada à complexidade da vida, para ser um lugar de adestramento social, erigindo para si mesma um altar em nome da sociedade do saber instrumental, servindo orgulhosamente à disciplina, ao condicionamento e à matança da liberdade e da criação.
Esta escola hoje não consegue respirar. Perdeu sua condição ontológica, sua existência começa a esgarçar a olhos vistos. Toda sua estrutura funcional apodrece paulatinamente, sem que ninguém consiga salvá-la e a Educação se torna apenas uma miragem no horizonte do passado. Sim, porque para o reacionarismo impotente e empedernido, nada mais esquizofrênico que tentar repetir um passado que nunca existiu, nem para esses que o defendem como sacerdotes de um culto sem sentido e sem deuses.
Os deuses estão morrendo, moribundos, estão colados ao corpo social que já fede e começa a se decompor diante dos presentes. Tudo isto se torna um jogo de horrores, no qual professores, alunos burocratas, escrivões, inspetores, faxineiros e faxineiras, compartilham dos campos de concentração que são as escolas atuais. Nosso mundo está em mudança, porém, o mundo da escola permanece como que em uma redoma, lugar privilegiado para as neuroses de um passado que não se repetirá nem em sonho, nem em realidade.

quarta-feira, 22 de agosto de 2007

A REPÚBLICA DAS CORPORAÇÕES I

Cinismo Social em Favor da Reprodução do Sistema


Por Atanásio Mykonios
Para uma Crítica Social




O Estado é uma entidade formalmente constituída a partir de uma
legitimidade social. Mas esta legitimidade se torna pretensa à medida que os
fantasmas tomam conta da prática social e dos mecanismos fragmentários do mundo
real dos negócios. Desde os primórdios da modernidade e com a chegada do modelo
capitalista de produção social, o Estado se tornou mais do que um simples
mediador entre contendores. Muito mais ainda do que promotor de justiça social.
As esquerdas compreenderam historicamente que o Estado deve ser tomado a bem das
forças revolucionarias e dos pobres, no sentido de promover uma ética
distributiva da riqueza; os burgueses passaram a defender o Estado como o grande
promotor, o avatar das liberdades da mercadoria. Por todo o século XX, o
Estado foi guindado ao modo de interesse social de partidos, grupos, ideologias,
sistemas, mas sobretudo, houve um sistema que venceu as contendas acerca da
dominação do Estado, este foi o capitalismo e sua força condutora que promoveu
um assolar da própria condição humana.
Lentamente o estado se torna uma
entidade fantasmagórica, um ente cujos meandros são expressão de seus corredores
frios, com salas com ouvidos, carimbos, olhares furtivos, burocracias,
jurisprudências, e uma aura espiritual que não pode ser apanhada com as mãos. As
pessoas somem, não têm face, não têm identidade, são protegidas pela formação da
pessoa estatal, que se estende à pessoa jurídica, uma concepção da sociedade da
mercadoria, que faz proteger aqueles que se constituem em gestores oficiais do
sistema, com suas empresas, produtos, etc.
Mas isto não é motivo para a
discussão atual. A questão que emerge é o fato de que a sociedade está
totalmente impregnada por um tipo de formação e organização que leva em conta as
corporações como entidades jurídicas das quais tudo pode ser atribuído, menos a
responsabilidade concreta acerca das grandes mazelas sociais. A sociedade está
marcada por uma republicanização das corporações, uma espécie de confrarias que
se estendem por todo o cenário convergente das relações econômicas. Tornaram-se
a coisa pública por excelência e neste sentido, o comportamento cínico e voraz
das entidades sem face e sem um responsável visível arrasta-se por todas as
estruturas da sociedade. Isto fica evidente à medida que os acontecimentos se
sucedem em todos os quadrantes das relações impostas pelo capitalismo e nada
mais parece ter um vínculo com a realidade. De outro lado, o modo pelo qual o
homem comum é vilipendiado em seus direitos mínimos e básicos revela uma espécie
de perversidade social da qual compactuam as corporações e seus gestores, em
toda sua conformidade com os interesses da expansão desenfreada da sociedade do
valor e de seus mecanismos sociais de controle e coerção. No ideário das
corporações, que são entidades jurídicas abstratas e que no entanto têm um papel
concreto no que diz respeito às relações de troca no mundo do capital, são
formalmente protegidas por um ordenamento jurídico capaz de fornecer a elas
instrumentos invisíveis de uma defesa que também se esconde nos meandros dos
corredores da burocracia socialmente estabelecida. Tudo ocorre como em um
espetáculo de horrores, em que os atores nada são a não ser sombras de algo que
não pode ser revelado na sua plenitude. O mundo se torna uma grande nuvem de
idéias que percorrem as consciências, penetra-as de modo obscuro e promove um
senso de injustiça sem que ninguém seja cúmplice ou responsável por
absolutamente nada. É talvez o modo pelo qual os legisladores, os gestores, os
mentores sociais encontraram para não revelarem sua própria face contida em
taras sociais que não podem ser reveladas na sua concretude. Mas o que isto
significa? Em grande medida, temos aqui a força e a marca de relações que estão
profundamente cindidas e pessoas que se vêem desprotegidas na sua magnitude. O
cidadão comum, que passa por agruras das mais diversas, só pode ter acesso ao
Estado por meio de corporações que se tornaram pontes e ao mesmo tempo fins em
si mesmas. Algo que se torna um fim em si mesmo perde a noção do real e do
concreto, escapa ao mundo das relações e torna-se um ser teratológico com a
única função de ser nutrido pelo exterior. A organização e o seu crescimentos
são silenciosos, mas eficientes, alastram-se como um reconhecimento em forma de
pacto social invisível... daí que não pode e jamais haverá no mundo social das
corporações nada além do que proteção e um comportamento que visa, por todos os
meios, compor-se com as lógicas internas do sistema, as instituições se
conformam ao mundo material para dele sugar seu sustento, e no atual sistema, a
forma-valor permanece como um gancho de reprodução social dos interesses das
corporações.
Há uma cultura que deitou profundas raízes, especialmente nos
paises da periferia do sistema, que necessitam de mecanismos de compensação
quanto à multiplicação do valor, e que prescindem quase totalmente do Estado
para cumprirem seus compromissos e negócios no mundo do valor e da mercadoria.
Some-se a isto toda a gama de sortilégios capazes de aprofundar a miséria, a
exploração e o cotidiano que esmaga as massas como baratas. As tragédias, os
assassinatos, os estupros, os roubos, a corrupção, o vilipêndio, o escárnio,
tudo isto se torna uma rotina de horrores contínuos e a banalização reflete o
fato de que o homem comum, o desempregado, o proletário, o professor, o
balconista, todos estão desamparados e não encontram qualquer forma de resposta
imediata aos seus desesperos. Se desejarmos resumir um pouco esta farsa social,
podemos dizer peremptoriamente que não há culpados em um sistema que dissolve
suas forças de dominação e exploração por entre os poros, abertos pela estrutura
de produção capitalista. Invisivelmente, os gestores vagam pelos corredores e
pelas reuniões, decidem e tomam a responsabilidade da reprodução, mas não os
encontramos face-a-face no mundo real. A burocracia social que foi absorvida e
assimilada pelo Estado moderno, não deixa de organizar o mundo em torno a uma
forma abstrata de conceber a justiça, mas que esta abstração nada mais é do que
a conformidade ao modelo social do valor e da mercadoria. Como mecanismos
teleguiados, os gestores corporativos, que sejam de qualquer denominação, como
gestores partidários, sindicais, religiosos, gestores de organizações
não-governamentais, associados, empresários, cooperados, associados, parece
estarem sempre isentos de qualquer responsabilidade diante as atrocidades
cometidas pelas suas representações dominadas formalmente pela expressão
jurídica contemporânea. A face oculta não se deixa mostrar em qualquer
circunstância e isto faz com que os indivíduos, em sua singularidade própria
sejam atirados à arena social da divisão do trabalho, do salário, dos serviços
prestados pelas corporações que se arvoram em bem-feitoras da humanidade, pois
consideram que seus serviços estão acima de qualquer suspeita. O que aparece é o
discurso cartesiano das gavetas subjetivas, o discurso da aparência, do
espetáculo, dos conceitos politicamente corretos e ditos por meio de uma espécie
de parcimônia, de elegância social e de lógica retórica.
Por isto, podemos
ver como as estruturas de gestão da coisa pública, bem como as condições de
encaminhamento das verdadeiras questões ficam engasgadas nas grandes salas
suntuosas do mundo jurídico que tem a seu favor o tempo do trabalho social das
grandes massas que ainda, de algum modo, fornecem o sustento dos gestores e de
outro, as próprias corporações que se afastam paulatinamente de sua verdadeira
função de servir a quem as de fato criou. O distanciamento nada mais é do que a
conseqüência formal da consciência burguesa em torno da mercadoria, que faz com
que a história seja perfeitamente incinerada e no lugar é colocada a forma-valor
e o éden desce do céu como um milagre do êxodo moderno, em forma de gôndolas de
supermercados suntuosos e nababescos. Somos um modelo social em decadência, pois
não se adquiriu a noção de uma sociedade em busca de justiça e de superação
deste modelo social, o que nos marca com indelével anomia. Todas as nossas
instituições, algumas com mais voracidade, enquanto outras totalmente
subsumidas, sucumbiram diante da expansão e da formação tautológica do sistema
capitalista. Mesmo que para isto seja possível sobreviver com um tipo de
discurso difuso e completamente alienado da realidade concreta dos indivíduos, a
perspectiva é sombria, por parte das próprias corporações, que nosso cinismo e
nossas taras sociais.
Nada disto parece mais incomodar as corporações, pois
cada uma, a seu modo, conforme seus interesses e práticas, institucionalizada
conforme seu público alvo, formalizam seu discurso em conformidade com o
fantasma que a todas seduz e as mantém em serena e hipnótica obediência social
em favor da forma-valor. São obedientes a si mesmas enquanto cumprem com seu
destino, isto é, o de realizarem a forma-valor em sua plenitude. A cada
audiência, a cada declaração, a cada justificativa, as corporações e seus
gestores caminham sobre as cabeças ceifadas pelos mecanismos de exploração da
forma-valor e o mundo se transforma em um grande calabouço de sofrimentos. Se a
classe média é incinerada em quedas de aviões ou se os pobres são alcançados por
balas inteligentes, as corporações permanecem incólumes e perfeitamente isentas
de qualquer responsabilidade, basta substituir os gestores caso a imagem pública
seja arranhada ou que a perspectiva de rentabilidade seja afetada pela crise
momentânea. As corporações contam a complexidade e fragmentação sociais para
diluir gradativamente a indignação das vítimas e transformar os processos em
contingências racionais, que se arrastarão por anos, sem que haja qualquer
resposta objetiva aos problemas por elas provocados.

A REPÚBLICA DAS CORPORAÇÕES II

Cinismo Social em Favor da Reprodução do Sistema

Por Atanásio Mykonios
Para uma Crítica Social




Paradoxalmente, quanto mais a ciência nos dá uma amplitude das condições
materiais de vida, criando expectativas falsas por nos colocarem diante de uma
pretensa autonomia e positivas quanto à nossa própria existência; quanto mais a
tecnologia nos impõe ritmos acelerados de relações com os outros seres humanos,
mais e mais somos mergulhados em um obscurantismo que parece ser a expressão de
um mundo sem face, de um mundo cujo poder está alienado das próprias condições
práticas do cotidiano e que se lança no sentido de escamotear a verdade com um
espetáculo violento em torno de uma única determinação, a determinação da
mercadoria. As corporações agem como se fossem guiadas por um chefe espiritual,
que não pode ser tocado, que nunca se materializa, mas deve ser seguido como um
ser que dita a distância regras sociais que nos impõem a indiferença e o
descalabro da miséria e do abandono. Não importa se somos mais ou menos
rentáveis, diante de uma determinada corporação, estamos perfeitamente
enquadrados no que posso chamar de perfeita alienação das relações humanas. O
humano perde seu verdadeiro sentido no confronto com as corporações e seus
membros-representantes as reproduzem com lealdade canina. Nada mais
representativo, a estupidez humana diante da revelação de que estamos contidos
em uma redoma protetora corporativa. A virtude social consiste, na atualidade,
em juntar-se a uma corporação, educar-se prodigamente para servir cegamente à
corporação e defendê-la com a hipocrisia necessária, apreendida na história
social sem história real. Mas os homens e as mulheres comuns, que não possuem
qualquer vínculo com essas organizações sentem-se totalmente atirados aos leões,
daí uma constatação que mesmo a contragosto é necessária diante deste holocausto
social, a de que todos buscam alguma forma de proteção diante da iminência de
ser literalmente tragado pelos dragões corporativos e isto não ocorre
tão-somente como os indivíduos avulsos, mas também entre corporações das mais
distintas.
A face
oculta do Estado é outro elemento que deve ser desmascarado. De algum modo,
todos esperam do Estado algum posicionamento. Todos exigem que o Estado tome
providências, todos cobram medidas profiláticas, medidas de saneamento, medidas
punitivas. Aos cidadãos foi arrancada a sua própria determinação, seu fazer
social, sua vontade de cuidar dos seus projetos e suas relações. A sociedade
contemporânea transferiu às empresas, às corporações e aos estados a vida real,
arrancando dos coletivos a liberdade de construção de suas relações e mais ainda
de suas condições materiais. É curioso observar que a globalização capitalista
não foi capaz de solapar os estados nacionais. Da direita à esquerda, todos
parecem desejar avidamente o Estado. A cada nova eleição, surgem os candidatos a
gestores competentes da máquina estatal. Grandes corporações se associam ao
Estado, as estruturas de controle se estendem para todas as relações e o
trabalho é o mecanismo alvo de atenção, de ordenação e de conjunção de forças em
favor da sociedade que deve crescer, mas não pode em virtude de suas
contradições internas.
Todos esperam do Estado alguma resposta acerca de
qualquer problema, de qualquer conflito social. Da saúde à educação, do
transporte à segurança física e patrimonial dos indivíduos, todos esperam que o
Estado esteja presente, com suas patrulhas e cães de guarda. No entanto, não se
trata aqui de estar a serviço do bem-comum, com uma consciência de que o serviço
público estaria acima de qualquer suspeita, como uma vocação ou um chamado
espiritual, cuja missão seria a de garantir as melhores condições a todos os
cidadãos. É obvio que do ponto de vista do mundo do valor e da mercadoria, não
há nem deve haver igualdade entre os indivíduos consumidores de valores de
troca. A igualdade não existe, não pode existir. No entanto deve haver um
cenário que garanta de certo modo uma aparente igualdade entre todos. A
aparência significa que há uma imagem a ser preservada, mesmo que o cotidiano
mostre com clareza, em sua microfísica, as verdadeiras condições em que a
desigualdade se manifesta. É preciso fazer parte do rol dos que permanecem com
certo acesso às mercadorias. Em um mundo referenciado totalmente pela
mercadoria, onde a luz, a água, a comida, a saúde, a educação, a vestimenta, a
arte, a cultura se transformam tautologicamente em mercadorias apenas os
possuidores destas terão acesso aos serviços prestados pelo Estado. Talvez um
certo esforço seja continuamente promovido pelos gestores a fim de que sejam
oferecidos certos mecanismos de compensação de acesso à ordem jurídica ou a
condições às quais normalmente certos grupos de risco não teriam possibilidade
de acessar. Porém, a cerne da questão permanece, uma vez que para ter algum
acesso formal ao Estado ou para ser por ele defendido em alguma circunstância, é
necessário que o indivíduo seja partícipe de uma corporação. E quanto maior for
o número de corporações às quais este infeliz indivíduo participe, mais serão
garantidas a ele condições de proteção e defesa de seus interesses. Mesmo assim,
o Estado procura, cada vez mais eximir-se de uma série de obrigações. No
entanto, creio que seria necessária a crítica sobre o Estado. Teríamos nós nos
convencido, ao longo da História, de que o Estado poderia, em algum momento, vir
a promover a igualdade entre os sujeitos sociais? Ou que o Estado seria a
moto-niveladora que abriria o caminho para uma sociedade socialista? De outro
lado, esquerdas e direitas, gestores, líderes políticos, sindicalistas,
artistas, funcionários públicos, trabalhadores, beneméritos, todos querem chegar
ao Estado.

Há uma parceria invisível e creio que mesmo não-intencional entre o Estado e as
corporações, garantindo o fechar dos olhos diante da tortura social lenta,
gradativa, permanente, formal, oficial, com riso de vendedor e eficiência
pragmática dos grande negócios.

sábado, 18 de agosto de 2007

Inimigos Sociedade Anônima

Por Atanásio Mykonios

Trechos do Artigo Publicado na Revista Phrónesis
Do Programa de Pós-Graduação da PUC de Campinas
Volume 7 – Número 2
Julho-Dezembro de 2005 (p. 183-205)



O dogmatismo da mercadoria


Ao se mostrar indiferenciada no corpo social, a mercadoria se coloca como a panacéia de toda a satisfação pessoal. Atinge em cheio a sensibilidade e o caráter evasivo da abstração humana e satisfaz, notadamente, todos os flancos e todos os espaços da carência humana – tanto materiais quando psicológicos. Preenche a totalidade fragmentada dos indivíduos e parece que o faz exclusivamente para uma determinada pessoa singular, tudo isto para marcar a diferença entre todos, como seres únicos e insubstituíveis, assim como fazem as religiões no sentido da salvação pessoal. É um deus-mercadoria que fala para cada um no seu mais íntimo e profundo ser.
E a conseqüência inevitável dessa relação de atração metafísica é que cada ser social, ou cada pessoa consumidora adquirente de mercadoria, deve se sentir única e exclusiva, não pode haver comparações. Aquela mercadoria deve ser adquirida pela pessoa e a posse demarca definitivamente a diferença no corpo social. O merecimento para alcançar a mercadoria é pessoal e especial, diz respeito àquele consumidor – talvez a necessidade seja propagada de modo igual, já que a mercadoria é oferecida simultaneamente em horários de TV para todas as pessoas, de forma indiscriminada. É como um deus que profere sua palavra a todos, mas apenas alguns são capazes de ouvir o chamado desse deus tão poderoso. Os que são de fato convencidos, chegam às portas do paraíso e são aceitos na confraria dos eleitos. A aceitação social é marcadamente regulada pelo acesso à mercadoria e à sua conseqüente posse.
Ora, essa maneira sub-reptícia de compreensão social da mercadoria, leva-nos a constatar que, na corrida em busca da posse, o elemento de diferenciação social impõe um comportamento marcadamente estruturado em torno da violência e da agressividade, que é, por seu turno, legitimada ao extremo por mecanismos de controle social, de compensação diante das perdas e da formação de uma teologia de eficiência e eficácia.
No momento em que a mercadoria nos é oferecida, ela atinge igualmente os sentidos das pessoas, sua sensibilidade, suas ansiedades e angústias, suas esperanças e frustrações. Daí cada indivíduo que é submetido a esse jogo de sensualidade, responde conforme o seu lugar presencial, conforme sua realidade social, conforme sua perspectiva de aquisição. Isto é, o que move o indivíduo de posses e aquele desprovido de qualquer condição de adquirir a mercadoria parece ser a mesma, são as mesmas características metafísicas que foram anunciadas indiscriminadamente a todos, concomitantemente. E assim o que move o delinqüente e a senhora de bons costumes é a mesma necessidade despertada pela mercadoria.

Transformando todos em inimigos comuns


E dessa forma, todos são transformados em inimigos, de tal sorte que a força social está em manter as rédeas do modelo no seu limite, a fim de que todos tenham compreensão de que estão diante de um deus onipotente e onipresente. O sistema é realimentado pelos próprios indivíduos, ganha sua autonomia e se torna um fim em si mesmo.
O comportamento moral, as ações políticas, sociais, religiosas e éticas, são reguladas pelo deus-mercadoria, substancialmente contido na ontologia do sujeito social, que encara o seu estar na sociedade por meio da aquisição, ou mais tragicamente, por meio da manutenção do processo social do deus-mercadoria.
As ações morais dos indivíduos têm como pressuposto a própria mercadoria, ela é colocada como pré-condição no que concerne às decisões a serem tomadas sobre qualquer assunto ou nas relações entre indivíduos, bem como passa a ser a finalidade de toda a organização social. Do lápis às ataduras no pronto-socorro, dos alfinetes ao garfo, do papel higiênico à gasolina, da água à luz, tudo está regido regularmente pela mercadoria, e tudo se transforma numa verdade transcendente, com tal intensidade, que nada parece ser possível imaginar uma ruptura numa perspectiva insólita de transformação do modelo vigente.
Isto porque não é apenas um modelo do qual seja possível escapar impunemente, ao contrário, trata-se de um sistema que exige fidelidade e que açambarca todo o espectro social, não oferecendo alternativas ou escolhas aos seus indivíduos. É um sistema dogmático que impinge a todos a escravidão pactuada.
A sociedade atual e anônima é a sociedade dos inimigos comuns. Todos se tornam ferozes inimigos, cujo único objetivo é garantir a todo custo a mercadoria. E como verdadeiros abutres em torno da carniça, somos compelidos diariamente a sufocar a totalidade que existe em nós em nome da mercadoria, a deusa dos nossos sonhos de consumo. E aqui foi possível observar a confusão entre consumo e aquisição de mercadorias, como se ambos os termos possuíssem a mesma categoria ontológica. Em certo sentido sim, porém, o consumo humano é anterior à formação da sociedade das mercadorias.

Os inimigos se encontram
Parte considerável de nossa atual violência se deve a essa complexa rede de inimigos que a sociedade das mercadorias foi capaz de engendrar. Ao invés da criação de uma sociedade solidária, a mercadoria criou indivíduos preparados para a agressão constante, porque estes indivíduos entendem ser necessária a defesa de seus direitos ao acesso às mercadorias, como o direito de livre expressão ou confissão de fé, criando assim bandos organizados que saqueiam o tecido social em busca das mercadorias, criando, inclusive, uma teologia própria em torno da qual circulam os inimigos confessionais e outros que desejam a conversão.
Felizes os que podem adquirir as mercadorias! Eis as bem-aventuranças da idade contemporânea. A consciência social se contenta, então, com uma certa mobilização em torno da qual giram os valores da distribuição vista sob o ângulo da ética coletiva. E, contraditoriamente, esse movimento é um refluxo para o interior mesmo da mercadoria, que impulsiona os indivíduos a uma satisfação aparentemente perene, mas, em verdade, se tornou um redemoinho que traga todos para um mesmo ponto central.
Essa centralidade da mercadoria é a última expressão de uma arquitetura social que engloba de uma só vez o trabalho abstrato e o valor, regado substancialmente pela espiral do acúmulo do valor sobre o valor. Todos que se deitam num mesmo leito de morte se transformam em inimigos. Essa inimizade se configura em uma beligerância apática, num certo aspecto, mas noutro, torna-se explícita, gerando a própria morte dos indivíduos. Contudo, ela é mascarada por formas que dão a aparência de um pacto social permitido, como, por exemplo, a concorrência, a competência, o vencer a todo custo. A culminância desse processo é uma sociedade eivada de egoísmo e narcisismo absurdo, que leva os sujeitos adquirentes da mercadoria a uma verdadeira ode à sobrevivência e cuja perspectiva é o céu sem limites ou barreiras.
Nesta sociedade confeccionada a partir das relações determinadas pela mercadoria, encontram-se os valores das culturas que, via de regra, são subsumidos à grande formação social imposta pela deusa-mercadoria. Uma categoria que abrange todas as culturas e identidades, formando assim um círculo fechado e perfeito.

A necessidade colocada na contenda
Mas as necessidades materiais, paradoxalmente, prendem o homem à sua materialidade, mantém-o preso à terra, ao barro, às condições limítrofes. Contudo, essas forças limitadores são como que esquecida, deixadas num canto da consciência, exatamente quando esse homem se depara com a sua própria criação – refluxo de sua consciência na materialidade, em forma de objeto-mercadoria e então se sente liberto de uma suposta condição que, de alguma forma, pode ser superada ou transformada.
Tem-se a idéia de que a mercadoria pode transformar a humanidade das pessoas, dando-lhes uma condição superior, até mesmo numa perspectiva espiritual, como se o acesso a certos bens espirituais formasse uma outra entidade na humanidade mesma. Isto quer dizer que há uma sensação recorrente de que se consumirmos as mercadorias revestidas de arte, de cultura, como o teatro, a música, a dança, isto nos faria pessoas melhores, mais sensíveis, mais atentas, em outras palavras, mais justas, mais conscientes de nosso papel social na atualidade.
A mercadoria é um ente que se tornou global, cuja ontologia se explica por meio da submissão dos indivíduos à sua forma eternizante, constituindo uma cadeia de relações que, paradoxalmente são humanas e anti-humanas, fortalecida pela metafísica da estética, que aprisiona o humano em torno a uma condição de estreiteza existencial.
Isto significa dizer, em outras palavras, que a mercadoria não pode se sustentar indefinidamente porque não é capaz de gerar um equilíbrio do ponto de vista ecológico, nem um equilíbrio no que concerne a uma correlação de forças minimamente sustentável. O processo da valoração do próprio valor, implica um crescimento e um fomento material que não pode, em sua condição original, manter-se no sentido de satisfazer todas as necessidades abstratas dos indivíduos sociais.
Aqui, é necessário reconhecer que a sociedade das mercadorias promove uma relação entre indivíduos cujo produto final é, inexoravelmente, a morte, tanto no sentido da separação do homem de sua totalidade, quanto no que concerne à sua manifestação existencial.
Uma sociedade de inimigos perde sua perspectiva de preservação biológica da própria espécie. Isto implica uma condição que extrapola, inclusive, a realidade biológica mais elementar da natureza, que é a proteção da espécie. A morte ronda o espectro social. Mesmo assim, é possível vislumbrar uma nova perspectiva, em cuja formação social estarão implicados todos os desafios possíveis e imagináveis, pois após milhares de anos, a humanidade tem possibilidade de formular novas relações em um novo patamar, sem, no entanto, estar presa ao seu próprio passado, vislumbrando uma nova sociedade a partir da superação do que já se tornou notoriamente um modelo de morte, superando assim os limites da própria racionalidade ou mantendo-a nos limites necessários para a construção de uma arquitetura social que leve em conta a liberdade, o fim do trabalho determinado pelas condições do capitalismo, como centralidade protogênica do humano, dando fim a uma ciranda mortificante baseada na mercadoria.

Mercadoria e o fim da história

Por Atanásio Mykonios
Crítica da Necessidade




A mercadoria engendra um modo de relações cindidas, apartadas da história. Enfrentar teoricamente o sistema requer uma abordagem esotérica da compreensão marxiana do modo como se dá a mercadoria. Ela está no centro, mas será preciso enfrentá-la metodologicamente para determinar os elementos de sua contradição interna. A determinação da mercadoria e a extinção da história. A mercadoria revela o apagar de um processo vivo, concreto, real. Torna-se uma entidade metafísica que impõe o esquecido do trabalho e da origem das condições concretas em que este ocorre. O ponto de partida é literalmente esquecido. O processo de troca elimina a história, a história e a memória social, esconde a essência real das relações, coloca no lugar uma idéia que aparece naturalizada, divinizada, como que vinda dos céus.
O pensamento burguês se desprende do concreto e se transforma em uma força natural, ou uma força da natureza. Assume uma forma, a forma cristalizada, a forma que parece ser dada, conforme Marx apresenta. O componente histórico perde sua feição, a forma, aquilo que aparece se torna, a seu tempo presente, seu próprio conteúdo, nada mais, pois a historia que poderia indicar o processo e nele constatar o caminho percorrido não existe mais. Marx teoria sobre a teoria, como György Lukács, em História e honsciência de classe, afirma. Assim, a história tem o sentido não apenas de mostrar os fatos, os ocorridos, mas é o de mostrar o que ocorreu com o processo, como é que o homem transgride a própria realidade e coloca o mundo de cabeça para baixo.

O pensamento burguês, contudo, deve deparar aqui com uma barreira intransponível, visto que seu ponto de partida e sua meta são, embora nem sempre consciente, a apologia da ordem existente das coisas existente ou, pelo menos, a demonstração de sua imutabilidade. (LUKÁCS, 2003, p. 136)

O pensamento burguês e ao mesmo tempo seu próprio comportamento revelado pelo valor conseqüentemente afeta toda a vida social, inclusive a moral dos indivíduos, penetra na ética social, amplia-se no sentido das atividades científicas, a ciência se torna a visão burguesa do mundo e, tem como fundamento a iniciativa de romper com a história, transformar as relações de valor e necessidade em elementos naturalizados, em outras palavras, uma metafísica do mundo do valor, da mercadoria e da necessidade. Lukács, ainda salienta que:

deve eliminar do processo da história tudo o que tem um sentido, que visa a um fim; deve deter-se na mera "individualidade" das épocas históricas e de seus portadores sociais e humanos. Com Ranke, a ciência da história deve insistir no fato de que cada época histórica “está igualmente próxima de Deus”, isto é, alcançou o mesmo grau de perfeição e que, portanto, por motivos opostos –, não há, por sua vez, um desenvolvimento histórico. (Ibidem, p. 137)

As relações são produzidas pelos homens e não por outra coisa. A partir da naturalização, os fantasmas prorrompem em uma relação desvinculada da história e esta é um dado a mais para criar o grande pesadelo do homem em busca da grande alma que explique o mundo concreto. A consciência humana fica submetida e subsumida a um mundo de idéias e de formalidades, especulações e iluminações ansiadas e que leva o homem a procurar sua própria conversão, continuamente. A busca da essência real, se assim podemos chamá-la. Com Lucacks, o materialismo histórico nos revela a condição concreta do mundo e das relações. Será utilizado como forma de compreensão do histórico da mercadoria e da visão burguesa das relações cindidas pela metafísica da própria metafísica. Daí, a produção perder seu conteúdo histórico com a produção burguesa. Daí a passividade diante do processo social e das relações, diante do mundo, no qual a vida ganha um sentido natural, pois “Os objetos da história aparecem como objetos de leis naturais e imutáveis, eternas” (Idem, p. 137) e, por conseguinte, a representação da realidade deve ganhar contornos de uma estética pura, no sentido visível de que a racionalidade se coloca em um mundo de nuvens sendo “passível apenas de organização estética, como uma espécie de obra de arte” (Ibidem, p. 138), perdendo o sentido de sua manifestação concreta e desta forma, o que se nos aparece é o produto final, como um milagre, um desejo do eterno, como se o homem dependesse, daí em diante, de forças sobrenaturais para refazer continuamente o ciclo e reproduzir sua determinação, tornam-se um fantoche do destino alheio.
A forma do valor está impregnada na mercadoria, e o contrato social ou jurídico pode ou não revelar uma certa oficialidade, que implica a existência do Estado. No entanto, as relações colocadas pela mercadoria não atingem somente os homens oficiais, as pessoas jurídicas, mas sobretudo, toda a população, toda a sociedade colocada na determinação das trocas de valor.

O que distingue sobretudo o possuidor de mercadoria desta última é que para ela cada outro corpo de mercadoria conta apenas como forma de manifestação de seu próprio valor. Igualitária e cínica nata, a mercadoria está sempre disposta a trocar não só a alma, como também o corpo, com qualquer outra mercadoria, mesmo quando esta seja tão desagradável como Maritornes. (MARX, 1983, p. 80)

A igualdade a que a mercadoria advoga para si, nas relações sociais, parece dar a impressão a todos de que os indivíduos são iguais perante ela mesma. Ela iguala a todos em uma cadeia de trocas, bastando para isto que o seu adquirente possua uma determinada quantidade de equivalente geral, inclusive substituindo o valor pelo dinheiro, como expressão desta suposta igualdade. Tudo se passa como se o mundo estivesse perfeitamente ordenado, trabalhar, ganhar dinheiro, comprar e satisfazer necessidades. Tudo em um ciclo aparentemente perfeito. Basta que a sociedade coloque todos para trabalharem, anime os produtores a investirem, para que aumentem a produtividade e para que o consumo cresça como expressão do desenvolvimento, pois quanto mais o progresso proporcionar trabalho, maior a capacidade de consumo e maiores as perspectivas de manutenção dos trabalhadores no mundo do valor e da troca. O cinismo não se refere apenas à condição da mercadoria, mas especialmente ao fato de que o homem põe sobre esta a condição de um jogo de fetiches que ascendem à categoria de regulação do comportamento social e individual. Cabe acompanhar o trajeto oferecido a nós por Marx, quando faz a distinção do papel da mercadoria e sua função, quando de sua movimentação diante dos olhos dos homens, porque o caminho percorrido pela mercadoria nos dá a sua destinação e mais, nos oferece a possibilidade de compreendê-la em sua metamorfose ambulante. A mercadoria, por si, não tem consciência, mas ela adquire uma tal dignidade e um tal estatuto perante os homens que se torna autônoma, como vida própria, e que foge ao controle do homem, porém, este imagina ter sobre a mercadoria um controle absoluto, especialmente quando se coloca como consumidor ativo.

Esse sentido, que falta à mercadoria, para apreciar o concreto do corpo da mercadoria, o dono da mercadoria supre por meio dos seus cinco ou mais sentidos. Sua mercadoria não tem para ele nenhum valor de uso direto. Do contrário, não a levaria ao mercado. Ela tem valor de uso para outros. Para ele, ela tem diretamente apenas valor de uso de ser portadora de valor de troca e, portanto, meio de troca. Por isso ele quer aliená-la por mercadoria cujo valor de uso o satisfaça. Todas as mercadorias são não-valores de uso para seus possuidores e valores de uso para seus não-possuidores. (Ibidem, p. 80)

Ora, este caminho apresentado por Marx coloca o processo da troca-de-valor, em seu princípio originário. O princípio originário indica que um produto revela-se como mercadoria no momento em que o seu produtor de antemão coloca o produto na intenção da troca e não do uso específico. Cada mercadoria, por mais alienada que seja, carrega em si o valor de uso, mas para o proprietário, o produtor, aquele que com sua intencionalidade deseja trocar, não representa mais do que sua existência pode oferecer, ou seja, a própria troca. A alienação é outro elemento deste processo, o caminho se apresenta como uma cadeia ininterrupta de alienações, cuja base inicial está no momento primeiro em que o produtor oferece ao comprador um produto que aparece como seu real valor de uso, mas que é encapado pelo valor, pelo valor de troca. Não se trata do mesmo valor que historicamente foi determinada pelo escambo, ou a troca simples de objetos, mas de uma nova dimensão das relações materiais entre os homens. A realização da mercadoria se dá como valor, valor extrínseco, alienado da história, em outras palavras, sem história, sem ligação com o mundo concreto, pois o valor agora adquire uma vida própria, sem amarras, sem controle de que ali põe seu trabalho, mesmo que indireto, como na atualidade, envolto pela tecnologia de alta qualidade e eficiência. Por isso

Elas precisam, portanto, universalmente, mudar de mãos. Mas essa mudança de mãos constitui sua troca e essa troca as refere como valores entre si e as realiza como valores. As mercadorias têm que realizar-se, portanto, como valores, antes de poderem realizar-se como valores de uso (Idem, p. 80)

De fato, aqui está um dos cernes do problema substancial relativo à mercadoria. Sua essência é o valor. Mas esta essência está escondida na profundeza de sua própria realidade que não se manifesta, uma vez que para o comprador, o que permanece é o valor de uso, que para ele (o comprador) está plenamente resolvido o problema social, pois há um velamento da essência, deixando transparecer uma outra realidade, a que, de início dá o caráter formal ao produto, a saber, o seu valor de uso. Contudo, o valor está ali, ele é o motor que dá a propulsão à mercadoria como mercadoria. Cabe à mercadoria apresentar-se como sua pureza assim o determina, no seu conteúdo de uso, aquilo que é necessário ao usuário ou ao comprador. O valor de troca reflete a necessidade da própria troca, isto é indispensável para que a mercadoria realize sua trajetória, no entanto, isto só é possível se o trabalho socialmente determinado para a produção esteja vinculado ao valor de uso e não ao valor de troca. Mas surge a figura fantasmagórica da mercadoria como forma de garantir a circulação, o trabalho se torna o elemento chave que garante a produção e esta com vistas à troca, fecham o início do processo, assim o afirma Marx:

Por outro lado, as mercadorias têm de comprovar-se como valores de uso, antes de poderem realizar-se como valores. Pois o trabalho humano, despendido em sua produção, conta somente na medida em que seja despendido de forma útil para outros. Se o trabalho é útil para outros, se, portanto, seu produto satisfaz a necessidades alheias, somente sua troca pode demonstrar. (Idem., p. 80)

Há aqui um jogo muito sutil, entre trabalho, valor e mercadoria. O capitalismo prepara as condições para a sua superação, mas não a realiza, portanto, logicamente, o capitalismo não quer se ver como um reflexo negativo, é sempre a si mesmo = não admite contradição, mesmo que ela exista, o capitalismo não admite o processo dialético, rejeita-o.

Referências

Lukács, Georg. História e consciência de classe.: estudos sobre a dialética marxista. Tradução de Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2003. (Tópicos).
MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Vol. 1, Livro Primeiro: O processo de produção do capital, Tomo 1. Tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

Crítica da Necessidade

Por Atanásio Mykonios

A mercadoria é constituída pelo valor em sua origem, portadora de uma simbiose na qual o produto do trabalho, que é trabalho objetivado e cria objetos em valor de uso, se transforma em coisa mascarada pelo valor de troca, revestida por este em novo conteúdo: a mercadoria - sua alma ou seu fantasma. Para constituir o valor, há uma espécie de inversão do trabalho humano, destinado a uma nova condição social, arrancado da história e submetido ao propósito exclusivo do valor de troca, cujo resultado não é mais a atividade humana na relação com a natureza e o mundo, metabolismo que engendra e constitui a totalidade humana e que expressa um conjunto de necessidades e satisfações de cunho social e individual - é a produção na forma-valor, ativada como princípio fundamental do sistema.
A atividade humana é crucial para formação do homem, para sua determinação social; o trabalho não é apenas para o homem em sua singularidade, é para si na relação e pela relação com os outros homens, constitui-se fundante do processo social e de sua história, “aumento de valor do mundo das coisas” (MARX, 1967, p. 90).
O que se produz tem o caráter histórico à medida que assume a expressão do próprio homem, em sua existência, passando por sua tradição, identidade e conseqüentemente, juntamente com sua corporalidade, pois assume a dimensão de fazedor da própria realidade humana, não uma realidade isolada do mundo, das relações objetivas, é a constituição do homem em sua totalidade, por isto, “Aquilo que os indivíduos são depende, portanto das condições materiais da sua produção” (MARX, 1984, p. 15). E. para dar sustentação ao processo histórico, é a mediação e esta expressa o homem no mundo pelo seu modo de produzir, daí que “Esta produção só aparece com o aumento da população e pressupõe a existência de relações entre os indivíduos. A forma dessas relações é por sua vez condicionada pela produção” (Ibidem, p. 15-16).
É imprescindível que a sociedade busque formas de discernir os aspectos do valor, que carrega em seu interior uma contradição que necessita de ser compreendida, pois o sistema arranca da própria humanidade sua capacidade de realização e por se tratar de um modo único na história, de profunda escravidão social.
Enquanto não se enfrentar o valor não haverá possibilidade concreta de superação do sistema, esta no sentido dialético. Enfrentar esta questão não se faz apenas extirpando o dinheiro como meio de circulação, o dinheiro é o signo do processo, o equivalente geral, mas o que determina o processo do capitalismo é a forma como a produção se destina para a troca. Nem tampouco na organização social da distribuição, como ética distributiva. Portanto, generalizar o conforto, o progresso, o consumo, o acesso aos produtos não dá qualquer segurança quanto à justiça social. A emancipação do capitalismo implica voltar a atenção para a origem do processo e compreendê-lo na sua complexidade e evolução históricas e sua conseqüência radical é a revisão das necessidades de modo geral e no seu caráter individual.
A necessidade merece um destaque, pois é determinada pelo valor e desta forma, se desprende do conteúdo real, seja de uma região, de uma tradição, de uma cultura, de um modo peculiar de vida e assume um caráter universal, mesmo que não haja possibilidade de satisfazer a todos os indivíduos da cadeia de consumo. Quanto maior o nível de abstração, desprendido da base real, mais o sistema avança e aponta para suas contradições internas e, de outro lado, revela a exaustão dos recursos materiais manipulados pela produção. A base material não se multiplica, enquanto que a mais-valia (valor-sobre-valor) tem velocidade proporcional à necessidade de expansão do sistema, transformando a relação entre o que se produz e a abstração do valor em um vácuo que aumenta em escala progressiva.
Trabalho – Valor – Mercadoria – Troca – Necessidade – Tempo, será necessária a revisão desta cadeia e a questão urge. As duas pontas se unem e são solidárias desde seu início, isto é, Trabalho-Valor / Necessidade-Tempo. A necessidade não poderá ser abordada sem se levar a questão crucial do trabalho-valor, o que implica re-visitar todo o processo social produtivo. Mercadoria e dinheiro estão no centro, estabelecendo um movimento contínuo. Inicialmente tem-se a tendência, inclusive histórica, de enfrentar o problema a partir da mercadoria, criando mecanismos de distribuição da mesma, mas mantendo-se o processo do trabalho-valor quase intacto ou, no sentido de controlar o valor, o preço e a distribuição, gerando assim a ética da distribuição.
O modo como se produz, o que se produz e em especial o tratamento dado à produção com vistas exclusivas à troca, dá o sentido à mercadoria que se destaca como um elemento desprendido da história, do concreto da atividade humana, do trabalho em sentido geral. De nada adiantará rever o binômio originário do capitalismo se, ao mesmo tempo, não dermos atenção ao aspecto que determina a aquisição da mercadoria, a saber, a necessidade e, em conformidade com esta, o elemento que regula o processo, do princípio ao fim, o tempo. O tempo social da produção, da circulação e o da aquisição, configuram o tempo humano que controla e coage para um único fim, compra e venda, com a substituição dos modos de produção pela tecnologia e assim, parece necessário incluir o tempo relativo ao trabalho, em função das novas realidades sociais impostas pela tecnologia. O que fazer com o tempo diante de uma rarefação do trabalho?
A questão da necessidade se torna visceral. Quais são as reais necessidades? Após uma imensa estratificação dos produtores e dos produtos, após a evolução e crescimento dos modos de consumo, e o incremento de processos tecnológicos cada vez mais qualitativos que produzem uma fragmentação social, e uma realidade extremamente complexa, que se apresenta desgarrada da quantidade material disponível para o consumo, gerando um quadro de expectativas ilusório posto pela relação entre o valor disponível e a base real (material) da natureza, estamos diante de um fantasma. Será imprescindível abordar a questão da necessidade.