Por Atanásio Mykonios
Aí
você conhece um sujeito boa-pinta num bar qualquer, entre outras pessoas. E ele
parece ser uma pessoa agradável e razoavelmente bem articulada. Também, no
começo da conversa, você encontra alguma afinidade, afinal, exercem a mesma profissão,
só que em lugares distintos, talvez, diametralmente opostos. Sim, porque certas
profissões podem colocar os trabalhadores em lugares muito distantes a ponto de
não haver nenhuma relação social entre ambos, de tal sorte que, podem até se
encontrar fortuitamente, mas não se reconhecerão como trabalhadores de um mesmo
ramo de especialização. Então, depois de alguns minutos em que não parece haver
possibilidade de uma afinidade ou solidariedade, o sujeito dispara a dizer que
você não se enquadra. Mas o modo que esse sujeito lhe diz que você não se
enquadra afeta, sobretudo a normalidade de que se espera de uma boa convivência
social em ambientes públicos. O sujeito em questão traça um quadro sociológico
da sua condição física e a partir desta, ele desenvolve um rosário de
conclusões, todas a partir de uma premissa que para ele é inquestionável, a
saber, de que você é uma mulher que não pode vencer na vida porque é gorda!
Papo reto! Sem mais, o vaticínio está dado. As consequências são as mais
nefastas.
Primeiro,
você não é feliz, porque é gorda. Segundo, não pode ser admirada, porque é
gorda. Terceiro, você não pode ser bem-sucedida profissionalmente, porque é
gorda. Quarto, já que você não tem muita saída, pode aceitar qualquer coisa que
lhe é oferecida, porque é gorda. A gordura é uma maldição na sociedade atual.
Somos tratados e julgados pelo nosso comportamento e não atinamos para as
perversidades que a sociedade produtora de mercadorias produz e nos empurra. O
gordo, ou o obeso, é julgado e condenado, exatamente porque parece não ter
limites. Como se alguém nesta maldita sociedade tem algum limite no que
concerne a preconceitos, ignorâncias, estupidezes, burrices, etc. O pior, o
sujeito se considera bem-sucedido. A ele tudo cabe, porque não é gordo.
Mas
o problema não reside apenas nessa questão. A gordura é tratada como uma
doença, justamente por aqueles que a mantêm como negócio lucrativo. O sujeito
ainda destila seu despudor ao tratar a mulher como um simples pedaço de carne
que não poderá ser feliz se não emagrecer.
O
sujeito em questão não se considera um pedaço de carne, mesmo sendo magro.
Talvez ele se considere feito de outra substância que não carne. Talvez a carne
desse sujeito não engorde nem empobreça. Talvez a ciência tenha descoberto uma
nova fonte de carne, uma carne marciana ou uma carne venuziana. Porém, ao que
me consta, carne humana é, indubitavelmente, carne humana. A carne humana
contém, num determinado lugar de seu espaço, algo chamado cérebro e dentro do
cérebro, consciência e esta está ligada a uma coisa chamada mente. A mente se
conecta com o mundo. A consciência não é consciência de um ou de outro. O
sujeito, com carne e osso, está num mundo, num mundo de relações sociais.
Poder, dominação, consciência, conhecimento, entendimento, essas coisas passam
pela carne e pelo cérebro, e pela consciência e pela mente.
Contudo,
na maioria das vezes, os sujeitos não têm noção do seu corpo. Acreditam no que
lhes dizem a respeito do seu corpo e de sua carne. Passam a acreditar que
pessoas gordas ou obesas, pessoas negras ou amarelas, pessoas com deficiências
ou de orientação sexual diferente, devem ser, de alguma forma, punidas. Sua
carne, seus músculos, e o resto, não diferem. O que podemos dizer então, é que
há outros motivos para o sujeito lhe dizer tudo o que parece ter-lhe dito
abertamente.
É
evidente que esse sujeito, bem-sucedido, ao que parece, lhe disse certas coisas
que não foram produzidas pelo seu cérebro de imediato. Ele teve tempo para
elaborá-las, teve tempo para pensar e chegar a essas conclusões e certamente a
outras que ainda não teve tempo de revelá-las. Ele está certo do que disse,
pensa assim, vê o mundo e ao vê-lo, percebe que sua teoria está certa, além de
que compartilha com pessoas diferentes, com carne e cérebro, das mesmas
conclusões. Para ele, pessoas gordas sofrem e são infelizes. Mulheres gordas
são duplamente infelizes. Mas temo que a situação não seja apenas o que a
superfície nos mostra.
Além
disso, é preciso não olvidar que a carne é submetida a todo tipo de substâncias,
algumas alucinógenas. A carne ingere também carne, geralmente de outras
espécies. Geralmente, também, os seres humanos, ao ingerirem substâncias
alucinógenas, como líquidos estranhos, tendem a cometer erros e absurdos ainda
mais estúpidos e, ainda geralmente, costumam imputar e reputar a essas
substâncias, seus próprios erros e suas improbidades sociais, praticados em
casa e nos bares e nas ruas e nos estádios e em lugares abertos ou fechados.
Mas, também, as substâncias, de alguma forma, liberam o que está escondido ou
potencializam crenças e visões de mundo bem definidas.
Sim.
Porque para alguém chegar a pensar e ter essas supostas certezas, é porque
houve um processo gradativo para que tais complexidades fossem formadas e
consolidadas no cérebro desse sujeito que também tem carne e gordura.
O
pensamento preconceituoso não ocorre apenas por ignorância, mas por adesão.
Adesão de classe, de raça, de poder social, de poder econômico, adesão de
grupo, adesão estéticas, mas, sobretudo, por meio de instrumentos sociais bem
organizados e juridicamente estruturados historicamente. Por isso, é certo que
outros sujeitos com a mesma constituição carnal pensem da mesma forma. Quem
pratica segregação e preconceito exerce, de alguma forma ou de outra, poder social,
poder político, poder econômico, poder religioso, poder familiar, poder sobre
os trabalhadores. Pois é disso que se trata, em última instância, poder sobre
quem vai produzir o quê. Poder sobre a riqueza e a pobreza. Poder sobre a
força-de-trabalho em geral.
Há
uma conjugação de elementos, tortuosamente construídos, que se agregam ao
pensamento que não tem nada de científico, até certo momento, mas parece conter
elementos sociológicos e históricos em profusão. Sim, porque, por mais que a ciência pareça neutra, ela é
estruturalmente mantida por meio das forças de produção e daqueles que detêm o
poder ideológico sobre as massas e os sujeitos sociais.
Ademais,
há outro ponto a ser pensado. Podemos dizer abertamente o que pensamos? É
lícito dizer abertamente tudo que nos vem ao pensamento? As pessoas realmente
dizem o que pensam umas às outras, ou selecionam o que dirão e para quem? Podemos
dizer para qualquer um o que pensamos? É óbvio que não! A prática social nos
mostra que não podemos fazer isso, sob pena de sermos achincalhados,
defenestrados, punidos severamente, agredidos física e psicologicamente.
Pois,
o sujeito em questão não diria o que disse a você, se estivesse numa roda de
pessoas todas gordas, mas fossem juízes e juízas, ou delegadas e delegados,
todos obesos. Não, certamente não o faria, não teria coragem, porque o cálculo
econômico e jurídico falaria mais alto e ele se conteria. Assim como,
geralmente, não batemos ou agredimos pessoas maiores que nós ou que estejam em
bandos maiores que os nossos, a não ser que sejamos esquizofrênicos ou dementes
sociais. Geralmente os sujeitos sociais costumam agredir crianças, pessoas
fisicamente em condições inferiores, como as mulheres em geral.
Mas
eis que após tudo isso, você não se conteve e meteu a mão na cara desse sujeito
social, com carne e cérebro. E certamente a carne dele sentiu algo. O que, para
muitos foi um escárnio, para outros, foi um ato heroico. Mas para a justiça,
não se sabe ainda, uma vez que depende da interpretação das leis vigentes.
Qualquer agressão física é passível de punição. Mas após séculos de dominação e
imposição do poder masculino, você decide resolver o problema da mesma forma
como os homens sempre resolveram e, de certa forma, sempre foram protegidos.
Aqui,
entramos no problema da civilização. Como a civilização avança ou progride no
que concerne a eliminar a violência, a segregação, a dominação ou a exploração?
A sociedade liberal capitalista parece ter encontrado nas leis um modelo que
parecia exemplar. Mas ao ser aplicado, mostrou-se ineficaz. A aplicação, na
prática, não gera igualdade nem isonomia. Aliás, nunca o fez. Mas a sociedade,
em geral, acredita no sistema das nossas leis, mesmo sabendo, de forma
intuitiva, que esse sistema não funciona.
Então,
o processo civilizador deve encontrar outras formas e as encontra ao longo da
história, à medida que as pessoas e os grupos defendem seus interesses. O
processo civilizador é uma luta social contínua, uma luta em que os atores ora
se colocam individualmente, ora se colocam com seus grupos, para se protegerem
ou atacarem. Trata-se de um processo de conflito contínuo e não de um processo
água-com-açúcar, o processo social da civilização é uma constante luta entre
forças sociais com seus poderes de impor e de recuar ou avançar. Impor não
apenas seus interesses, mas o poder para realizar o que lhes parece ser o
melhor. Mas o melhor não é de fato para todos, nunca foi, por isso, temos de
atentar para que estejamos sempre atentos ao poder e à dominação exercida sobre
nós e de que forma temos algum poder para exercê-lo sobre os outros.
Lutamos
pela justiça, mesmo cometendo injustiças. Mas o parâmetro minimamente digno é a
capacidade que temos de observar o quão somos explorados ou oprimidos. Se há
grupos que são permanentemente oprimidos e explorados é porque a sociedade
assim se organiza, nas suas várias esferas, mas também joga um forte papel a
ideologia neste caso, que nada mais é que o poder de convencer os oprimidos e
explorados de que há algo de justo nesse processo de exploração e opressão. A
civilização também caminha par e par com a injustiça assim como com a justiça.
Mas
a história nos mostra que, de uma forma ou de outra, grupos oprimidos e
explorados, mais cedo ou mais tarde, reagem, de muitas formas, mas reagem. A reação
sempre virá, sempre ocorrerá. Por isso, sua reação é parte desse processo
civilizador. De alguma forma, está aí a luta e por todos os lados, a reação é o
fruto de uma história de exploração, dominação e opressão. Quer queiramos ou
não, estamos vivendo esse momento em que os que têm carne e cérebro,
digladiam-se, mas não podemos esquecer de uma coisa, que essa luta tem lados e
tem faces razoavelmente bem definidas.
Com
isto, o sujeito, de carne e osso, não se deu conta de que ao dizer o que lhe
disse, desencadeou, ao menos em mim, toda essa reflexão e em você, toda a ira
de séculos de dominação. Talvez fosse necessária alguma racionalidade para
reagir, mas, ao menos eu sei que a racionalidade é a base de toda forma
organizada e técnica de violência. Nazistas e fascistas sempre utilizaram as
técnicas racionais de violência.
Sujeitos
de carne e osso são sujeitos à ignorância e ao desprezo da história.