sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Ditadura Imaginária

Por Atanásio Mykonios



A direita política e econômica no Brasil conseguiu uma façanha de tirar o chapéu. Desde o começo do ano passado, a movimentação indicava que uma agenda factual deveria ser imposta no cenário político. Era preciso que uma força política nova surgisse com potencial para derrubar aquilo que já se mostrava insuportável para as elites – o aumento da massa salarial, que, segundo o IPEA, já demonstrava estar acima dos rendimentos e da valorização do capital em geral. Não fosse apenas isso, seria preciso avançar sobre o estado-nacional, seria necessário desmontá-lo para repor ou recompor o capital em sua articulação orgânica.

Não bastava apenas um movimento direto contra a atual situação. Os gestores, os acionistas e os capitalistas associados utilizam novas estratégias, mais difusas, com capilaridade social mais eficiente, se valem de grupos diversos para alcançarem seus objetivos de controle e dominação das condições de produção, especialmente o aparato estatal. Parece não haver necessidade de um confronto direto, um golpe armado com forças regulares institucionais, parece ser mais importante criar condições não só ideológicas, mas penetrar na diversidade e capturar o que mais é latente no imaginário coletivo, pois no caso, a imensa insatisfação contra aspectos da vida política como administração, a imoralidade praticada pela esquerda, os desvios e a corrupção. Os nazistas utilizaram os mesmos meios para chegar à dominação total.



Cena do Filme Terra em Transe de Glauber Rocha
Fonte: História: Questionem as Fontes 
(http://questioneasfontes.blogspot.com.br/2013/10/9-c-ditadura-militar-no-brasil-1964-1985.html)

Esse cenário construído metodicamente, precisava ser legitimado pelas massas, com a condição de que os meios de comunicação criassem as possibilidades de um discurso midiático capaz de atingir o cerne político, fortalecendo uma agenda política contra o poder estatal central e contra as esquerdas de modo geral. Para isso, era necessário um ideário muito bem articulado, em que teria como base uma suposta conspiração engendrada de há 12 anos, com a chegada do PT ao poder central estatal. Dessa forma, construiu-se, em concomitância à ideia de uma conspiração, a noção de que há uma ditadura de esquerda alicerçada na velha prática stalinista, formando assim a concepção de que o PT não passaria de uma organização comunista sanguinária, um partido antidemocrático, com caráter corrupto e ligado ao que há de pior na atualidade geopolítica. A leitura assimilada por parte da população e criada pela direita foi muito bem articulada, as massas incautas e principalmente aquela parcela da população semiformada na órbita da política, encontrou um veio para vomitar sua indignação difusa e abstrata, sustentada por uma construção instrumental do real e da política, historicamente descompromissada com a realidade e alienada ao movimento do capital, com nítido caráter despolitizado. Essa parcela da população nunca foi esquerda nem direita. Ela está no limbo histórico e foi inteligentemente capturada pela mídia que tem seus interesses em desmoralizar a esquerda e defenestrá-la do poder estatal central. Ocorre que agora a impressão que se tem, não generalizada, mas por parte dessa parcela despolitizada, é que estamos sob uma ditadura de esquerda, tão feroz que toda e qualquer ação ou corrupção é jogada na conta dessa ditadura que deve ser derrubada. E com isso, de roldão, todos que são de esquerda passam a ser identificados com a marca do demônio, e que devem, juntamente com o PT e os petralhas, serem destituídos, mandados embora do país, deportados, queimados, etc.

Uma das características do movimento fascista é encontrar um inimigo comum. Talvez parte da direita não tenha consciência da forma como o fascismo é construído, apenas uma parte, talvez não tenha clara a concepção de sua condição, no entanto, esse movimento que ora presenciamos não está consolidado na forma de um fascismo absoluto, diria, como alguns amigos afirmam, uma espécie de protofascismo. Além disto, outro elemento importante comparativo a esse modo é a reação raivosa que se assemelha à estrutura mental estabelecida pelo terrorismo. Para o terrorista, seja ele pertencente a uma célula, a um movimento, a um aparato estatal, seja lá o que for, todos são cúmplices, o que sobressai nesse movimento é o fato de que há uma caça a todos os que de alguma forma devem ser estigmatizados como esquerda. Daí, a partir dessa construção, a direita precisa chegar ao poder para enfim eliminar como numa guerra santa, toda a esquerda, que doravante será codificada com o nome genérico de comunista.

O mais interessante é observar que mesmo não havendo nenhum sinal de que estejamos sob o tacão de uma ditadura, esse contingente politicamente ignorante, passa a crer veementemente que a ditadura deve ser destruída. Esse grupo vê os atos da ditadura em todos os âmbitos da política. Passa a enxergar por todos os lados evidências cabais de que estamos presos a uma ditadura. Mas quais seriam estes sinais? Talvez o primeiro, para esse contingente, é a questão moral relativa à corrupção. A corrupção emerge como o sintoma de uma ditadura, em seguida, todos os elementos que compõem uma espécie de movimento conspiratório à esquerda, isto é, enxergam nas políticas sociais públicas uma evidência de que se trata de um movimento de massas para a sovietização do Brasil. Os fantasmas ganham corpo com a paranoia.

Assim, ocorre que a direita construiu eficazmente um modelo de articulação política que não necessita de grandes elaborações teóricas nem uma adequada compreensão da história ou da realidade. A partir das manifestações de junho de 2013, ela percebeu a grande oportunidade de transformar em realidade social algo estava nos porões, nos churrascos, nos bares, nas reuniões m família, etc., criando uma agenda real de movimentação e mobilização sociais. Essa condição não necessita, tampouco, de uma crítica sobre o próprio sistema capitalista, nada disto é relevante, apenas uma construção difusa, universal, que beira a uma espécie de metafisica religiosa. Me parece que isto basta para que esse contingente da população, que nunca teve contato com a política nem como militante nem como observadora atenta nem na forma de teoria, em sua prática social dispersa, ou que jamais teve possibilidade de uma reflexão crítica autônoma do real, é implicada e enredada numa forma de pensar e expressar jargões que não requer grandes articulações ou mobilizações sociais, a mente foi colonizada por esse vírus fascistoide.


O cretino social se apropria desse discurso e passa a vociferar, agregando a ele uma série de insatisfações como o crime, o estupro, a pobreza, a indolência, o merecimento capitalista, a rentabilidade do trabalho, o darwinismo social, a defesa da empresa, a destruição do estado-nacional, a apoteose segregacionista, a vigilância pequeno-burguesa em torno de comportamentos morais, contra a orientação sexual, etc. Atente para o fato interessante que todo o ódio se volta contra o poder central, há uma fuga da realidade, na qual o problema político se reduz a um governo e a uma condição universal, há o esquecimento das demais instâncias do estado-nacional, isto é, governos estaduais e municipais, e é nesta instância última que a grande articulação política do capital penetra de forma mais sub-reptícia na exploração das condições de produção. Assim, o germe desse ódio foi plantado e germina com muita facilidade e nós ficamos a apagar incêndios aqui e ali e parece não atinarmos para essa construção ideológica.