Sabemos o que está para acontecer. A tragédia social se torna potencial e perigosamente um caldo para a especulação política, ainda mais, para o ganho econômico - o valor se torna o motor da sociedade. Ela não pode parar em hipótese alguma. Com ou sem tragédia, a vida continua, mesmo que ela seja, em sim, uma tragédia cotidiana.
Quando criança, eu pensava que bastava a vontade dos indivíduos para que escolhessem seu país, seu mundo, sua casa, sua rua, sua cidade, seu trabalho. Mas percebi que a realidade não estava exatamente na expressão da vontade ou da escolha dos indivíduos, dos seres humanos. Temos pouca capacidade, liberdade ou mobilidade para escolher, seja lá o que for.
E a depender da nossa situação social, em que podemos viver em condições adversas, teremos ainda menos possibilidades diante das ofertas de mercado.
A História nos mostra que os pobres sempre estiveram à mercê de toda sorte de tragédias e catástrofes. Por isso, necessitaram e ainda hoje precisam de proteção. Não é à toa que durante a Idade Média, os pobres seguiam seus reis e cardeais para onde fossem. Tinham de ser protegidos, daí o fenômeno das conversões religiosas em massa, uma vez que bastava um rei fazê-lo para que seus súditos tivessem a sensação de que devessem segui-lo incondicionalmente.
Não é à toa que hoje os pobres votam ou legitimam os homicidas que lhes oferecem proteção, pela cesta básica ou pela bala. Estamos numa situação ainda mais horripilante, pois a sociedade do trabalho, que não prescindirá de tantos trabalhadores, vê as massas ocuparem as periferias e as elites se sentem ameaçadas.
Assim é também no longo trajeto dos desafortunados no interior do capitalismo. Devem sobreviver e lutar com as forças possíveis, com seus próprios braços e pernas. Têm de acreditar a cada novo dia, têm de submeter, mais do que qualquer outra classe social.
Precisam encontrar trabalho, pão, moradia, medicamentos e lazer. Cavam os espaços e as brechas. O preço da vida é a escravidão a um sistema que não lhes dá qualquer respiro. Do momento em que acordam até o seu sono, são premidos pela necessidade da sobrevivência.
Nossa ética kantiana, asséptica, ocidental, branca, masculina, iluminada não os atinge. A forma como a cidade é organizada, para valorizar o valor, empurra os pobres para a periferia, para os ambientes onde ainda é possível encontrar áreas minimamente habitáveis. A lógica do capitalismo, com sua virtude expansionista, empurra os indefesos para a morte diariamente.
Se ocupam morros, várzeas, encostas, margens de rios é porque ali ainda não há uma valorização do valor que atenda à demanda do capital em sua expansão. Com isto, os serviços que o Estado está obrigado a prestar, chegam aos que, de modo capitalista, têm seu registro nos cofres do Estado, garantindo assim, de alguma forma, os impostos e o suposto serviço “pago” pelos supostos “contribuintes” pode então ser uma realidade. Mas não é isto que acontece.
O Estado brasileiro passou a tirar de alguns para dar aos pobres, mas em condições ainda precárias. Assim como em outros aspectos da realidade nas relações do capitalismo, os indivíduos são efetivamente responsabilizados pela sua condição. Podemos observar que recaem sobre os fumantes toda a forma de responsabilização acerca de sua saúde. Também sobre os obesos, os compulsivos, os deprimidos, os doentes, etc. Não seria diferente com os que sofrem com a perda de suas casas em lugares de risco.
Será preciso mostrar aos abandonados qual é o seu real lugar na sociedade capitalista. Receberão suprimentos e ajuda por alguns meses. Em seguida serão novamente esquecidos, até que encontrem trabalho “honesto”. O Estado fará o mínimo.
Os meios de comunicação se encarregarão do restante. Mais uma vez a tragédia humana se transforma em espetáculo. A imagem do terror inunda as TVs e a Internet. Em breve, os meios de comunicação serão obrigados a encontrar novas imagens que movimentem o comércio, a mercadoria, a sociedade da troca.
O momento marcante da TV é mostrar a tragédia não no que tem em sua causa política e econômica. Vale apresentar a dor com a imagem dos desvalidos. De alguma forma, essas imagens provocam mobilização, uma catarse social aristotélica, cuja intenção é prender a audiência e vender.
Na verdade, o que importa para a TV não é criar consciência social, refletir, pensar ou educar. O que vale é vender, seja o que for. Por isso, ato contínuo à tragédia, os anunciantes se mostram. O que sustenta a TV é o comércio, apenas isto.
Ironicamente, isto não eliminará a tragédia humana nem minimizará o sofrimento. Assim, a sociedade deverá, novamente, contar com a solidariedade dos cidadãos comuns. Donativos, mantimentos, roupas, haverá mobilização e o Estado oferecerá condições para que os desabrigados saquem parte do FGTS.
Mas a sociedade da mercadoria permanece, ela é o esteio e o fundamento da moderna existência, não importa o que aconteça, a vida do lucro deve continuar, ironicamente, a todo preço, a todo custo.