terça-feira, 10 de março de 2015

Esquerda e Pacifismo. Gandhi nos inspira!

Por Atanásio Mykonios


Houve uma época em que as esquerdas ou os vários grupos de esquerda tinham uma prática e um discurso muito mais beligerante do que hoje. Lembro-me da época em que empastelaram a cara do então Ministro José Serra em Fortaleza, no Ceará. Lembro-me do tempo em que as manifestações de rua traziam palavras de ordem como “Fora FHC”, “Abaixo o FMI”, “Reforma Agrária Já”, etc. Lembro-me ainda daquele tempo em que a juventude dos partidos tinha discursos muito mais raivosos que a direita que hoje bate panela e xinga a presidente Dilma.

Lembro-me ainda de bandeiras queimadas, de gritos de ordem, de discursos inflamados que ameaçavam invadir bancos e latifúndios. A revolução parecia estar sempre no horizonte de uma parte da esquerda. A história parecia que se realizaria conforme o processo social e a dinâmica levassem a uma mobilização das massas.

Muitos não escondiam que lutar contra os capitalistas era também lutar contra o Estado-nacional e era preciso serrar fileiras para combater a exploração e o imperialismo. O problema social era tratado como uma consequência da exploração do capital e das corporações sobre os trabalhadores. Fome, desemprego, violência, abandono, crime, prisões lotadas, eram todos problemas causados pelo capitalismo e sabíamos que era necessário enfrentar o sistema e superar essas mazelas.

Motivadas pelo fim da ditadura, as esquerdas se reorganizaram e era o momento histórico, nos anos 1980, de reconstruir o país em bases sociais e populares mais sólidas, tendo como herança as lutas recentes do povo.

Respirava-se um ar de insurgência contínua. Estávamos sempre na expectativa de que algo aconteceria e que os governos seriam derrubados pela ação popular.

Atos de subversão eram sempre bem-vindos, sem muito constrangimento. Sabia-se, de alguma forma, que não era possível enfrentar os canhões e os dólares com flores e poesias, era preciso se preparar para o confronto que inevitavelmente ocorreria.

As classes médias viviam, de certa forma, com medo, acuadas. Ainda me lembro do alvoroço criado no período em que Fernando Collor de Mello havia sido eleito, empunhando a bandeira do medo, aquele medo de que o PT pudesse fazer a distribuição dos bens das camadas médias. Naquele tempo, pouca gente conhecia o PT por dentro, mas a imagem que ele transmitia era bem mais eficaz do que a sua própria realidade.

Era o partido da transformação. Chegou a aglutinar quase todas as esquerdas sob sua bandeira. A hegemonia de sua capilaridade lhe deu uma vantagem sobre as estruturas, de certa forma, arcaicas dos partidos mais históricos que o próprio PT.

Em todos os lugares, nos bares, nas reuniões de sindicato, nos partidos, nas comunidades de base, nas associações, nos grupos de arte, respirava-se a esquerda e a mudança, a transformação fazia parte do nosso ideário. Havia um espírito do tempo que nos mantinha acesos e nos impulsionava a que novos tempos seriam possíveis.

Muitos não teriam coragem de pegar em armas, mas sabíamos que a revolução certamente seria o caminho para o fim daquele mundo de opressão. Naquele tempo, ainda, muitos queriam as liberdades que eram já experimentadas no norte do mundo, especialmente na Europa e nos EUA. 

Queríamos liberdade para sermos felizes, fazer sexo, fumar, escrever as nossas peças de teatro, nossos poemas ao ar livre, queríamos educação e saúde e bem-estar para todos. No fundo, uma parte de nós só queria era acabar com o controle rígido e moralizante sobre a sociedade, as grandes teses sobre o capitalismo eram debatidas de forma muito superficial, mas sabíamos que havia injustiças na concentração da riqueza e na distribuição desta riqueza e isto parece que nos bastava à época para agir.

Não conhecíamos o sistema capitalista por dentro, apenas a sua casca.

O importante era que estávamos na luta, de uma forma ou de outra. Eu escrevia peças de teatro que tinham um cunho crítico sobre a política. Queria enfrentar a censura e poder dizer que havia sido censurado de alguma forma.

Além disso, todos os políticos que exerciam seus mandatos sempre pareciam corruptos, ineptos, serviçais, mentirosos e a mando dos grandes barões do capital. Os picaretas tinham de ser derrubados a todo custo. Nossa indignação era justa e sabíamos que estávamos certos em denunciar com todos os pulmões e se possível com as palavras de ordem que nos caracterizavam.

Havia a certeza de que a esquerda poderia fazer melhor.

Em alguns grupos minúsculos certos posicionamentos ainda estão muito vivos ainda hoje. Nesses grupos, quase sem expressão social ou política, que se agrupam em pequenas células, que mantêm a estrutura hierárquica muito centralizada e autoritária, ainda é possível presenciar discursos inflamados contra o Estado e contra a burguesia, com requintes de pura ameaça com ações de grande impacto.

Se essa gente que bate panela e desfila com a bandeira nacional pudesse presenciar uma das reuniões desses grupos se sentiria como freiras em conventos de clausura.

Sempre houve quem tentasse conter ou escamotear o discurso e posicionamento das esquerdas com medo de que pudessem afetar os ânimos das camadas médias e de alguns grupos que tinham papel estratégico na luta política. Não se falava em revolução de forma tão aberta como hoje os de direita vaticinam com a maior facilidade, pedindo naturalmente uma intervenção militar. Mas a revolução estava no horizonte, sempre.

Eis que uma mudança absurda ocorreu.

Agora, as esquerdas estão quase acuadas, ou acuadas por completo. Procuram se defender dos ataques raivosos de grupos que ainda não têm uma articulação orgânica (ao menos por enquanto). Às vezes, vejo tanta gente da esquerda assumir o discurso pacifista contra as ações beligerantes de grupos prestes a cometerem verdadeiros massacres em praça pública, que fico a pensar se mudamos de lado ou se isso não passa de um esquecimento cínico de nossa própria história. Esquecimento que nos custa a nossa identidade.

A esquerda está horrorizada com a truculência desse pessoal que está com muita raiva. Até parece que Gandhi é quem inspira a esquerda a assumir essa postura de “paz e amor”, medindo as palavras, contendo as raivas, dando o exemplo de equilíbrio. Abdica da sua real condição de enfrentamento, para pedir que todos tenham parcimônia e que se manifestem no estrito âmbito da lei e da ordem.

Agora exigimos que a direita, sempre ignorante de sua própria condição e da história, leia e se forme para poder debater em alto nível com os intelectuais e teóricos das esquerdas. Agora o debate à moda grega nos interessa, com argumentos, com lógica, com a força da retórica e com o arcabouço da teoria a nos defender.

É bem verdade que essa gente não sabe o que está acontecendo no mundo nem em seu próprio bairro.
Até mesmo gente que está do lado de “lá” observa que o “ódio” ganhou as ruas, as elites e as camadas médias contra o PT. Mas se eu me lembro bem, nosso ódio contra a burguesia não era diferente.

Então o que mudou? Fizemos a revolução e agora somos todos iguais? Fomos nós que nos convertemos ao pacifismo e a direita oposicionista é que deseja mudar e puxar o tapete, utilizando dos recursos mais horripilantes contra a legitimidade política, enquanto nós somos os fieis defensores da ordem e do estado de direito?

Agora a esquerda está na defensiva. Aliás, durante mais de um século, especialmente nos países centrais do capitalismo, esteve na defensiva, os sindicatos, os partidos, e mais recentemente os movimentos. A parte hegemônica da esquerda que chegou ao nosso Estado-nacional em 2002 foi toda tragada para dentro do próprio Estado e agora está encastelada nele para defender o indefensável.

Essa defesa e essa pretensa autodefesa contra a horripilante e crescente onda de virulência, praticada pelas hordas desorganizadas que a direita põe nas ruas e nas redes sociais, é de uma condição patética.

Quem viesse de Marte e pousasse aqui em nossas terras, talvez ficasse impressionado com a inversão de papeis que mais representa uma perversão da história. A esquerda com medo, tornando-se, cada vez mais, parecida com aquelas senhoras de 1964 e a direita não-institucional assumindo as raivas e a dores da esquerda.


Para garantir o mínimo conquistado do ponto de vista social, dentro do capitalismo de desenvolvimento e de bem-estar social esse liberalismo social tardio, estamos acuados e sofrendo da Síndrome de Estocolmo.