sábado, 25 de fevereiro de 2012

Uma tentativa de refletir o problema da NECESSIDADE

Atanásio Mykonios


Querido Rosenil

Embora o tema suscite uma série de questionamentos, penso que alguns elementos podem ser distinguidos no problema relativo à NECESSIDADE. Não tenho por costume dissecar um texto como se fosse eu um legista da contrariedade. Prefiro o grande debate sobre algumas ideias que percorrem o nosso diálogo, apesar de saber que em parte, as divergências têm um caráter na histórica leitura realizada pelos movimentos operários que tiveram inspiração no pensamento de Marx, por vezes fragmentado - pensamento exotérico.
 
A questão que me interessa, sobretudo, está no âmbito do Capitalismo. A NECESSIDADE entendida no interior de um sistema que, no meu modesto entendimento, inverteu o processo dialético da necessidade.
 
Inicialmente, as considerações feitas por você acerca da NECESSIDADE se encontram no campo de uma, digamos, ontologia dessa categoria. Para alguns setores da antropologia, da filosofia e da sociologia, sem contar as várias frentes da psicanálise e psiquiatria, tratam a NECESSIDADE como um elemento dado, conjuntural à espécie humana, condicionado às formas geográficas ou culturais. A NECESSIDADE como um elemento constitutivo do ser humano, parte de sua natureza intrínseca. 

A naturalização das necessidades.
 
Sim. Isto é um fato, mas não é sobre este fato que me debruço. O ser humano é uma espécie que se relaciona com a natureza por conta de sua NECESSIDADE. Essa relação é histórica e dialética, como pude apresentar em um artigo publicado no CEMARX, da UNICAMP, em 2010.
 
Nessa relação, o homem constrói sua história e faz a cultura. Em cada etapa histórica, a sociedade cria formas de extrair da natureza sua sustentação. Sem a natureza, penso, o ser humano não é, em qualquer possibilidade, não é nem será humano.
 
Mas o problema é que no capitalismo os indivíduos se situam entre dois polos do processo. Para isso, é importante compreender que o capital não se estrutura apenas pela concentração de riqueza e a exploração, especialmente pela não distribuição da riqueza. Durante muito tempo, e ao longo do século XX, as esquerdas lutaram pela distribuição da produção, criando a ideologia de uma justiça social da igualdade sobre do que era produzido, sem considerar o modo como tudo era produzido. Ou seja, pouco se voltou a atenção para o princípio ativo do sistema, o trabalho abstrato e o valor sobre valor, engendrando o mundo fantasmagórico das mercadorias.
 
Assim, o processo produtivo que é, na realidade, a condição sine qua non do capital, a autovalorização sob qualquer determinação, cria uma realidade na qual os indivíduos não mais têm controle sobre esta. A forma-valor inverte o contexto da necessidade, pois não é mais uma cultura que determina o que é ou não necessário, não mais a história de uma cultura que cria o espírito da necessidade. Mas é um sujeito histórico sem face, a sociedade do valor e da mercadoria. Nem mesmo podemos dizer que se trata de um conflito político entre os que querem e têm e os que não têm nada.
 
Os indivíduos, as instituições, os estados, o ordenamento jurídico, os sindicatos, os partidos e até as igrejas passaram a se submeter ao modo de produção do valor, que guia a ação e a consciência dos indivíduos. No primeiro capítulo de O Capital, Marx apresenta esse processo de forma magistral.
 
A reificação do processo social, a cultura, a linguagem, a estrutura das relações humanas, tudo isso está subsumido ao modo da autovalorização, uma obediência cega.  Além disso, o homem está preso a esta realidade, porque está entre a produção de valor (cega e autoritária, que reivindica tudo para si) e de outro lado, ele tem à sua frente nada mais nada menos que o mundo das mercadorias.
 
E o pior é que ele imagina ter a autonomia para decidir sua própria necessidade. Daí a característica social de culpabilizar os indivíduos pelo consumo exacerbado, como se estivéssemos num frenesi incontrolável e devasso do consumo.
 
Apesar de ser o mesmo indivíduo que se situa na relação, ele se divide em dois. Ele é, ao mesmo tempo, um trabalhador que produz valor sobre valor (e não exatamente coisas) e é, também, paradoxalmente, um consumidor, que adquire, não coisas para a sua necessidade (seja ela cultural, espiritual, simbólica, social, familiar ou pessoal), mas apenas mercadorias, que o transformam em coisa como as coisas que consome.
 
Essa cisão é o grande problema da complexa forma social adquirida por meio de um modelo que não é somente econômico.
 
Essa dura realidade é, por vezes, escamoteada ou é tratada como uma espécie de desonra à dignidade humana. Pois, onde já se viu nós nos compararmos às coisas que consumimos? Entretanto, não passa disso mesmo, desonrados, nada somos a não ser seres que reproduzem automática e cegamente um modelo social, imaginando que temos alguma autonomia para mudar o curso do capital. O capitalismo não é um motor distante, que não atinge a cultura, não atinge a linguagem, a gramática social, que não influencia a religião ou os mitos. Ao contrário, ele está em toda parte.
 
Então, qual é o problema político? Está na ordem do conflito estabelecido pelos mesmos indivíduos. Ora trabalhadores, ora consumidores. Mas esse é um dos conflitos políticos, não o mais importante, talvez, nem o mais insignificante.
 
Harry Cleaver, pensador americano, nos diz que a batalha política ocorre no interior do processo de produção, ali onde há uma hierarquia, onde há a necessidade de decidir o que se produz, quando, em que condições, para quem e como isso é distribuído. Isso vale tanto para uma linha de produção em larga escala, como para uma pastelaria ou um setor aparentemente não produtivo, burocrático. Mas no caso em especial, minha preocupação é acerca da luta encravada num mesmo personagem, dividido socialmente, entre produtor (e não entendamos aqui o proprietário) e o consumidor.

Como bem você mencionou, a política é um processo entre grupos e seus interesses.

A minha questão que é um problema contemporâneo, do qual não tenho uma resposta, nada próxima, por sinal, é até que ponto podemos compreender um enfrentamento do problema da NECESSIDADE no conflito entre as duas categorias sociais, compostas pelos mesmos indivíduos, a saber, trabalhadores e consumidores, uma vez que ambos constituem a contradição do mecanismo social do capital.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Uma interpelação acerca do último texto

Por Rosenil Barros Órfão*


Oi Grego... obrigado pela oportunidade da reflexão e do debate.... porém longe de querer desconstruir qualquer proposta... então lá vai...

Tenho dúvidas se a NECESSIDADE, seja um problema político. Me parece que o mundo da política dialoga com a cultura e nasce com a cultura. Isto se dá quando os grupamentos humanos começam a se organizarem com elementos cognitivos e não mais somente pelo instinto animal. Este é o momento que antecede a fala (palavra, verbo, nome de coisas, sinais emitidos com deferência a determinado algo, etc..) e a comunicação inicia um novo estágio. Começa a trajetória do sujeito. Inicia-se o fenômeno de poder dizer as coisas. Obriga-se, o primata, a refletir. Inicia-se a possibilidade do "pensar-se" para dizer. Aquilo que você chamou em um seminário que participamos de "vitória da razão" e no seu texto, lembrando a utopia iluminista: "emancipação da razão".

Tenho afirmado em meus diálogos ao "vivo e a cores" na atividade política, que esta é uma atividade sobre humana. Ou seja, não é uma atividade sobre-natural. Porém é acima de possibilidades humanas. Porém é uma tarefa de homens, não de deuses, se é que eles existam. E para executá-la com humanidade, somente é possível se for construída e exercida coletivamente no espaço geográfico concreto, e acessível, do primata tornado sujeito.

Espaço geográfico concreto e acessível é o que determinamos por território. Lugar onde ocorre a produção e a reprodução da cultura e tudo que a envolve, inclusive nossa nova condição de sujeito. Como por exemplo este primata, um pouco mais complexo, que voz fala. E tu que me ouve (lê). (mais complexo ainda... rsrsrs).

A política se estabelece para atender aos interesses que constroem as relações neste território. Porém, para ser exercida, e permanecer enquanto atividade política, deve fazê-lo de modo a garantir as necessidades. As necessidades são direitos básicos. Direitos básicos é aquilo que é necessário, ou seja, não é contigente dentro do universo social ou do território que se vive.

Se estes argumentos são válidos, posso afirmar que a necessidade é algo inerente ao nosso existir natural, primata, contrariamente ao que tenta determinar o mercado e a ideologia dominante, conforme você reflete, muito bem em seu texto.

Quando nos tornamos sujeitos, entramos em conflito, este com certeza permanecerá. Porém a NECESSIDADE, é algo que nos humaniza e nos prende ao nosso natural, e somente a partir dela que poderemos garantir interesses mais legítimos e em sintonia com nossas NECESSIDADES. Por conta disto a necessidade da luta política. (Fora esta questão da luta política que introduzo, temos acordo até agora, me parece).

Mas a luta política ocorre na arena da cultura enquanto espaço, e de nossa subjetividade enquanto materialização. A materialização da política se dá, então, de modo objetivo, em nossas ações e na adequação concreta de nossos interesses às nossas NECESSIDADES.

Neste sentido cabe ao primata, agora elevado a sujeito e promovido a animal político, tocar sua existência e acumular condições humanas para viver plenamente a satisfação de suas NECESSIDADES.

Aqui que gostaria de provocar um pouquinho. Pois não dou de "barato", com maior respeito a Adorno, que a política obrigatoriamente está subordinada às forças de e do mercado. Mesmo com a capacidade do sistema capitalista em criar "necessidades", e de algum modo, através de sua linguagem dominante, dominar vontades e interesses, esta força não transfere ao sujeito consumidor e ao mesmo sujeito trabalhador, suas contradições. As contradições me parecem ficar como predicado do sistema. E este sistema continua criando as condições para sua própria destruição.

Entendo que devemos aprofundar esta questão, e talvez, torná-la mais didática e mais acessível. Pois o problema da NECESSIDADE, que na verdade não é um problema, pois é da nossa natureza, pode vir a ser uma boa estratégia de apresentação de soluções políticas.

Quero dizer com isto que sua percepção, de ver na superação das NECESSIDADES, uma demanda ou um problema político pode ser a chave para valorizarmos nossa capacidade de viver e conviver com nossas necessidades.

Se isto é possível, fica claro a afirmação de Marx: o socialismo sé é possível na abundância. Neste sentido temos condições de promover o aprofundamento do debate atual sobre as "reais necessidades" para o sistema de produção e reprodução econômica e cultural, que deve deixar de ser abundante na criação de novas necessidades e ser mais eficaz na organização da política para sintonizar interesses e necessidades.
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Caro Grego.... não estou muito disciplinado para uma argumentação acadêmica... acho que o dia a dia do diálogo político me faz escrever e falar de modo um tanto desmedido.... mas mesmo assim gostaria de sua resposta... caso tenha conseguido me fazer entender....

Grande abraço.
Rosenil.

* Texto enviado por Rosenil Barros e que merece ser publicado em sua totalidade para que possamos responder e os leitores seguirem o debate acerca das ideias aqui propostas.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Necessidade, liberdade e submissão


Atanásio Mykonios

A necessidade revela, no atual contexto, uma objetividade que implica a sociedade das mercadorias, como seu fundamento. Theodor Adorno nos mostra que a totalidade que atingiu o sistema, impregna o mundo da subjetividade, pois está em jogo, também, uma crítica do sujeito e seu papel político na sociedade que produz mercadorias e cria uma naturalização desse processo, assim,

Quanto mais impiedosamente a sociedade se traveste de forma objetiva e antagonística até o cerne dessa situação, tanto menos se pode garantir qualquer decisão moral individual como uma decisão correta. O que quer que o singular ou o grupo empreendam contra a totalidade da qual eles são parte é contaminado pelo mal relativo a essa totalidade; e não menos quem não faz nada. No que diz respeito a isso, o pecado original se secularizou." (Adorno, 2009, p. 204)

Essa reflexão oferecida por Adorno nos remete à questão da crítica da necessidade, no sentido em que a ideologia da sociedade das mercadorias, em sua totalidade, assume um caráter decisivo na inversão em que se situa a consciência e a prática dos indivíduos. No pensamento adorniano, percebemos que o homem não é o sujeito, mas o seu produto se tornou historicamente o seu sujeito e que o conduz socialmente. Esse pensamento se reveste de uma vasta e rica compreensão das formas pelas quais o mundo da produção, da técnica, da ciência e tecnologia arrancam do indivíduo sua condição humana.  

Herbert Marcuse enfrenta o problema de uma estrutura imposta pela sociedade industrial, que abdicou de sua capacidade de impor a si mesma a reflexão para além de si mesma. Isto é ainda mais feroz se considerarmos o fato de que os fins são por eles mesmos, fins, tornando-se uma espécie de tautologia incondicional. Se havia, no início do processo industrial capitalista, uma oportunidade para a sua própria superação, a história nos mostra que, na atualidade, a oposição a esta forma social se tornou ridícula.

Se tratarmos desta questão, o capitalismo, na produção de mercadorias, impõe a necessidade absoluta. Este sentido absoluto leva a uma eliminação das contradições sociais em todos os seus âmbitos, cuja consequência é a criação de um ambiente de aquisição cega e que afeta as relações humanas. Seria de esperar, a propósito, que as condições de produção, sustentadas pela arrancada das pesquisas científico-tecnológicas, em consonância com as pressões das várias formas de concorrência (estrutural, mercadológica, salarial, empresarial, científica, trabalhista, sindical, estatal e de conhecimento) promovessem um amplo espectro de necessidades especializadas e, sobretudo, complexas.

Ao invés de criar as reais condições para a superação das necessidades, à medida que o ser humano tivesse possibilidade de se libertar das amarras sociais da necessidade desenvolvida pela expansão do valor, o sistema ultrapassa essa possibilidade e coloca um impasse na evolução do próprio sistema produtor de mercadorias. Naturalizando todas as necessidades, temos então a descaracterização de um processo que é, em suma, dialético – a relação entre o ser humano e a natureza e ambos com o processo social que, em última instância, atua sobre o político. Essa naturalização atinge os extremos do processo social, tanto o trabalho, que se torna absolutamente necessário, como o modo pelo qual se adquirem e se satisfazem as necessidades humanas. E nesse sentido, a ação política de ambos os lados, trabalhadores e consumidores, se torna difusa e contraditória. As ações políticas têm como pressuposto não os interesses sociais, mas o interesse do mercado.

Quem exerce o desencadeamento político não mais é a autonomia social, como mediadora da relação entre o humano e a natureza, mas a produção infindável de mercadorias, o próprio valor que exerce essa função, incinerando todas as construções históricas do processo da necessidade. Nesse sentido, Marcuse (1973, p. 24) salienta que

A liberdade de empreendimento não foi de modo algum, desde o início, uma vantagem. Quanto à liberdade de trabalhar ou morrer à míngua, significou labuta, insegurança e temos para a grande maioria da população. Se o indivíduo não mais fosse compelido a se demonstrar no mercado como um sujeito econômico livre, o desaparecimento desse tipo de liberdade seria uma das maiores conquistas da civilização. Os processos tecnológicos de mecanização e padronização podem liberar energia individual para um domínio de liberdade ainda desconhecido, para além da necessidade. A própria estrutura da existência humana seria alterada; o indivíduo seria libertado da imposição, pelo mundo do trabalho, de necessidades e possibilidades alheias a ele; ficaria livre para exercer autonomia sobre uma vida que seria sua. Se o aparato produtivo pudesse ser organizado e orientado para a satisfação das necessidades vitais, seu controle bem poderia ser centralizado; tal controle não impediria a autonomia individual, antes tornando-a possível.

Marcuse sugere um controle da produção destinada à satisfação das necessidades básicas. Considera que as liberdades individuais seriam ainda mais potencializadas, desde que houvesse a garantia das estruturas de produção. Mas, em que medida poderíamos garantir apenas a satisfação vital? Essa é uma das questões consequentes do problema político proposto por esta pesquisa. Os mecanismos atuais podem suprir as necessidades fundamentais, no entanto, o gatilho da produção de valor é contrário a esta ideia. O poder político para construir uma síntese social a fim de orientar as necessidades é um desafio importante que merece ser aprofundado nesse estudo.

Trata-se de supor uma sociedade organizada por meio de um governo capaz de ordenar e oferecer as condições mínimas a todos os indivíduos. Mesmo assim, seria necessária uma imensa força de controle e uma submissão a uma convenção social que transcende as consciências atualmente constituídas para a competição exacerbada e a individualização das necessidades.

A civilização industrial contemporânea demonstra haver alcançado a fase na qual a “sociedade livre” não mais pode ser adequadamente definida nos termos tradicionais de liberdades econômica, política e intelectual, não porque essas liberdades se tenham tornado insignificantes, mas por serem demasiado significativas para serem contidas nas formas tradicionais. Novas modalidades de concepção se tornam necessárias, correspondendo às possibilidades da sociedade. (Marcuse, 1973, p. 25)

As possibilidades são como que, um vislumbre de Marcuse. As novas modalidades convergem para dois aspectos cruciais. A incontestável colonização de todas as formas sociais pela sociedade das mercadorias e, conjuntamente, as liberdades institucionais que garantem o consumo, até para além do trabalho assalariado.

A liberdade de consumir está diretamente ligada ao contexto das decisões intrínsecas ao capitalismo, tanto no sentido de sua macroscopia quanto no que se refere aos microorganismos que sustentam as relações dessa modalidade de existência social. Decisões constituídas por políticas de Estado, concentrações de poder, legislação ordenadora das condições de produção, circulação e consumo; provimento das empresas que mantêm a produção em larga escala, ideologia dessa sociedade industrial; fortalecimento dos meios de comunicação; tecnicismo apuradíssimo, tecnologia tautológica e ciência maquiada pela imensa generosidade em favor da espécie humana.

Por outro lado, a microscopia social garante a liberdade em termos mais sutis de controle e exploração. A começar pelas relações de trabalho, hierarquizadas necessariamente para que a produção prossiga, as forças de coerção para o trabalho e, especialmente, para a conformidade para manter um exército em prontidão, com o discurso da inconformidade do não-trabalho; as veladas incompreensões do meio doméstico; a ascensão da mulher nos meios de trabalho e de produção; os discursos engavetados pela estrutura cartesiana da espacialidade desvinculada, ou, a metafísica dos costumes dos discursos sem enredo relacional; os grandes modelos de investidura pessoal, que assumem a máscara do bem comum e se tornam referências para o mundo do consumo.

Ainda assim, tais liberdades são condicionadas. Não temos clareza acerca delas, ou como se constituem como expressão da racionalidade. Aliás, é na sociedade do Iluminismo que encontramos a grande utopia da razão, pois acreditamos que haveria condições de realizar a liberdade por meio da consciência emancipada.

Mesmo assim, há algo de aproximado entre o Iluminismo e a teoria marxiana, na medida em que ambos consideram a vida consciente como um dado fundamental para enfrentar a necessidade como problema dado à liberdade. Marx (2006) acreditava que a emancipação do proletariado, àquele momento, figura central do capitalismo industrial, se daria pela luta contra o capital, pela tomada do poder do Estado e também por uma construção histórica da consciência de sua própria condição de classe social explorada.

Daqui se depreende que todas as lutas no seio do Estado, a luta entre a democracia, a aristocracia e a monarquia, a luta pelo direito de voto, etc., etc., são apenas formas ilusórias que encobrem as lutas efetivas das diferentes classes entre si (aquilo de que os teóricos alemães nem sequer suspeitam, se bem que sobre isso se lhes tenha mostrado o suficiente nos Anais franco-alemães e na Sagrada Família; depreende-se igualmente que toda a classe que aspira ao domínio, mesmo que o seu domínio determine a abolição de todas as antigas formas sociais da dominação em geral, como acontece com o proletariado, deve antes de tudo conquistar o poder político para conseguir apresentar o seu interesse próprio como sendo o interesse universal, atuação a que é constrangida nos primeiros tempos. (p. 20)

O fetiche da forma-mercadoria, segundo Marx (1983) impede que os indivíduos tenham a nitidez acerca do que os oprime, os objetos falam por si, assumem a condução das relações humanas, na mesma medida em que são reproduzidos por uma lógica do sistema, acima da determinação individual.

Para reter o ouro como dinheiro e, portanto, como elemento de entesouramento, é necessário impedi-lo de circular ou de dissolver-se como meio de compra, em artigos de consumo. O entesourador sacrifica, por isso, ao fetiche do ouro os seus prazeres da carne. Abraça com seriedade o evangelho da abstenção. Por outro lado, somente pode subtrair da circulação em dinheiro o que a ela incorpora em mercadoria. Quanto mais ele produz, tanto mais pode vender. Laboriosidade, poupança e avareza são, portanto, suas virtudes cardeais, vender muito e comprar pouco são o resumo de sua economia política. (p. 253)

O automatismo das relações não possibilita a observação do real movimento da necessidade e, por outro lado, a atividade produtiva cria uma subjetividade que os indivíduos se coloca no mundo, traduz essa realidade naquilo que Lukács chama de reificação, isto é, a coisificação da vida, das relações humanas, objetivando um modo abstrato de produção e trabalho. A reprodução automática, a dominação sem sujeito e sem face que qualifica a mercadoria como elemento estruturante da vida esvazia de conteúdo as possibilidades decisórias especialmente no campo político acerca das necessidades.

Assim, a sociedade produtora de mercadorias não pode mais responder à questão acerca das escolhas, uma vez que ao considerar a liberdade de adquirir mercadorias, está-se reportando à decisão dos próprios indivíduos, que não depende apenas de sua vontade, há outros fatores que concorrem para esse fato, o político é o que significativo nesse sentido. O capitalismo impõe uma aporia que, neste gênero de crítica social, assinala a impossibilidade de escolher com consciência histórica nossas próprias necessidades

Citações
ADORNO, Theodor W. Dialética negativa: conceito e categorias. In Dialética negativa. Tradução de Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.

MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial: o homem unidimensional. Tradução de Giasone Rebuá. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973.

MARX, K, ENGELS, F. A ideologia alemã. Tradução de Álvaro Pina. Lisboa: Editocoes Progresso Lisboa; Editorial Avante, 2006. Disponível em http://www.marxists.org/portugues/marx/1845/ideologia-alema-oe/index.htm, acesso em 4 de fevereiro de 2012.

MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Vol. 1, Livro Primeiro: O processo de produção do capital, Tomo 1. Tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p.