quinta-feira, 25 de agosto de 2016

A forma abstrata do Estado

Por Atanásio Mykonios


Falamos em tipos de Estado, como se isso fosse possível. Nesse sentido, nossa visão do Estado é abstrata. E elaboramos uma negação abstrata do Estado. Não há forma de Estado, porque nem mesmo os socialistas ou os comunistas abriram mão do modo de produção capitalista. Todas as formas de Estado obedecem a um mesmo conteúdo. Continuamos presos a essa forma histórica que nos prende visceralmente. Até mesmo os anarquistas, em grande medida, olham para o Estado de forma abstrata, porque querem aboli-lo mantendo determinadas condições relativas à força de trabalho. O Estado é a expressão do capitalismo e a sociabilidade que ele engendrou é a sociabilidade do próprio capital em fluxo contínuo, com as amarras jurídicas necessárias para a sua realização. Ansiamos por uma democracia capitalista, ou uma democracia socialista com fortes traços de uma vontade geral, como um a priori transcendental que nos uniria em torno do Estado bem feitor da humanidade. O democratismo de esquerda está presente como elemento positivo do Estado. A esquerda se ilude, pois ao tomar o Estado nada mas fez e faz do que manter a estrutura e o modo de produção e exploração do capital. Não se trata apenas de acusar o Estado de favorecer os ricos com mais riqueza, extraindo dos pobres, essa é uma característica histórica do Estado brasileiro que foi transformado num Estado beligerante para atender a uma classe historicamente estruturada no poder. Mas esse mesmo Estado mantém o ordenamento jurídico, assim como todos os Estados-nacionais do mundo atual. Estados teocráticos, Estados autoritários ou de representação liberal ou socialista não abrem mão das condições gerais da produção capitalista. Por outro lado, a estrutura concorrencial entre as empresas, se transfere para os seres humanos e para os Estados-nacionais, todos nós, de modo universal, estamos metidos no emaranhado concorrencial que condiciona as relações de exploração. Por outro lado, quando a gente faz uma crítica negativa ao Estado sem considerar que tal crítica deva também levar em conta a crítica da economia política, aí, ainda mais, estamos apenas abstraindo o que o Estado é. Ele passa a ser apenas a expressão de vontades de grupos e de interesses difusos que se digladiam em torno das forças do capital. Ou seja, estamos aqui com uma prática a-crítica que coloca um a priori, isto é, de que o Estado é um dado posto e ponto final. Marx mesmo entrou nessa por algum tempo considerável. Porque na prática concreta, o que temos é um Estado da burguesia, mascarado de socialismos baratos ou de keynesianismos disfarçados de esquerda liberal e então partimos para as ideias de Estado em geral que nos confundem porque precisamos de um discurso de forte apelo voluntarista para expormos algo que não cabe no concreto do pensamento. Discutimos um Estado em geral e se percebermos, todos os movimentos as últimas décadas estão varados de luta contra os Estados-nacionais enquanto o sistema capitalista segue o seu curso de crise estrutural. Só porque os socialismos ou os movimentos revolucionários reproduziram o próprio sistema do capital, não significa que tenhamos de ofuscar a crítica radical ao Estado, com nuances relativistas em que o capitalismo não faz parte dessa questão. Pelo contrário, é a própria questão que envolve um modelo de sociabilidade que parece ser elevado aos céus como um espírito absoluto, conforme Hegel pensava. E nesse sentido, os partidos políticos não passam de agências do próprio Estado, o partido, seja ele qual for, está na exata medida das condições de reprodução do Estado e do sistema do capital. Que bom seria, de fato se o PT fosse banido da esfera da política institucional, ao menos, como os movimentos anarquistas, teria alguma possibilidade de reencontrar o mínimo de decência que perdeu ao longo de sua trajetória. E a cidadania oferecida como uma conquista de direitos pelos cidadãos, representa, em última instância, o reconhecimento formal de que este cidadão se submeterá juridicamente a um espectro de explorações oficializadas e legitimadas pelo Estado-nacional. Fazer com que todos sejam reconhecidos pelo Estado é, forçosamente, enquadrar todos nós no âmbito da legislação exploradora do trabalho abstrato. Esse Estado iluminista que tem na carta dos direitos humanos uma ordem e uma chancela para a exploração em senso-comum sequer é tocado, sequer é combatido. Portanto, no meu entendimento, nossas críticas são de uma positividade que reforça as condições de existência do Estado. Não lutamos contra a dominação sistêmica, lutamos sempre de forma tópica e acreditamos que nossas forças não podem jamais ir além do microcosmo que nos rodeia. Exigimos do Estado condições de vida. Mas, paradoxalmente, as condições de vida são um mecanismo que escamoteia a dominação total, uma vez que o Estado não pode promover a justiça social sendo o anteparo do próprio capitalismo. Esquerda, direita, fascistas, nazistas, grupos religiosos, todos parecem não perceber que o problema não é subjetivo e sim da ordem da exploração global, seja lá o que for, o fato é que o sistema do capital suga quem quer que seja e utiliza o Estado como mecanismo garantidor das condições gerais de produção. São irmãos siameses! Uma vez que o capitalismo alcançou a totalidade das relações, alcançou a hegemonia num processo histórico sem nenhum confronto para a sua real superação, uma vez que o sistema se tornou uma tautologia social, fica cada vez mais difícil e desesperador ficarmos sem o Estado, daí a destruição psicológica dos sujeitos sociais, cada um à própria deriva. Não encontramos saída porque cremos que a saída é pelo Estado, seja ele gerido por quem quer que seja. Este é o grande desafio da humanidade. Estamos presos a uma sociabilidade que nos reduziu a um punhado de direitos e resistimos no interior de um sistema que está para implodir e permanecemos positivamente, criando negações abstratas para nos apegarmos ao que ainda resta. Dentro dele não há saída!

domingo, 6 de março de 2016

A nova ordem jurídica e política

Por Atanásio Mykonios


Depois de algumas semanas sem postar nada aqui neste espaço, pensei muito e ainda fico confuso. No entanto, os últimos acontecimentos me levaram a pensar e diversos aspectos do nosso contexto.
Que nexos são possíveis de serem estabelecidos uma vez que a situação política parece cada vez mais caótica? A partir de que ângulo posso pensar e analisar o que está acontecendo?

Um dos aspectos mais significativos que foge ao alcance crítico da maioria é o ordenamento jurídico. O chamado Estado democrático de direito é, em grande medida, uma espécie de falácia histórica monumental, que serve como pano de fundo ideológico a fim de escamotear as reais condições em que se processam as relações de troca na sociedade capitalista.

Em tempos de calmaria econômica, as leis aparentemente servem como um arcabouço garantidor de determinados direitos que, até certo ponto, são invioláveis. Mas, no subsolo social, a prática da justiça ganha contornos diversos e as instituições estatais que promovem, aplicam, executam e garantem o direito são, na mais das vezes, institutos que não preservam a execução com as mesmas medidas.

No Brasil, temos um histórico de arbitrariedades contra os pobres e negros que atinge às raias do extermínio, do genocídio e do encarceramento em massa, sem que a sociedade se volte contra essas atrocidades cometidas pelos aparatos do Estado-nação e seus congêneres regionais. Em outras palavras, o direito é violado constantemente.

Mas, ao que tudo indica, parece haver uma normalidade jurídica que é praticada na superfície da sociedade, onde determinadas camadas podem usufruir do Estado democrático direito, enquanto o resto vive às escuras e não recebe atenção devida. Assim, a máquina judiciária anda em concomitância com essas camadas que estão no campo visível das relações de poder e da institucionalidade. É para essas camadas, de alguma forma, que o jogo de poder e de forças ocorre aparentemente à luz do dia.

Mesmo assim, esse ordenamento sempre corre determinados riscos de, em condições normais, sofrer o ataque de grupos com o objetivo de desestabilizar alguma normalidade a fim de implantar uma nova ordenação política, que visa, sobretudo, garantir novas condições legais para a aplicação de medidas econômicas extremas.

Ou seja, a mudança na aplicação das leis quando atinge determinados setores, deixando outros, na mesma condição, fora do alcance da lei, implica a estrita finalidade de impor uma nova ordem jurídica que garanta uma nova ordem legal econômica, pois a atual não serve mais aos interesses estruturais. Com isto, o que temos é um ataque às condições regulares ou normais da vigência do direito e da sua aplicação.

Especialmente no Brasil, as leis sempre estiveram abaixo dos interesses das elites econômicas e políticas, e isso não mudou, aliás, continua com a mesma liturgia, ganhando apenas novas formas de ação. Some-se a isso, de modo consistente, o fato primordial de que a verdadeira luta está sendo travada no campo dos interesses do grande capital que ataca frontalmente o país, isto é, o escopo é reduzir o preço geral de tudo que o Brasil produz e serve com suas empresas.

O campo de batalha, por enquanto, é o institucional, compreendendo as esferas política e judicial. Se os capitalistas e gestores puderem fazer o ataque mantendo suas mãos limpas, por meio das mudanças nas duas esferas, muito que bem. Daí o avanço não exatamente dos conservadores, mas dos neoliberais e dos ultraliberais que promovem as mudanças radicais no campo jurídico a fim de garantirem seus objetivos – fim das políticas públicas e sociais, congelamento ou mesmo corte de salários, barateamento e sucateamento das empresas nacionais (privadas e públicas), endividamento, privatização da saúde e educação, aumento do tempo para a aposentadoria, mercado desregulado, etc., ou seja, capitalismo puro.

Mas se não for possível conquistar e transformar o Brasil num mercado puro, então o remédio deverá ser outro, a violência direta.

Ao violar dispositivos legais, a fim de cumprir com parte de investigações, o aparato estatal, judicial e policial, aponta para a tendência a um modo de agir pretensamente discricionário, me parece ser o sinal de um aparelhamento paralelo que assume o caráter preposto dos grupos que travam a batalha em favor dos interesses do grande capital. É o sinal, também, de que ao chegar a esse ponto, não se trata mais de um grupo minoritário, revela-se, aqui, uma estrutura que dificilmente será barrada porque atingiu as esferas institucionais como uma ramificação do poder econômico sobre o jurídico.

A mecânica desse processo dificilmente será barrada ou destruída. Ao contrário, sua trajetória será o confronto direto porque tem poder para tanto, assim como tem a proteção de amplos setores do poder econômico que visam estabelecer as relações causais para, em conjunto com o ordenamento político institucional, garantir a execução do plano de desmonte do Estado-nacional e da economia em geral.

Ainda há muito por vir!


quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Por que você reagiu?

Por Atanásio Mykonios

Aí você conhece um sujeito boa-pinta num bar qualquer, entre outras pessoas. E ele parece ser uma pessoa agradável e razoavelmente bem articulada. Também, no começo da conversa, você encontra alguma afinidade, afinal, exercem a mesma profissão, só que em lugares distintos, talvez, diametralmente opostos. Sim, porque certas profissões podem colocar os trabalhadores em lugares muito distantes a ponto de não haver nenhuma relação social entre ambos, de tal sorte que, podem até se encontrar fortuitamente, mas não se reconhecerão como trabalhadores de um mesmo ramo de especialização. Então, depois de alguns minutos em que não parece haver possibilidade de uma afinidade ou solidariedade, o sujeito dispara a dizer que você não se enquadra. Mas o modo que esse sujeito lhe diz que você não se enquadra afeta, sobretudo a normalidade de que se espera de uma boa convivência social em ambientes públicos. O sujeito em questão traça um quadro sociológico da sua condição física e a partir desta, ele desenvolve um rosário de conclusões, todas a partir de uma premissa que para ele é inquestionável, a saber, de que você é uma mulher que não pode vencer na vida porque é gorda! Papo reto! Sem mais, o vaticínio está dado. As consequências são as mais nefastas.

Primeiro, você não é feliz, porque é gorda. Segundo, não pode ser admirada, porque é gorda. Terceiro, você não pode ser bem-sucedida profissionalmente, porque é gorda. Quarto, já que você não tem muita saída, pode aceitar qualquer coisa que lhe é oferecida, porque é gorda. A gordura é uma maldição na sociedade atual. Somos tratados e julgados pelo nosso comportamento e não atinamos para as perversidades que a sociedade produtora de mercadorias produz e nos empurra. O gordo, ou o obeso, é julgado e condenado, exatamente porque parece não ter limites. Como se alguém nesta maldita sociedade tem algum limite no que concerne a preconceitos, ignorâncias, estupidezes, burrices, etc. O pior, o sujeito se considera bem-sucedido. A ele tudo cabe, porque não é gordo.

Mas o problema não reside apenas nessa questão. A gordura é tratada como uma doença, justamente por aqueles que a mantêm como negócio lucrativo. O sujeito ainda destila seu despudor ao tratar a mulher como um simples pedaço de carne que não poderá ser feliz se não emagrecer.

O sujeito em questão não se considera um pedaço de carne, mesmo sendo magro. Talvez ele se considere feito de outra substância que não carne. Talvez a carne desse sujeito não engorde nem empobreça. Talvez a ciência tenha descoberto uma nova fonte de carne, uma carne marciana ou uma carne venuziana. Porém, ao que me consta, carne humana é, indubitavelmente, carne humana. A carne humana contém, num determinado lugar de seu espaço, algo chamado cérebro e dentro do cérebro, consciência e esta está ligada a uma coisa chamada mente. A mente se conecta com o mundo. A consciência não é consciência de um ou de outro. O sujeito, com carne e osso, está num mundo, num mundo de relações sociais. Poder, dominação, consciência, conhecimento, entendimento, essas coisas passam pela carne e pelo cérebro, e pela consciência e pela mente.

Contudo, na maioria das vezes, os sujeitos não têm noção do seu corpo. Acreditam no que lhes dizem a respeito do seu corpo e de sua carne. Passam a acreditar que pessoas gordas ou obesas, pessoas negras ou amarelas, pessoas com deficiências ou de orientação sexual diferente, devem ser, de alguma forma, punidas. Sua carne, seus músculos, e o resto, não diferem. O que podemos dizer então, é que há outros motivos para o sujeito lhe dizer tudo o que parece ter-lhe dito abertamente.

É evidente que esse sujeito, bem-sucedido, ao que parece, lhe disse certas coisas que não foram produzidas pelo seu cérebro de imediato. Ele teve tempo para elaborá-las, teve tempo para pensar e chegar a essas conclusões e certamente a outras que ainda não teve tempo de revelá-las. Ele está certo do que disse, pensa assim, vê o mundo e ao vê-lo, percebe que sua teoria está certa, além de que compartilha com pessoas diferentes, com carne e cérebro, das mesmas conclusões. Para ele, pessoas gordas sofrem e são infelizes. Mulheres gordas são duplamente infelizes. Mas temo que a situação não seja apenas o que a superfície nos mostra.

Além disso, é preciso não olvidar que a carne é submetida a todo tipo de substâncias, algumas alucinógenas. A carne ingere também carne, geralmente de outras espécies. Geralmente, também, os seres humanos, ao ingerirem substâncias alucinógenas, como líquidos estranhos, tendem a cometer erros e absurdos ainda mais estúpidos e, ainda geralmente, costumam imputar e reputar a essas substâncias, seus próprios erros e suas improbidades sociais, praticados em casa e nos bares e nas ruas e nos estádios e em lugares abertos ou fechados. Mas, também, as substâncias, de alguma forma, liberam o que está escondido ou potencializam crenças e visões de mundo bem definidas.

Sim. Porque para alguém chegar a pensar e ter essas supostas certezas, é porque houve um processo gradativo para que tais complexidades fossem formadas e consolidadas no cérebro desse sujeito que também tem carne e gordura.

O pensamento preconceituoso não ocorre apenas por ignorância, mas por adesão. Adesão de classe, de raça, de poder social, de poder econômico, adesão de grupo, adesão estéticas, mas, sobretudo, por meio de instrumentos sociais bem organizados e juridicamente estruturados historicamente. Por isso, é certo que outros sujeitos com a mesma constituição carnal pensem da mesma forma. Quem pratica segregação e preconceito exerce, de alguma forma ou de outra, poder social, poder político, poder econômico, poder religioso, poder familiar, poder sobre os trabalhadores. Pois é disso que se trata, em última instância, poder sobre quem vai produzir o quê. Poder sobre a riqueza e a pobreza. Poder sobre a força-de-trabalho em geral.

Há uma conjugação de elementos, tortuosamente construídos, que se agregam ao pensamento que não tem nada de científico, até certo momento, mas parece conter elementos sociológicos e históricos em profusão. Sim, porque, por  mais que a ciência pareça neutra, ela é estruturalmente mantida por meio das forças de produção e daqueles que detêm o poder ideológico sobre as massas e os sujeitos sociais.
Ademais, há outro ponto a ser pensado. Podemos dizer abertamente o que pensamos? É lícito dizer abertamente tudo que nos vem ao pensamento? As pessoas realmente dizem o que pensam umas às outras, ou selecionam o que dirão e para quem? Podemos dizer para qualquer um o que pensamos? É óbvio que não! A prática social nos mostra que não podemos fazer isso, sob pena de sermos achincalhados, defenestrados, punidos severamente, agredidos física e psicologicamente.

Pois, o sujeito em questão não diria o que disse a você, se estivesse numa roda de pessoas todas gordas, mas fossem juízes e juízas, ou delegadas e delegados, todos obesos. Não, certamente não o faria, não teria coragem, porque o cálculo econômico e jurídico falaria mais alto e ele se conteria. Assim como, geralmente, não batemos ou agredimos pessoas maiores que nós ou que estejam em bandos maiores que os nossos, a não ser que sejamos esquizofrênicos ou dementes sociais. Geralmente os sujeitos sociais costumam agredir crianças, pessoas fisicamente em condições inferiores, como as mulheres em geral.

Mas eis que após tudo isso, você não se conteve e meteu a mão na cara desse sujeito social, com carne e cérebro. E certamente a carne dele sentiu algo. O que, para muitos foi um escárnio, para outros, foi um ato heroico. Mas para a justiça, não se sabe ainda, uma vez que depende da interpretação das leis vigentes. Qualquer agressão física é passível de punição. Mas após séculos de dominação e imposição do poder masculino, você decide resolver o problema da mesma forma como os homens sempre resolveram e, de certa forma, sempre foram protegidos.

Aqui, entramos no problema da civilização. Como a civilização avança ou progride no que concerne a eliminar a violência, a segregação, a dominação ou a exploração? A sociedade liberal capitalista parece ter encontrado nas leis um modelo que parecia exemplar. Mas ao ser aplicado, mostrou-se ineficaz. A aplicação, na prática, não gera igualdade nem isonomia. Aliás, nunca o fez. Mas a sociedade, em geral, acredita no sistema das nossas leis, mesmo sabendo, de forma intuitiva, que esse sistema não funciona.

Então, o processo civilizador deve encontrar outras formas e as encontra ao longo da história, à medida que as pessoas e os grupos defendem seus interesses. O processo civilizador é uma luta social contínua, uma luta em que os atores ora se colocam individualmente, ora se colocam com seus grupos, para se protegerem ou atacarem. Trata-se de um processo de conflito contínuo e não de um processo água-com-açúcar, o processo social da civilização é uma constante luta entre forças sociais com seus poderes de impor e de recuar ou avançar. Impor não apenas seus interesses, mas o poder para realizar o que lhes parece ser o melhor. Mas o melhor não é de fato para todos, nunca foi, por isso, temos de atentar para que estejamos sempre atentos ao poder e à dominação exercida sobre nós e de que forma temos algum poder para exercê-lo sobre os outros.

Lutamos pela justiça, mesmo cometendo injustiças. Mas o parâmetro minimamente digno é a capacidade que temos de observar o quão somos explorados ou oprimidos. Se há grupos que são permanentemente oprimidos e explorados é porque a sociedade assim se organiza, nas suas várias esferas, mas também joga um forte papel a ideologia neste caso, que nada mais é que o poder de convencer os oprimidos e explorados de que há algo de justo nesse processo de exploração e opressão. A civilização também caminha par e par com a injustiça assim como com a justiça.

Mas a história nos mostra que, de uma forma ou de outra, grupos oprimidos e explorados, mais cedo ou mais tarde, reagem, de muitas formas, mas reagem. A reação sempre virá, sempre ocorrerá. Por isso, sua reação é parte desse processo civilizador. De alguma forma, está aí a luta e por todos os lados, a reação é o fruto de uma história de exploração, dominação e opressão. Quer queiramos ou não, estamos vivendo esse momento em que os que têm carne e cérebro, digladiam-se, mas não podemos esquecer de uma coisa, que essa luta tem lados e tem faces razoavelmente bem definidas.

Com isto, o sujeito, de carne e osso, não se deu conta de que ao dizer o que lhe disse, desencadeou, ao menos em mim, toda essa reflexão e em você, toda a ira de séculos de dominação. Talvez fosse necessária alguma racionalidade para reagir, mas, ao menos eu sei que a racionalidade é a base de toda forma organizada e técnica de violência. Nazistas e fascistas sempre utilizaram as técnicas racionais de violência.


Sujeitos de carne e osso são sujeitos à ignorância e ao desprezo da história. 

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Para provocar uma crise

Por Atanásio Mykonios


Há muitos analistas, incautos e representantes da formação da opinião pública que, por ingenuidade ou má-fé, escamoteiam acerca das reais possibilidades de se criar uma crise para promover as condições propícias para a instauração de uma reforma de choque que leva em conta os interesses de investidores, banqueiros, industriais, latifundiários, etc. Desde há pelo menos 70 anos, esse modelo de ataque por meio da geração de pseudocrises é uma constante para desestabilizar os países e em seguida implantar o capitalismo com baixos custos e altos ganhos.

A Conferência de Washington, apelidada por um dos gurus da ideologia do ataque direto às economias nacionais, por Consenso de Washington, disse aos presentes, em 1993, em cujo encontro estavam presentes expoentes da economia mundial, de todos os continentes, que a geração de pseudocrises eram importantes, principalmente se fossem capazes de provocar enormes estragos econômicos e sociais a ponto de a sociedade, de forma submissa, reconhecesse a necessidade de remédios amargos. Ele disse textualmente:

Será necessário perguntar se faria sentido, de modo concebível, provocar deliberadamente uma crise a fim de conduzir os agentes políticos à reforma. Por exemplo, já foi sugerido algumas vezes, no Brasil, que seria válido alimentar a hiperinflação de modo a apavorar todo mundo e forçar a aceitação dessas mudanças (...) Provavelmente, ninguém que tivesse percepção histórica teria defendido, no meio dos anos 1930, que Alemanha e Japão entrassem em guerra para receber os benefícios do supercrescimento que experimentaram depois de sua derrota. Porém, será que uma crise menor teria exercido o mesmo papel? É possível conceber que uma pseudocrise cumpra a mesma função positiva, sem os custos de uma crise real?[1]

Não é preciso ser um grande analista econômico nem político para compreender e apreender o fato histórico de que as crises econômicas, vividas pelos países nos últimas 40 anos, são produto de uma engenhosa arquitetura política de ataques sobre todos os aspectos que constituem a formação do Estado-nacional e sua estrutura – política monetária, política salarial, programas sociais, dívidas ativas, empresas estatais, etc. Desde essas décadas, os Estados-nacionais estão mergulhados numa crise insolúvel e não haverá trégua até que todas as esferas do Estado-nacional estejam submetidas ao controle do livre e puro mercado.

Nesse sentido, não é de agora, mas sobretudo na atualidade, os capitalistas têm sido mais diretos no que concerne aos ataques aos Estado-nacionais, a voracidade com que têm avançado sobre as estruturas da sociabilidade estatal tem caracterizado o que posso denominar por um desmonte metódico e sistematizado do Estado-nacional.



[1] John Williamson. The political economy of policy reform. Washington, DC: Institute of Internetional Economics, 1994, p. 20.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

O que ensina a concentração de riqueza - as 62 famílias

Por Atanásio Mykonios


O capitalismo tem uma tendência à concentração de riqueza. O modo de produção pela extorsão do tempo de trabalho excedente, implica uma lógica de substituição do trabalho vivo pelo morto. Essa tendência, que se verifica no âmbito concorrencial, leva a um declínio em escala mundial da base estrutural da produção de mercadorias - o valor. O valor não é o preço, é bom lembrar. Quanto mais a base é corroída, mais aumenta a produtividade, a concentração de capital fictício aumenta, e pela concorrência, os capitalistas se autodevoram a ponto de a tendência ao monopólio de tornar uma realização. Aquilo que muitos liberais e neoliberais, supostamente, defendem, a saber, a livre concorrência como fundamento do capitalismo, se torna a própria contradição, a sua negação e destruição. O que eles defendem não se sustenta ao analisarmos a tendência do capital. Nem os capitalistas conseguem entender o que parece existir independente de sua vontade como praticantes do sistema do capital. Isso mostra que eles não têm controle sobre o próprio capitalismo, como gestores, apenas seguem cegamente uma cartilha entorpecida pelo fetiche. Ou seja, quanto maior a concentração, maior será a velocidade rumo ao limite interno absoluto do sistema.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

O poder do transporte e o transporte do poder

Por Atanásio Mykonios



Eu fico pensando que o transporte público tem uma característica muito peculiar no Brasil. É um oligopólio, em muito lugares é um monopólio. Mas é uma espécie de capitalismo patrimonialista. As empresas, em Mogi das Cruzes, por exemplo, não têm grandes investimentos com o transporte, mas mantêm o oligopólio, por quê? Porque assim elas controlam a cidade. Eu demorei a entender isso. As empresas controlam toda a cidade, elas podem ter outros negócios que são derivados do transporte. Controlar a cidade é saber quem é quem, o que faz, como faz, onde faz e quando faz. As empresas de transporte público, em todas as cidades, têm um poder imenso, sobre a máquina da prefeitura, sobre os vereadores, sobre as câmaras municipais em geral. As empresas de transporte público sabem onde estão os melhores investimentos, os melhores terrenos, as melhores localizações. Manipulam o valor dos imóveis, mostram o quanto é possível revitalizar essa ou aquela região. Por onde passa uma linha de ônibus, muita coisa pode melhorar para os moradores. Como se trata de um oligopólio ou um monopólio (em muitos casos), fica difícil elevar a produtividade do serviço para ganhar em grande escala. Por isso, as inovações são lentas e difíceis de serem alcançadas. A única coisa que parece que constantemente é alvo de mudança nas empresas de transporte é a força de trabalho. As empresas pressionam para diminuírem o valor da força de trabalho e é sobre essa categoria de trabalhadores que recai o maior peso de todo o processo de manutenção do negócio.

Outro detalhe é que as planilhas são maquiadas para fornecerem dados que não condizem com a realidade, para depois as empresas exigirem mais aumentos na tarifa. Qualquer monopólio exige muito esforço político, exige manter o poder político para manter o poder econômico. Todo monopólio mantém o poder com mão de ferro e é por isso que a repressão policial também segue na mesma proporção. Não há solução para o transporte público, não haverá enquanto as cidades continuarem a ser uma fonte de renda para as empresas. Outro aspecto importante é que as cidades, atualmente, estão organizadas para o automóvel. Há uma pressão para reduzir o transporte público, o número de veículos de passeio é muito grande em relação ao total de veículos (contando ônibus, caminhões, utilitários, etc.). A indústria do automóvel é um grande sistema que integra diversos produtores, fornecedores, distribuidores, etc., e seus interesses estão em criar uma cidade para o automóvel e não para a coletividade. A cidade, cada vez mais é pensada para o automóvel de passeio. Em muitos países há subsídios para o transporte público, em outros, ele é totalmente subsidiado pelo Estado, em outros é totalmente estatal. Aqui, os capitalistas olham os usuários como fonte inesgotável de renda e riqueza. Não abrirão mão de seus privilégios, mesmo sendo monopólios ou oligopólios. Os trabalhadores, na sua grande maioria, não são rentáveis para o sistema, são transportados para os seus lugares de trabalho e ganham pouco, não dá pra valorizar o sistema de transporte, no fundo ninguém quer esse tipo de negócio a não ser que seja um monopólio em grande perspectiva de segurança para o cálculo econômico.


Ao meu ver, a tarifa zero pode ser a única solução, mas mesmo assim, os trabalhadores continuarão a serem explorados em seus locais de trabalho, há pesquisas que indicam que com a tarifa zero, muitas regiões ganhariam em negócios, haveria maior circulação, os trabalhadores poderiam consumir mais. Mas isso também é um perigo, porque os pobres podem circular por todas as partes. Esse é outro problema nessa questão. O medo das elites em permitir que os pobres circulem com maior facilidade pelas ruas e pelos bairros também deve ser considerado para o cálculo econômico do transporte público, aqui em Mogi das Cruzes como em todas as cidades. Portanto, minha cara, há diversos elementos que contribuem para entendermos essa questão que é muito mais complexa e diversificada.