domingo, 27 de março de 2011

Promessas e ingenuidade


Atanásio Mykonios


Após décadas de ditaduras, cerceamento político de toda espécie, censura de todo tipo, torturas, perseguições e assassinatos. Após dezenas de anos de tecnocracias revestidas de uma suposta legitimidade teocrática, parece ter chegado a hora de uma forma de democracia emergir das catacumbas da história. Sabemos agora pelas notícias que países árabes são sacudidos pelo frêmito da rebeldia e das reivindicações por liberdade. Sabemos que uma geração inteira foi subtraída ao progresso, à democracia e aos bens capitalistas.
Parece ter chegado a hora da cobrança. Meninos e meninas que cresceram em uma redoma que foi furada pelo encantamento do capitalismo. A profusão de quinquilharias, a falta de trabalho (mesmo remunerado, como forma abstrata da escravidão), as periferias inchadas, o mundo se fechando ao redor das próprias possibilidades, a falta de segurança. O horror de serem lançados à própria sorte criou a ebulição social que se espalha por todo mundo árabe.
Diante do capitalismo e da produção das mercadorias, tudo se torna fútil. A capacidade que a forma-mercadoria tem de penetrar em todas as sociedades e culturas é um fenômeno trágico e fascinante. Revela a fragilidade social em resistir a uma forma social que coloniza todas as relações e faz abdicar toda condição humana, prostrando-a em nome da suposta liberdade de mercado, que tem como verniz a liberdade democrática.
O capitalismo total põe por terra todas as pretensões de uma cultura. Absorve as tradições, aceita-as em seguida, mas as conforma historicamente aos seus próprios desígnios. Torna-se um substrato invisível, sustentando toda a arquitetura social. A política não apenas sucumbe como é controlada pela forma-mercadoria.
Essas ditaduras foram úteis e continuam a sê-lo porque garantem ao Ocidente e ao mundo da mercadoria a energia necessária para mover a máquina capitalista. Nossa tecnologia dependente ainda mantém uma relação estreita com o petróleo. E agora que a convulsão assola os territórios petrolíferos, a preocupação da mídia é garantir que o óleo não caia em mãos rebeldes ou que, em última instância, sejam garantidos os acordos e negócios. Que haja democratização, mas é necessário garantir a produção de combustível e mantê-lo sob o tacão das grandes empresas.
Na verdade, é isto que importa, fundamentalmente, os gestores não estão preocupados com a vida miserável dos jovens líbios, egípcios, sauditas, sírios ou jordanianos, ou mesmo quem quer que decida se rebelar contra as ditaduras sanguinárias. Importa garantir o fornecimento de energia e mantê-lo.
Mas, por outro lado, a crise do sistema empurra-o a abrir novas fronteiras de consumo. O mercado deve continuar a expandir-se para poder sobreviver. As possibilidades de desovar a superprodução cria cada vez mais desconforto. A produção de valor em escala planetária está em queda, abre a desesperada perspectiva de que os mercados têm de expandir sua força de penetração. Os lucros decaem vertiginosamente, por isso a produtividade empurra as quinquilharias para os pobres.
Se os países produtores de petróleo são ainda um esteio às condições de sobrevivência do capital, seus povos continuam em uma espécie de capitalismo tardio. Era importante para as empresas a manutenção desse tipo de estado totalitário, controlado por tiranias, famílias que se apropriaram das migalhas lançadas pelo capital e por grupos religiosos. Enriqueceram, mas mantiveram os negócios sob controle das grandes corporações e ofereceram aos seus súditos apenas as esmolas dos negócios.  
De certa forma, foram fiéis aos contratos firmados, controlados pelas empresas e pelos grandes acionistas, tiveram sua margem de mobilidade, não resistiram abertamente. Alguns financiaram movimentos fundamentalistas; outros simpatizaram com a esquerda, mas, de certo modo, havia um flerte com as tradições religiosas. No entanto, a cumplicidade com a forma-mercadoria, desde o início, mostrou-se uma faca de um gume só, expropriação da riqueza, acúmulo exponencial, repressão, controle e, sobretudo, um estado policial-religioso, enriquecendo suas famílias e prepostos.
Ironia da história. Até pouco tempo, muitos de nós erguiam a bandeira contra as potências ocidentais e pensávamos que alguns dos países árabes poderiam ser uma espécie de refúgio contra o imperialismo - a bandeira de resistência contra os porcos capitalistas. A história parece se repetir. Uma geração inteira crescida nas hostes de um capitalismo consumista e expansionista surge para cobrar as promessas.
Mas os gestores não estão preocupados exatamente com as promessas, especialmente em relação aos jovens. O sistema se encarregará de oferecer aos jovens e depois arrancar-lhes com a mesma graciosidade com que lhes encantou. A frieza com que o mercado encara a organização social não deveria espantar ninguém. Mas continuamos ingênuos, na pré-história humana, como Marx apontava à espera que de alguma justiça prevaleça sobre os negócios.
Nada pode espantar mais. A ajuda e a solidariedade dos gestores para com os rebeldes árabes não passam de cortina de fumaça. Os interesses são bem outros. Liberdade para que as mercadorias circulem, liberdade para que os governos garantam a extração de riquezas e sua administração, liberdade para transformar tudo em negócio.
Os sonhos continuarão apenas sonhos.