quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

A Psicopatia do Capitalismo

Não podemos deixar de compreender a fundo o nosso tempo. Mas é preciso fazê-lo tendo a consciência dos nossos próprios limites, limites estes impostos por uma forma de civilização que está chegando ao seu esgotamento. Por vários motivos históricos, fomos colocados num trilho evolutivo e acreditamos nisto. O progresso material, os bens de consumo duráveis, o capitalismo, a sensação de segurança, a certeza de que nada poderia nos afetar se produzíssemos em escalas cada vez maiores, a força da máquina, a expansão racional da produção industrial e, para completar, a grandiosa depredação do planeta, nos transformaram em psicopatas ecológicos e esquizofrênicos socializados.


Um modo de vida que está rapidamente ingressando em uma zona de crise. A crise de um capitalismo que foi capaz de potencializar, ainda mais, as nossas misérias humanas e revelar a condição profundamente monstruosa da nossa personalidade. A sociedade juntamente com seus indivíduos, vive uma loucura em busca da salvação e da segurança, pois há como que, alguma certeza no ar, escondida ou velada, que nos causa um mal-estar, uma forma de sentir, um modo de premonição de que esse estilo de vida e essa loucura exploratória que promove a idéia peculiar em evoluir para a vida de acúmulo, está agora  chegando a um ponto crucial.
Empresas, corporações, instituições, sociedades inteiras, estados, religiões, tudo parece estar envolto em uma mesma capa, ou uma meta-cultura do acúmulo, cuja estrutura dos negócios se vê compelindo os cidadãos a uma vida de estupidez, formalizando cada vez mais um distanciamento da própria totalidade humana, em busca do valor do valor do valor, ao encontro da mercadoria.
E para tanto, o capitalismo moderno e o pós-moderno tem sobrevivido convencendo as pessoas de que sua ética deve ser a ética da mais-valia, para se chegar à mercadoria a qualquer preço, tornando as pessoas em um complexo compêndio de pequenas e grandes tiranias, das mais banais às mais amplas e universais. A tirania do mercado, a patologia metodológica, que gera em cada um de nós a fornicação da própria consciência.
Somos obrigados, como escravos modernos, a obedecer à lógica doentia das empresas; devemos nos submeter à concentração de campos empresarias, pois os prédios, as salas de aula, os hospitais, as amplas salas de espera e os estacionamentos dos grandes centros de compra são a mesma coisa: tudo exala a necessidade de promover o mercado e a mercadoria. Somos todos retesados a fim de cumprir com um único destino inventado para nos fazer menores, reduzindo a nossa capacidade de ser o que devemos ser, produzindo em nós as piores perversidades, em troca de um salário, um programa de TV, um sexo mal feito, uma pizza requentada, um cigarro cancerígeno e uma porção de relações invertidas.
Pequenos delatores, grandes alcagüetes, solícitos em manter as empresas, formadores de opinião, mentirosos, puxa-sacos, omissos, voluntariosos em obedecer à lógica estonteante da mercadoria, cães de guarda do lucro, tudo isto em grau maior ou menor acomete cada indivíduo, em todos os níveis sócias, prorrompendo em grandes e esfuziantes demonstrações de fidelidade à empresa, à corporação, à bolsa de valores, ao dono, ao juiz, ao cura, a qualquer pessoa que possua o mínimo ou o máximo de poder capaz de nos garantir, de alguma forma, o acesso supremo às mercadorias.
Nossa ética familiar, ou qualquer ética que nos foi ensinada não tem qualquer sentido nesse mundo em que a única e “verdadeira” ética é a da MERCADORIA. Não importam os nossos sofrimentos, não importa se desejamos ou escolhemos esse modo civilizatório, o que conta para todos, sem distinção, é nos moldarmos a esta hostilidade que se tornou contrária à própria existência humana.
A privação é cada vez maior e paradoxalmente, parece haver uma ética que nos exorta a sermos mais e mais privados no meio público para angariar todo tipo de lucro e acúmulo no meio privado. Como bons sovinas, permanecemos à espera da próxima carniça. Como bons abutres sociais, rondamos a desgraça alheia para tirar qualquer forma de proveito. Essa privação é a expressão inconsciente de um reducionismo intelectual, pois o capitalismo, na sua gênese exige um ser em forma cretina. O cretino parece retratar com mais sutileza a capacidade que o nosso estilo de vida tem para criar personagens sociais.
Personalidades sem culpa, sem medo de ganhar e acumular, consciências predatórias, sem uma moral suficientemente limitadora. O cretino se nutre e é nutrido dessa formação social que se tornou global. Seu sonho é viver livre e rodeado de riquezas materiais, livre e autônomo, e, ao mesmo tempo, deseja ser alguém diferenciado, pois é disto que se alimenta esquizofrenicamente o próprio capitalismo, isto é, de uma vontade desesperada de sair da obscuridade e de romper com as amarrar da miséria e da indiferença.
É por isso que essa civilização hipertrofiada em sua consciência e expandida na sua burrice, continua a gerar doentes de toda ordem e de todas as cores. E é dessa forma, alimentando uma hipertrofia que sem perceber todas as bocas cretinas vão engolindo a vida, os direitos, a criatividade, a inteligência e juntamente com a burocracia, transformam a paisagem em uma insuportável infelicidade coletiva, colocam todos em um molde mercadológico e paradoxal. Das bolsas de valores ao mercado municipal, todos se comportam como se houvesse apenas uma verdade a pairar pelas mentes e almas humanas, a verdade de uma ÉTICA INSUPORTÁVEL. A ÉTICA que se alastrou como um rastilho de pólvora.
Estamos reduzidos a uma condição da qual até mesmo as abelhas ou formigas, se soubessem, ficariam estarrecidas. Mentem para nós, nos dão explicações vagas, fogem à responsabilidade, queimam as florestas, envenenam os rios e os animais, colocam antibióticos e hormônios na alimentação - estamos presos em um mundo de virtualidades, comprimidos pela necessidade de servir e mandar.
Parece que o planeta escolheu, nesses dois últimos séculos, uma única ética: A ÉTICA DOS COMERCIANTES. Desde então, foi preciso educar gerações inteiras, foi necessário subverter todos os paradigmas construídos a partir da experiência que se deslocava por milhares de anos, foi imprescindível impor uma ética a todos. Não apenas uma ética do indivíduo, porém, uma que fosse imposta com o objetivo precípuo de nos converter em comerciantes. Vendedores e compradores de coisas, de idéias, de palavras, pensamentos, doutrinas, crenças, fé. Qualquer coisa deveria ser comprada ou vendida, até mesmo nossa consciência, nossa vida, nosso próprio eu.
A lei, a justiça, a atividade humana, o fazer coisas, e pensar coisas, o criar a arte, até mesmo a loucura devia, então, passar pelo crivo de uma ÉTICA UNIVERSAL. Do Oriente ao Ocidente, a marca fundamental do homem moderno, a sua alcunha, seria a ÉTICA DO MERCADO. Não há outra, nossas crianças não conheceram outro mundo, não viveram em um lugar público, numa praça em que todos viviam de acordo com limites sociais.
Não há limite, o limite é VENDER E COMPRAR, conforme as regras de um jogo perverso, hostil à própria condição humana.
Fomos capazes de criar um modo de vida possivelmente inumano. Tão inumano que nos afastamos de nossa própria forma de ser, criamos um pássaro artificial, para voar, sem se dar conta de que este pássaro não tem muito tempo de vôo. Ao contrário, nossa brincadeira de voar começa a nos custar muito caro. Tão caro que até mesmo as nossas melhores invenções poderão ser desperdiçadas por nós mesmos, pois nossa cegueira não nos deixar perceber que esta ética nos condicionou a uma vida de robôs, a uma civilização a-crítica, sem qualquer possibilidade de olhar para si, mecanizada.
Ironia! As máquinas que deveriam nos abrir as portas da liberdade, dando-nos a possibilidade para não nos fatigar mais, simplesmente continuam a nos retalhar a própria consciência. Passamos a imitar o comportamento maquinal, conduzimos nossa vida para um turbilhão inconsistente de angústia, depressão, intoxicação social. Nossa ÉTICA nos empurrou para próximo de um precipício.
Deveremos escolher, mas esta escolha nos custará caro. Custará a própria ontologia do ser moderno. Dessa escolha dependem os mares, os ares, as montanhas, os rios, as florestas, as espécies, a sobrevivência, custará a vida de bilhões. Não teremos como fugir a estas escolhas e aí seremos obrigados a voltar os nossos olhos para aquilo de que fomos capazes de criar. Criador e criatura deverão se encontrar, não há como escamotear este vaticínio, pois mais cedo ou mais tarde, nossa condição chegará a um impasse.



A reação pode ser intelectual ou natural – fisiológica poderíamos dizer. Se continuarmos nesta toada, o mundo não terá a quem legar a sua própria história. As violações que foram provocadas pelo progresso material hoje não se justificam. De alguma forma, no início de nossa trajetória industrial e capitalista, fomos compelidos a acreditar na invencibilidade da natureza e nas capacidades infinitas dos seus recursos. Mesmo assim, com toda a nossa ignorância, parece não termos percebido o beco sem saída em que nos metemos.
Construímos uma sociedade do concreto e do aço. Todo o conforto nos foi dado. Possuímos mais escravos em forma de energia, em nossa própria casa, ao nosso dispor, que toda a Atenas do século VI aC. Temos todas as condições de erradicar a fome, a miséria, de promover a democracia em toda o planeta e, no entanto, permanecemos estupidamente envoltos em nosso próprio egoísmo, em nossos sonhos controversos, em nossa vontade e pulsão de comprar e vender coisas e pessoas, prostituindo-as conforme nossos preceitos morais e religiosos. Estamos transformando nossa fé em mercadoria barata, barganhando conforme as ações e situações que se nos aparecem, a fim de garantir, em última análise, aquilo que imaginamos ainda nos pertencer por direito: A MERCADORIA.
E agora, todo o nosso discurso, todas as nossas verdades estão se consumindo rapidamente. Resta-nos, ainda, um arsenal de burrice e armas atômicas. Ainda teremos de nos apegar à nossa consciência pirata, às políticas de chantagem social, às condições extremas de submissão à mercadoria. Ainda precisaremos buscar a riqueza e sair do anonimato, mesmo que isto nos custe a dor da morte e do abandono. Precisaremos ser esquecidos por nós mesmos, em uma condição de impasse existencial, pois nosso poder e nossa força serão a nossa própria forca.
Mas isto não é o fim, porque haverá entre nós que ainda acredita na beleza humana, na maravilha da vida e na herança que nos foi legada por séculos e séculos de história, de erros e acertos. Não é o fim, porque a consciência humana está tomando a consciência de si mesma e do que foi capaz de produzir com a sua racionalidade.
O ponto zero talvez não chegará. Talvez seja preciso um longo caminho. Mas as forças sociais e os próprios indivíduos começam a perceber que algo está fora do controle. Esta ordem mundial se converte em um emaranhado de problemas. Por todo lado, há quem deseje enfrentar o monstro e ele está sendo interpelado. Isto é auspicioso, de um modo marcante, construiremos um novo mundo, que já ruma para algo do qual ainda não somos capazes de entender. Ele virá, destarte todo o muro que se coloca à nossa frente. Milhões de pessoas têm demonstrado sua indignação ante a esse estilo de vida e a esta forma de civilização. É preciso agora, mais que nunca, sintonizar essas crenças e a indignação para transformarmos o capitalismo numa rotunda e numa imagem espectral que deverá ser deixada para trás. Mas isto não se faz sem consciência. E nosso papel, como pessoas ativas da filosofia, é abrir as consciências. Por isso, não podemos fugir a este compromisso.