sábado, 23 de abril de 2011

As dialéticas que não se tocam – Ou a tara social da obediência ao trabalho

Atanásio Mykonios

O mundo contemporâneo se divide em duas esferas sociais, aparentemente distintas e que não se tocam, do ponto de vista dos indivíduos. Quero me referir ao modo pelo qual as relações humanas estão cindidas e atuantes no âmbito de uma esquizofrenia total. O amor entre as pessoas, o seu sexo, as afetividades, traições, a moral, constituem um mundo à parte daquele que visa à produção.
Parece haver apenas um lugar no qual podemos dimensionar nossas emoções, e o mundo inteiro joga todas as suas fichas nessa esfera das emoções e dos talentos pessoais. Buscamos desenfreados sentimentos que nos deem sentido à vida.  o anonimato é cada vez mais uma clausura infernal, ser esquecido é a maldição absoluta, como que abandonados, vivemos exaustivamente na onda de uma espécie de salvação. Necessitamos sermos salvos do inferno atual.
A sociedade dirige seus holofotes e luzes para um tipo de comportamento humano, gasta bilhões em programas de entretenimento, com debates sobre os mais diversos campos da mente humana, a fim de desvendar os mistérios e as ações humanas. A ciência tenta garantir respostas a todos os males, a indústria científica ganhou as telas, para cada problema, uma solução adequada, os novos gurus sociais se apresentam de jaleco e com linguajar técnico.
Gastam-se milhões de quilômetros em papel para auscultar a alma humana, vaticinar acerca dos novos rumos e tendências da sociedade. Quase sempre temos um mundo vivido com uma metafísica estonteante, que traga os indivíduos com sua consciência, cujo pensamento dominante é de uma autonomia diante da própria vida. O mundo se tornou, como afirmou Guy Debord, um imenso espetáculo, determinado pelo esquecimento da outra esfera do mundo das relações – o mundo concreto da produção de mercadorias, que nos é esquecido, que nos é escondido pela fonte eterna da felicidade.
Cada vez mais, o mundo das emoções, do comportamento, da atitude individual assume o controle aparente sobre o mundo concreto e é neste mundo que o consumo assume importância capital. É na dimensão do consumo que o ser humano moderno parece liberar suas taras e sadismos, dos mais variados; é quando ele se sente, de alguma forma, dono de sua existência, como se não houvesse qualquer relação com a esfera do trabalho.
É bem verdade que o mundo do trabalho é o lugar mais obscuro das relações humanas na atualidade. É no ambiente do trabalho, cindido entre a mais valia relativa e absoluta e pela estrutura de controle e exploração do tempo excedente, que a luta se configura – a contradição, como elemento fulcral do conflito que obscurece a humanidade. Politicamente, o modo pelo qual se dão as relações implica uma compreensão mais apurada e detalhada dessas mesmas relações.
A verdadeira política ocorre no meio do processo produtivo, pois a produção de valor sobre valor exige uma estrutura de administração da produção que leva em conta o controle rígido dos seres humanos, a hierarquização das instâncias do processo e a vigilância permanente sobe os trabalhadores. Isto resulta, fatalmente, em conflitos de toda ordem no âmbito da produção, não importando se se trata de uma linha de produção industrial, semi-manufatureira, ou em um complexo comercial com lojas de departamento, quiçá num ambiente burocrático estatal ou privado.
O cotidiano dessas relações fica escondido na superfície das necessidades sociais, uma vez que a sociedade rapidamente, na história do capitalismo, aliou o trabalho como fonte de honra e dignidade à produção de mercadorias. Interessante é perceber que historicamente o controle sobre o corpo e a mente dos trabalhadores se converteu, paulatinamente, em virtude denominada de disciplina.

Obediência e tara social

Vale aprofundarmos ainda mais esse problema. A disciplina implica obediência. A obediência, na sociedade do trabalho, parece ser uma qualidade para o indivíduo, que passa pelo capitalismo e adquire alguns bens duráveis em virtude da sua capacidade absurda de obedecer à hierarquia e ao condicionamento psicossocial. A relação social imposta aqui está longe do controle dos próprios indivíduos, vítimas desse processo. A idolatria pela obediência ao mercado transforma os indivíduos em medíocres. A tara se aprofunda à medida que observamos em loco as relações entre indivíduos que se situam no interior do processo produtivo, que podemos chamá-lo de ambiente geral de trabalho. Nesse mundo, a ordem social se transfere para um senhor interno criado para submeter cada indivíduo ao trabalho.
A desgraça reside no fato de que em grande medida, o trabalho, minimamente, garante o sustento, sendo então aceitável, do ponto de vista social, a sodomia sobre o próprio trabalhador. Com isto, toda sorte de vilipêndios e torturas corporais e mentais são experimentados de modo natural, criando uma aparente legitimação que obriga a todos a se submeterem formalmente a esta tortura. Não se trata apenas e tão-somente de apontar a hierarquia e suas ordens diretas ou indiretas. A forma como se controla o trabalho penetra substancialmente por todos os poros do corpo humano, dando-lhe a incerteza de que está confiante em suas atividades. Constantemente o indivíduo se dá conta de que algo lhe ocorre, com a impressão de que um fantasma o fiscaliza constantemente. Todos os trabalhadores são, em princípio e de começo, suspeitos quanto à sua capacidade de cumprir com tarefas que são impostas pelo processo de trabalho e sua estrutura.
O objetivo das empresas é muito claro, a saber, o produto final. Nisto parece haver alguma dose de objetividade, para não dizer com todas as letras que se trata de um objetivo preciso, a mercadoria. E aqui não importa se estamos lidando com batatas fritas, carros, remédios, câncer a ser tratado, listas telefônicas ou até mesmo a educação e o saber, importa que entre o input e o output (segundo terminologia adotada por João Bernardo em Economia dos Conflitos Sociais) algo ocorre de muito perverso e extremamente cruel.
A vida de cada indivíduo, mergulhado na esquizofrenia da produção, é a vida de um complexo jogo de poder e de resistências, tanto quanto o poder exercido pelos controladores do processo produtivo. Este poder não é um poder qualquer, é muito mais eficaz que o poder de polícia e, ultimamente, não parece haver mais a necessidade de exercê-lo com a brutalidade; basta apenas que a chantagem e a coerção exerçam sobre a consciência de cada indivíduo um volume de controle sobre cada ação e tarefa a ponto de criar restrições e autocensuras contínuas sobre cada trabalhador. O clima permanente de suspeita gera um autocontrole sobre os próprios indivíduos e parte dos conflitos não se dá em campo aberto, ao contrário, são jogos velados e muito bem articulados entre os que têm o poder de decidir e mandar e controlar e os que devem executar formalmente o trabalho.
Nesse meandro, o que ocorre é justamente uma gama de subjetividades, levadas em conta quando se trata de decidir acerca do destino de cada indivíduo no ambiente da produção. Isto nos leva a uma condição de extrema precariedade e de falta absoluta de autonomia por parte de cada indivíduo, mesmo por parte daqueles que exercem o poder do controle e da punição sobre os demais, uma vez que estes são obrigados a obedecerem a uma lógica determinista de obediência ao processo da mercadoria em geral. É possível elencar uma infinidade de ocorrências estúpidas e desumanas das quais são vítimas os indivíduos no ambiente de trabalho, mas todos os fatos que por ventura poderiam ser relatados aqui, não são suficientes para aquilatar a tragédia do trabalho e a sua psicopatia.
Para cumprir com os desígnios desse processo, cujo objetivo é a formação da mercadoria, a subjetividade do comportamento no ínterim entre a entrada e a saída é evidente. toda sorte de descasos, poderes, imposições, etc. É nesse meio que parece não haver uma lei que distinga as relações, a não ser o propósito de forçar os indivíduos a um sistema de exploração que também leva em conta as vontades individuais de cada hierarca. As decisões sempre encontram respaldo nos interesses maiores, no todo, na unidade do processo que é, em última análise, a chegada do produto à sua finalidade, ou seja, em nome de uma norma e de uma teleologia, os indivíduos se aproveitam, também, para prorromperem em ações subjetivas.
No entanto, mesmo que entre a entrada e a saída não houvesse tal subjetividade, o modelo social cindido do processo da produção, leva, por conseguinte, a um esforço necessário para controlar o indivíduo que, indubitavelmente, cada um dos envolvidos se sente premido pela obediência, até com fins de sua suposta sobrevivência no interior do sistema. Assim, parece da natureza da contradição entre a mais valia relativa e a absoluta, a imperiosa condição de promover o controle, a vigilância e a punição, vez que não se trata de um trabalho submetido à decisão dos indivíduos e suas necessidades, ao contrário, são efetivamente obrigados a cumprirem com uma rotina de produção, com tarefas estranhas, cujo desdobramento é a alienação do processo. Por outro lado, mesmo que haja um único trabalhador no chão de fábrica capaz de controlar todo o processo produtivo e suas fases, ainda assim, haverá exploração e sadismo, por conta do controle imediatamente necessário a fim de garantir a qualidade da mercadoria.
Aí, nesse jogo de poder, no qual, de fato, não se trata de um jogo em que ambos os contendores estão em igualdades de condição a fim de obter vantagens por meio das regras do jogo. Trata-se de um jogo puramente desigual, mas ambos, hierarquia e trabalhadores individualizados ou, entre a mais valia relativa e a absoluta, obedecem a uma lógica, mas isto não quer dizer que há um veredicto final, sempre estamos aqui a tratar de um jogo aberto, mesmo que, de modo geral, continuemos a imaginar que os trabalhadores individualizados percam frontalmente nesse jogo de poder.
De uma forma ou de outra, tem-se como certa a finalidade última do processo, que é a mercadoria. Pode haver luta interna a fim de aumentar as condições de trabalho e para aumentar as diligências em favor de um melhor processamento do produto, no entanto, volta-se sempre à condição necessária, isto é, a produção final. Tem-se, então, um problema que deve ser considerado dialeticamente, porque se juntam elementos da necessidade precípua, maquiados pela necessidade da mercadoria.
Em outras palavras, a luta interna, estabelecida na esfera própria do processo produtivo, pode chegar a um consenso e tudo volta ao ponto inicial, como se o trem voltasse aos trilhos, como se nada tivesse ocorrido. A luta interna tem sentido à medida que se refere a resistências cujo teor é o de combater a exploração do trabalho, enfrentar o tempo das atividades, resistir a ordens e determinações, mas devemos sempre considerá-las circunstancialmente, posto que somente em alguns momentos essa esfera é questionada na sua possibilidade de existência – um questionamento radical.