domingo, 19 de dezembro de 2010

Por que uma Crítica da Necessidade?

A partir de um determinado ponto da minha trajetória como filósofo menor, percebo que não é possível abrir mão, nesta fase da vida ou tergiversar quanto a algumas convicções que se tornam cristalinas. Estas são fruto de um processo de reflexão e comprometimento, o que não significa que se tornem efetivamente ordenamentos metafísicos, cristalizados, rígidos, mas são leituras do que considero importante acerca das minhas posições contra o capitalismo.
Tenho algumas predileções e afinidades na Filosofia, adquiri interesse especial pela Filosofia da Mente, assim como a História da Filosofia Antiga, a Linguagem, a Ontologia, mas, sobretudo, o que me move não é apenas uma motivação teórica que ensejaria uma pesquisa desmembrada do mundo real; para mim, há um elemento substancial que me move - a superação e o enfrentamento do capitalismo. Não me interessa a formulação de um sistema filosófico, mas a elaboração de um modo de pensar acerca do capitalismo em seu estágio atual.
Já não há como voltar atrás nesse propósito, pois envolve a totalidade da minha vida, o modo como observo o mundo e a realidade, a forma como me coloco no interior das relações, a totalidade da existência e os compromissos que estabeleço no meu cotidiano e o preço que até o momento tive de arcar em vários aspectos da minha vida. como John Holloway, acredito que a academia tem se furtado, cada vez mais, a uma atitude crítico-reflexiva não apenas sobre seu papel histórico, mas também quanto à contribuição que poderia dar a fim de enfrentar o sistema. Porém, a universidade tem sido inundada por gerações de gestores e pesquisadores que afirmam sua determinação em reproduzirem orgulhosamente o status do capitalismo sem sequer a mínima postura crítica. São gerações refratárias e o tempo tem se encarregado de amenizar cada vez mais as oposições, arrefecendo as vozes, criando a indiferença em favor das virtudes que o mercado estipula para os estudantes.
Também penso nos burocratas acadêmicos que forçam as estruturas para engordarem seus currículos, aumentarem sua produção, reproduzirem as formas estabelecidas pelo capital, a mercantilização do ensino e do conhecimento.
Meus estudos e pesquisas são inspirados no problema específico, meu objeto de estudo é o capitalismo, destarte manter um leque amplo de preocupações no campo da Filosofia, mas o ponto fulcral é este sistema.
Por um lado, ainda não encontrei os conceitos mais precisos para elaborar a teoria de que me proponho a fim de enfrentar os aspectos eleitos como problema no âmbito do sistema capitalista; por outro, tenho encontrado resistências em alguns ambientes que demonstram, historicamente, serem refratários às questões que tento elaborar. Mas nem por isso irei desistir das questões que norteiam a minha vida profissional, o meu modo de ser no mundo, o compromisso que assumi com a transformação das relações impostas pelo capitalismo.
Tenho me perguntado, insistentemente, qual é o elemento que me move a combater o capitalismo em minha profissão, tanto quanto em minha história de vida, especialmente. O que torna o capitalismo um sistema absurdamente estúpido, para além de tudo que a humanidade viveu até a sua chegada? A sua infinita capacidade de desumanizar os seres humanos seria uma resposta convincente? Teria ele arrancado de da Terra a sua infinita capacidade de nos sustentar? Seria talvez um monstro sem face, sem cérebro, sem determinação, que de modo absoluto nos conduz a um abismo? Seria pelo fato de produzir miséria, violência e devastação de forma irreparável?
Na atual conjuntura, para o meu trabalho, qual o problema que se tornou filosófico? Para seguir em frente, é preciso reconhecer que não é sem tempo que o capitalismo atinge novos problemas, tão iminentes quanto a emergência de sua realidade desumana.
Desde o seu começo, o capitalismo absorveu rapidamente a estrutura social, penetrou em todas as formações humanas, colonizou, com velocidades diferentes, as culturas, as tradições, transformou-se em linguagem comum, absorveu a perspectiva dos seres humanos, conduziu a um determinismo as instituições sociais, como a política, o Estado, e criou novos âmbitos que se tornaram elementos de sustentação do sistema, como, por exemplo, a mídia, as redes sociais, as corporações. Este sistema teve sua anatomia diagnosticada por Karl Marx, que identificou sua lógica interna, em outras palavras, suas leis que regem o capitalismo. Esta lógica não foi alterada até o atual estágio do capitalismo, mas diante do contexto contemporâneo, há novas exigências e enfrentamentos que devem ser empreendidos.
Destarte o fato de o capitalismo experimentar cada vez com mais frequência crises sistêmicas, suas lógicas internas não se modificaram. Podemos observar que o processo produtivo engendra novas formas de relação no âmbito do trabalho, novas tecnologias impõem novas relações para atingir os mesmos objetivos, a realização da forma mercadoria. Porém, internamente, o capitalismo emerge como um modelo que se expande indefinidamente e cujas regras não se modificaram, apenas assumem faces adaptáveis conforme o processo produtivo.
Apesar da crise prevista no que concerne à exaustão da utilização e consumo dos recursos, há um dado que não tem merecido dos estudiosos o interesse necessário que a realidade está a exigir de cada um de nós. Trato aqui do problema crucial da Necessidade, em todos os seus aspectos relativos ao capitalismo. A abundância produzida em decorrência de vários fatores é apenas um dos elementos recorrentes. A sociedade capitalista conseguiu arrancar da natureza uma quantidade de energia absolutamente inimaginável em comparação há 2 mil anos, quando as cidades gregas e seus habitantes eram sustentadas por um exército de escravos. Esses escravos faziam absolutamente tudo na unidade produtiva que pertencia às famílias gregas. Chegamos a um ponto em que o sistema arranca da natureza a energia infinitamente superior ao que os escravos arrancavam à época.
Atualmente estamos produzindo uma massa de produtos e há um ambiente fortemente marcado pela suposta facilidade de acesso e a tendência é responsabilizar exclusivamente os indivíduos pelo consumo.
No entanto, o processo de produção esconde um elemento ainda mais trágico nesta relação, o modo como produzimos revela cabalmente a formação da sociedade das mercadorias produzir valor, invertendo na origem da condição histórica, social, antropológica e cultural, a necessidade que, a partir do processo capitalista, fica dependente do modo pelo qual a mercadoria passa a ser a forma substancial da relação humana, isto é, o sujeito social e histórico por excelência. A lei do valor inverte a necessidade, pois é o valor que determina a necessidade e a sua real satisfação.  
Neste problema, é preciso ressaltar que a sociedade da abundância não se vê preparada para refletir sobre suas necessidades, não há clareza de quais de fato são as necessidades historicamente construídas e as que são efetivamente impostas pela forma-valor.
Muitos me questionam o fato de ter atribuído ao problema em questão a denominação de Crítica da Necessidade. Tenho de dizer que o termo crítica diz respeito às possibilidades de colocar à prova não a nomenclatura, mas o universo problematizado que enseja a necessidade. Também porque penso na iminência dessa questão que envolve um problema de ordem ética e, por fim, a crítica à sociedade produtora de mercadorias.
Muitas observações destacam o estranhamento quanto ao problema escolhido, que não tem um potencial temático. Afinal, se perguntam o que a necessidade tem a ver com a questão do sistema? Ora, é cada vez mais sintomático o fato, empiricamente observável, de que os avanços científico-tecnológicos afetam decisivamente a vida e a sua rotina, nos oferecem melhorias em todos os aspectos, criando um manto que encobre a relação entre valor-de-uso e valor-de-troca, tão significativo para a nossa sociedade.
A Crítica da Necessidade é, sobretudo, um aprofundamento de uma realidade que nos envolve por completo. A justificativa deste problema é crucial, meu entendimento é que a necessidade não diz respeito a uma decisão do indivíduo no emaranhado de sua própria fragmentação social. Não é a ele que se destina, de modo moral, a questão. Não se trata de uma atenção especial aos modos de consumo, ao aconselhamento ecológico e pretensiosamente sustentável dos modos de produção. Nem tampouco quero voltar minha atenção para as formas egocêntricas e alienadas de consumo, se bem que essas questões são sintomas das formas assumidas no capitalismo. Não quero que esta questão se torne um problema moral apenas. Quero que minhas indagações coloquem no centro o problema da necessidade no capitalismo, uma vez que observo duas inversões decisivas nesse processo. A primeira inversão se dá com a instituição da forma-valor e a segunda inversão, quando a forma-mercadoria assume as relações fragmentando os indivíduos e criando uma consciência social de que são eles os responsáveis pelo processo – daí a responsabilização destes.
Para enfrentar esta questão, entendo que é fundamental apresentar dois pilares que sustentarão o prosseguimento das minhas pesquisas. Não é possível elaborar uma crítica da necessidade sem aprofundá-los. Portanto, inicialmente é imprescindível abordar a ética que a forma-mercadoria introduz no interior das relações sociais. Não é uma ética qualquer, não pode ser simplesmente comparada ou tratada com os elementos da ética aristotélica, cuja lógica encontrava em Aristóteles uma ferramenta que levava o cidadão grego a uma ontologia rígida, necessária, o fundamento da razoabilidade diante das questões éticas. Ou dos conteúdos tomistas, que nos exortam a uma contemplação existencial do ser; muito menos devemos considerá-la como uma atenta formação kantiana, com suas determinações críticas que apontam para uma atitude do indivíduo moderno, que busca a verdade dos fatos na ordem dos imperativos, mas lança-o a uma aporia diante da impossibilidade da coisa-em-si. A dialética hegeliana nos oferece uma ética da conciliação, em ultima instância, que se torna um perigo diante da voracidade dos elementos constitutivos do capitalismo.
É um modelo social extremamente violento e entre outros aspectos, a ética que ele porta é incomparável, atinge a vida como um todo, não pode ser compreendida em partes, não pode ser estudada nesta ou naquela relação ou conflito, não pode ser encontrada uma resposta que atenda a demandas tópicas. Não é uma ética cuja ontologia se encontra em períodos pré-capitalistas, como a guiar condições e possibilidades de responder a uma formação social historicamente outra, pois ela subsume toda a realidade, assim como a intencionalidade dos próprios indivíduos atirados ao seu próprio isolamento. Atinge objetivamente a consciência, transforma a sociedade em indivíduos-zumbis, que obedecem a uma lógica absurda, mesmo tendo condições de mover a consciência para a crítica radical, imediatamente mergulha-a no cotidiano da forma mercadoria. Sua ética é a de todas as formas culturais a mais complexa, absurda e envolvente em sua totalidade, é um modo que atingiu a totalidade social como uma meta-cultura que permite, sub-repticiamente, a sobrevivência das identidades, que assume a estrutura local ou regional, que permite que a religião permaneça com seu discurso, que as entidades sociais também assumam suas pretensas identidades.
É uma ética corrosiva que simula a suposta autonomia dos indivíduos, que os atira a um combate ferrenho, sem trégua, sem descanso, que elimina o que há de mais humano, que arranca de cada um sua própria condição histórica, mas não lhes devolve sequer uma ínfima porcentagem dessa desapropriação absurda.
A ética é um dos pilares, que se conjuga com o segundo elemento que fundamenta a minha convicção, a saber, de que o capitalismo atingiu a totalidade, agora ele é uma tautologia social, não mais uma abstração mental, é um sistema totalitário, absoluto, que assume caracteres diferentes em ambientes diversos, mas a sua lógica atravessou o planeta de norte a sul, de leste a oeste. E quanto mais avança para a completa absorção da natureza e da vida humana, mais se torna repressivo. Para além da realidade econômica e das relações consequentes, estamos diante de uma realidade teratológica, absoluta, radical. Nas décadas iniciais do século XX a questão era a de compreender em que circunstâncias se dariam as formas de luta e superação do capitalismo e para isto era importante a apreensão da totalidade para destacar dialeticamente em quem residiria o protagonismo da ação.
Mas na atual condição, a totalidade do capitalismo engloba o seu início e seu estertor. Nesta estrutura, o proletariado e os trabalhadores foram absorvidos pela totalidade, isto não quer dizer que o trabalho foi subsumido a ponto de perder-se na história, ao contrário, o trabalho permanece como elemento contraditório, como o dado que fundamenta o sistema e que dialeticamente o mantém em suas transformações.
Esta totalidade implica considerar o capitalismo tanto do ponto de vista lógico como histórico. Ambas as categorias da realidade humana convergiram, a lógica do sistema historicamente atingiu o seu ápice e colonizou a consciência social, mesmo que tenhamos de considerar a crise que afeta o sistema. Uma decadência é visível, seus sintomas estão por toda parte, apesar de haver uma tentativa de reproduzir sua lógica interna.
Sou daqueles que creem que haverá um colapso, mas não posso vaticinar quando ocorrerá a débâcle total. Não sei exatamente o que isto que significar para a nossa história, mas suas implicações serão imensas para a vida humana.
Existe entre nós um sentimento de que o capitalismo incomoda. Existe, até mesmo, de modo visível, uma vontade de combatê-lo. Há os que historicamente se sentem herdeiros legítimos de uma espécie de luta especializada contra o capitalismo, mas tantos outros também o fizeram. Entre nós, muitos consideram que o capitalismo é dos capitalistas, estes seriam os donos do poder. O capitalista é o dono do SISTEMA. Por outro lado, o poder e a sua prática assumem características impressionantes no capitalismo, todo ele se volta exclusivamente para o ordenamento e a liturgia das condições de sua realização. Não sou capitalista, de alguma forma também me sinto vítima desse processo desumano.
Amplos setores da sociedade que aceitam a divindade estabelecida pelo capitalismo e o processo da necessidade social com a produção de mercadorias está totalmente absorvido pelos indivíduos. Assim, devemos pensar em superar o capitalismo, extirpá-lo, transformá-lo ou mantê-lo? O que essas ações têm em comum e o que de fato importa?
Quando afirmo que ele se tornou totalidade e consciência, quero dizer que há um motor próprio no sistema, ele não necessita de formação objetiva para que possa ser mantido, ele é estabelecido por metabolismo, naturalizado pela sociedade. A formação exigida é a da técnica necessária para a sua reprodução.
Por outro lado, há inúmeras formas de opor-se ao capitalismo. Parece que as críticas têm fundamento e todas procedem: há os que criticam o modo de produção; há os que criticam o modo como se consome; há os que acusam o capitalismo de ser explorador e espoliador e os que apontam o capitalismo como o único responsável pela miséria material dos homens; também que querem controlar o Capitalismo e os que desejam a riqueza gerada pelo capitalismo em outro sistema
Então pergunto: que parte do capitalismo queremos mudar? O que existe no sistema capitalista que deve ser mantido quando houver uma mudança de sistema? Que parte do capitalismo mais me incomoda?
De fato, o problema está na sua totalidade e não apenas em uma parte, na fragmentação de sua forma. Existe algo que pode ser aproveitado em outros futuros sistemas? O que incomoda é de fácil identificação?
Por isso, cheguei a este ponto e não pretendo tergiversar acerca do que me compete, em sala de aula, na vida profissional, no cotidiano das relações. Terei muito pouco a contribuir se não oferecer a minha própria leitura do mundo atual, mesmo que para isso tenha de experimentar o ostracismo e a marginalização institucional.