segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

São Paulo: Sociedade Anônima




Por que as cidades crescem? Um fenômeno urbano ganhou fôlego nos últimos 200 anos. O mundo cresceu e as cidades cresceram. Parece um fato, simples, cabal. Elas crescem porque, como princípio fundamental, são o lugar onde as pessoas acorrem para encontrarem seu lugar no mundo. Trabalho, oportunidade, necessidades, vida, dinheiro. A cidade é o ambiente do trabalho. Cidades se tornaram monstros orgânicos, se expandem na mesma proporção das relações sociais de mercado, amplia seus horizontes, a cada dia, novas ruas, novos
bairros, mais carros, mais trânsito, mais solidão, menos vida, mais indiferença.
A cidade é organizada para dar sentido ao ordenamento da mercadoria. Materialmente, a ordem jurídica da cidade privilegia a circulação de mercadorias, antes mesmo de garantir moradia, hospital, escola, creche, teatro. Todos esses lugares têm de estar concernentes com a sua viabilidade econômica. A circulação dos cidadãos urbanos tem como função garantir a produção de mercadorias – o trabalho alienado é a fonte da cidade
Cada praça e avenida, assim como os outdoors, as pessoas, os ambientes e as fábricas têm seu projeto determinado pela premissa da produção da mercadoria. A cidade cresceu em torno ao tempo social da produção industrial. Todos os tempos culturais passaram a ter como referência o apito da fábrica, o trabalho se tornou o centro da cidade e a lógica do mundo urbano tinha como eixo a produção de valor.
As famílias chegavam de todas as partes. Os nichos, as culturas distantes, os costumes, a tradição, essas coisas deveriam ser mantidas, mas todos tinham de obedecer a uma mesma determinação social, todos deveriam seguir a uma mesma relação social. Suas tradições, costumes e memórias deveriam estar a serviço da sociedade produtora e trabalhadora.
E a cidade se agigantou. Transformou-se numa extensa área de combate pelos postos de trabalho, pelos melhores lugares na fila, na hierarquia, na empresa e no bairro. A violência das cidades está desde o seu princípio, porque a luta intestina dos indivíduos, na sua fragmentação, os leva a uma guerra desarmada, que aflora em outros aspectos, com as armas que os urbanóides têm à sua disposição. São os carros, o controle burocrático dos transeuntes, os semáforos, a intimidação no trabalho, as chantagens e os assédios e, por fim, o alastramento da compulsão por todas as formas de prazer, a droga, o roubo, a fome, a exclusão social de todas as formas.
A polis sonhada hoje é um arremedo. A política local está mais distante que a representação federal. Vereadores se prestam como doadores de comida e remédios – assumem confortavelmente o papel de assistentes sociais privilegiados sustentados com o erário público. A política institucional não consegue atender à demanda de 11 milhões de cidadãos, conforme o IBGE (senso de 2010).
Solidão, angústia, a impressão nítida de que o abandono está presente, a qualquer momento os indivíduos podem ser tomados pela loucura. A gente que passa, a velocidade com que as relações ocorrem, a prevalência de uma ordem, ou, diria melhor, de um imperativo, o lucro, a mais-valia, o valor-sobre-valor, tornam a vida árida, seca.
A morte ronda por toda parte, mesmo assim parece haver um sentimento obscuro que persegue cada vivente urbano, cada qual, ao seu modo, conta com as forças que lhe são mais amigáveis para se manter vivo. Mas na verdade, ninguém sabe se voltará vivo à noite ou em qualquer momento do dia.
Ainda assim, há os que insistem na idolatria a esses lugares imensos, absurdos, concretados, com o orgulho de insanos que tentam convencer a si e aos demais de que há felicidade em lugares tão desprovidos de humanidade.
Os pobres são empurrados cada vez mais para a distância segura, de onde poderão consumir o transporte que os levará ao centro. Lá tentarão encontrar trabalho, entregando seus currículos, vagando por horas em busca que qualquer trabalho. E talvez por isso a cidade continue a ser este monstro, porque qualquer trabalho é possível, sempre será.
A cidade esconde uma vida subterrânea. Um blackout numa noite ou um movimento dos invisíveis pode parar a cidade, trazer pânico, terror, desespero. As enchentes, os deslizamentos, a febre, a doença. O ruído que atravessa a mente, finca a estaca da psicopatia e os indivíduos portam esse pau-de-arara socializado. De repente emerge uma multidão de desvalidos, de onde surgiram? Há uma frágil segurança nas cidades.
Cá entre nós, acima de alguns milhares de habitantes, qualquer cidade se torna inviável. Não sabemos o que nos espera se o capitalismo colapsar, sabemos como as cidades se arrastam na crise endêmica do sistema. Há como que uma necessidade de manter a crença de que a cidade ainda é o único lugar viável e possível, talvez não haverá outro e o que nos restará será reconstruir nossas relações entre tantos anônimos e desconhecidos.
Tornou-se um lugar comum o fato de elogiar São Paulo em seu aniversário. Programas de rádio e TV querem nos convencer de que a cidade de São Paulo é amada e deve ser amada incondicionalmente. Mais uma vez, a aderência a uma condição social que requer dos indivíduos um convencimento conveniente. Precisamos estar certos de que essa cidade como tantas outras, é o melhor lugar para viver.