Atanásio Mykonios
O capitalismo tem a capacidade de transformar todas as relações em relações determinadas pela forma-mercadoria. Há vários aspectos nessa condição. Para que a forma-mercadoria se estabeleça, necessário se faz um conjunto de medidas formais de controle. O gatilho dessa forma social abrange cada vez mais a estrutura social, não pode haver nenhum espaço vazio, todas as lacunas devem ser preenchidas pela mercadoria.
Transformar tudo em mercadoria não é simplesmente colocar preço em todas as coisas. O preço é apenas a expressão visível e material desse processo. A mercadoria se forma anteriormente ao preço, como produto de uma relação em que o tempo de exploração quantifica a medição do valor e cria a necessidade de uma mediação formal.
O tempo é, dentre todos os elementos da modernidade capitalista, o mais precioso para que a mercadoria seja efetivada. O tempo social converte as relações em torno as quais um único eixo é determinado como fundamento – o valor de troca. A exploração do tempo reverte em excedente transformado em valor, produzido em quantidade que se torna a abstração formal de um sistema sem limites.
Um sistema sem limites porque não vê fronteiras para a expansão desse modo de exploração. Cabe aqui um parêntesis, uma vez que esse modelo social não pode ter freios. Assim, todas as formas de contenção de sua fúria de exploração e expansão nada mais são do que ilusão perene, uma vez que sua lógica é transformar 2 + 2 não em 4, mas em 5.
Nesse sentido, a aceleração do tempo se deve à precisão de ganhar o mercado em todas as esferas. A tecnologia nos dá cada vez mais a impressão de que o tempo diminui. Mas é apenas uma impressão. O tempo é o aspecto mais intrigante e emblemático da sociedade capitalista. A necessidade de produzir, transportar, trocar, comprar, vender em escala cada vez maior em tempos cada vez mais reduzidos é uma característica da produção, da aceleração e da expansão de valor.
Um exemplo interessante são as Escolas de Samba. O desfile das escolas sofreu profundas mudanças. Todas, do ponto de vista qualitativo, são expressão da necessidade de diminuir o tempo de exibição, marcado e controlado pela racionalidade técnica, exigência do tempo da competitividade no cenário da forma-mercadoria.
As Escolas de Samba ganharam corpo com o ingresso de grandes contingentes vindos da classe média, a partir do início da década de 1960. Mas, durante algumas décadas, os desfiles obedeciam, praticamente, às formas definidas pelas próprias escolas, sem grandes pressões no tempo dos seus desfiles.
À medida que as exigências de mercado se impõem sobre as exigências culturais da criação e da arte, o samba se transforma, o ritmo da bateria se torna alucinante, os desfiles são organizados milimetricamente, cada detalhe é medido, calculado, pensado, administrado como em um espetáculo industrial.
É o exemplo da Acadêmicos do Salgueiro, segundo Sérgio Cabral[1], que em final dos anos de 1950, instituiu oficialmente a figura do carnavalesco, que se tornou, ao longo do tempo a figura mais importante na organização dos desfiles das Escolas de Samba. Toda a concepção do enredo, das fantasias e da estrutura comercial de uma Escola de Samba passa pelo crivo “criativo” do carnavalesco. Hoje, quem ganha a disputa do desfile são os carnavalescos.
Neste sentido, a velocidade do ritmo dos desfiles indica a força com que a produção da troca de valor e o comércio penetram em todas as formas de expressão humana, para além das condições materiais. Como Marx mesmo aponta, até no âmbito simbólico isto ocorre.
Se observarmos os vídeos acima, perceberemos que nos desfiles de 1981 e 1983, os componentes do Salgueiro praticamente passeiam pela avenida quase sem controle. A bateria tem um ritmo cadenciado, o que parece favorecer uma evolução ritmada sem compromisso formal. Esta parece ser uma condição para que a Escola de Samba se enquadre nas características carnavalescas. Estamos no começo dos anos de 1980, neste momento o ritmo das baterias já havia sofrido profundas mudanças na aceleração.
Mas se pudermos observar a mudança que ocorre nos anos de 1990, poderemos constatar a terrível mudança na ordem do desfile. De fato, trata-se de uma ordem, estabelecida pelo controle do tempo. O cálculo, o detalhe, especialmente a abstração do tema abordado, criam uma atmosfera de aparência redundante, que nos leva a uma espécie de hipnotismo sensualista e estético.
A partir desse momento, o espetáculo é apenas a grandiosidade das cores, das formas e a tendência é, sobretudo, a uniformização, o padrão consumido em forma de mercadoria. Ou seja, o espetáculo todo é tornado mercadoria, exportado para todos os cantos, como elemento de troca. Não há mais qualquer necessidade de mostrar a expressão artística, faz-se imprescindível a transformação em espetáculo e deste em pura e absoluta mercadoria.
Quando chegamos aos anos de 2010, fica então evidente a industrialização do processo. O desfile é esquadrinhado, delimitado pelo tempo, os detalhes atingem a cronometragem das alas, a estrutura da evolução e o processo de produção em escala industrial. A mão-de-obra é especializa e a produção de valor de troca marca a premissa do processo.
Até mesmo a cidade do Rio de Janeiro tem de ganhar novos ares para abrigar o que um dia foi o dito “verdadeiro Carnaval”. Uma limpeza dos pobres, a assepsia para garantir que a cidade seja vendida com a imagem de Cidade Maravilhosa.
A apoteose da imagem em movimento revela-nos a idolatria de uma sociedade do tempo, do fim da contextualização, o fim da crítica, o fim das formas de pensamento autônomas. O deserto social é o deserto do mundo da mercadoria, que resplandece como plumas e paetês, mas em força de reflexão social.
Mais uma vez, a imagem se torna o eixo fundamental da sociedade produtora de mercadorias. Dentre outros elementos que concorrem para essa suposta tranquilidade está o fato de que a segurança passou a ser o mote do discurso social. Um dos primeiros ordenamentos jurídicos do capitalismo, que garante o chamado direito à propriedade é a segurança. Quando o Estado se empenha de modo drástico a fim de “garantir” a segurança da população contra a violência, o faz no sentido de promover, em primeiro lugar, a estrutura que dá vazão às relações da forma social da mercadoria.
Dar segurança é promover a paz para que os negócios funcionem com um grau de certeza razoável. Até mesmo as gangues e os criminosos não podem viver constantemente sob o tacão da violência, sob pena de perderem seus terrenos comerciais.
Apesar de que a metafísica social acredita que a folia e a alegria existem por si, em sim, como um fim em si mesmo. A cisão entre o real da exploração e a ludicidade de qualquer manifestação artística permanecem como estrutura da sociedade alienada. A alegria dos foliões parece estar desprendida da realidade real, do mundo das relações concretas.
Lamentavelmente, a lembrança dos antigos carnavais se torna um exercício de saudosismo e sofrimento. As contradições são vividas à flor da pele. Nada mais do que isto, essas reminiscências ficam marcadas por uma aura de moralismo e pela perda da suposta pureza dos tempos da serpentina sem compromisso, num tempo em que o sexo parecia imune às grandes tentações do Carnaval.
Dessa forma, o espetáculo é, não aleatoriamente, um modo de reificação das condições de reprodução fenomênica do capitalismo. A experiência do Carnaval e das Escolas de Samba nos mostra de modo radical o processo histórico de transformação da ação humana em lógica da mercadoria.
Ou seja, a lógica interna do capital é tornar tudo em mercadoria absoluta, no conjunto de relações cujo ordenamento institui a imagem como elemento das condições formais desse mundo, eliminando a dialética entre aparência e conteúdo. A imagem reina incólume na sociedade do espetáculo.
O capitalismo absoluto é esta forma social que atinge a totalidade das relações.
[1] CABRAL, Sérgio. As escolas de samba do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Lumiar Editora, 1996, pp. 179 e seg. .