Trechos do Artigo Publicado na Revista Phrónesis
Do Programa de Pós-Graduação da PUC de Campinas
Volume 7 – Número 2
Julho-Dezembro de 2005 (p. 183-205)
O dogmatismo da mercadoria
Ao se mostrar indiferenciada no corpo social, a mercadoria se coloca como a panacéia de toda a satisfação pessoal. Atinge em cheio a sensibilidade e o caráter evasivo da abstração humana e satisfaz, notadamente, todos os flancos e todos os espaços da carência humana – tanto materiais quando psicológicos. Preenche a totalidade fragmentada dos indivíduos e parece que o faz exclusivamente para uma determinada pessoa singular, tudo isto para marcar a diferença entre todos, como seres únicos e insubstituíveis, assim como fazem as religiões no sentido da salvação pessoal. É um deus-mercadoria que fala para cada um no seu mais íntimo e profundo ser.
E a conseqüência inevitável dessa relação de atração metafísica é que cada ser social, ou cada pessoa consumidora adquirente de mercadoria, deve se sentir única e exclusiva, não pode haver comparações. Aquela mercadoria deve ser adquirida pela pessoa e a posse demarca definitivamente a diferença no corpo social. O merecimento para alcançar a mercadoria é pessoal e especial, diz respeito àquele consumidor – talvez a necessidade seja propagada de modo igual, já que a mercadoria é oferecida simultaneamente em horários de TV para todas as pessoas, de forma indiscriminada. É como um deus que profere sua palavra a todos, mas apenas alguns são capazes de ouvir o chamado desse deus tão poderoso. Os que são de fato convencidos, chegam às portas do paraíso e são aceitos na confraria dos eleitos. A aceitação social é marcadamente regulada pelo acesso à mercadoria e à sua conseqüente posse.
Ora, essa maneira sub-reptícia de compreensão social da mercadoria, leva-nos a constatar que, na corrida em busca da posse, o elemento de diferenciação social impõe um comportamento marcadamente estruturado em torno da violência e da agressividade, que é, por seu turno, legitimada ao extremo por mecanismos de controle social, de compensação diante das perdas e da formação de uma teologia de eficiência e eficácia.
No momento em que a mercadoria nos é oferecida, ela atinge igualmente os sentidos das pessoas, sua sensibilidade, suas ansiedades e angústias, suas esperanças e frustrações. Daí cada indivíduo que é submetido a esse jogo de sensualidade, responde conforme o seu lugar presencial, conforme sua realidade social, conforme sua perspectiva de aquisição. Isto é, o que move o indivíduo de posses e aquele desprovido de qualquer condição de adquirir a mercadoria parece ser a mesma, são as mesmas características metafísicas que foram anunciadas indiscriminadamente a todos, concomitantemente. E assim o que move o delinqüente e a senhora de bons costumes é a mesma necessidade despertada pela mercadoria.
Transformando todos em inimigos comuns
Transformando todos em inimigos comuns
E dessa forma, todos são transformados em inimigos, de tal sorte que a força social está em manter as rédeas do modelo no seu limite, a fim de que todos tenham compreensão de que estão diante de um deus onipotente e onipresente. O sistema é realimentado pelos próprios indivíduos, ganha sua autonomia e se torna um fim em si mesmo.
O comportamento moral, as ações políticas, sociais, religiosas e éticas, são reguladas pelo deus-mercadoria, substancialmente contido na ontologia do sujeito social, que encara o seu estar na sociedade por meio da aquisição, ou mais tragicamente, por meio da manutenção do processo social do deus-mercadoria.
As ações morais dos indivíduos têm como pressuposto a própria mercadoria, ela é colocada como pré-condição no que concerne às decisões a serem tomadas sobre qualquer assunto ou nas relações entre indivíduos, bem como passa a ser a finalidade de toda a organização social. Do lápis às ataduras no pronto-socorro, dos alfinetes ao garfo, do papel higiênico à gasolina, da água à luz, tudo está regido regularmente pela mercadoria, e tudo se transforma numa verdade transcendente, com tal intensidade, que nada parece ser possível imaginar uma ruptura numa perspectiva insólita de transformação do modelo vigente.
Isto porque não é apenas um modelo do qual seja possível escapar impunemente, ao contrário, trata-se de um sistema que exige fidelidade e que açambarca todo o espectro social, não oferecendo alternativas ou escolhas aos seus indivíduos. É um sistema dogmático que impinge a todos a escravidão pactuada.
A sociedade atual e anônima é a sociedade dos inimigos comuns. Todos se tornam ferozes inimigos, cujo único objetivo é garantir a todo custo a mercadoria. E como verdadeiros abutres em torno da carniça, somos compelidos diariamente a sufocar a totalidade que existe em nós em nome da mercadoria, a deusa dos nossos sonhos de consumo. E aqui foi possível observar a confusão entre consumo e aquisição de mercadorias, como se ambos os termos possuíssem a mesma categoria ontológica. Em certo sentido sim, porém, o consumo humano é anterior à formação da sociedade das mercadorias.
Os inimigos se encontram
Os inimigos se encontram
Parte considerável de nossa atual violência se deve a essa complexa rede de inimigos que a sociedade das mercadorias foi capaz de engendrar. Ao invés da criação de uma sociedade solidária, a mercadoria criou indivíduos preparados para a agressão constante, porque estes indivíduos entendem ser necessária a defesa de seus direitos ao acesso às mercadorias, como o direito de livre expressão ou confissão de fé, criando assim bandos organizados que saqueiam o tecido social em busca das mercadorias, criando, inclusive, uma teologia própria em torno da qual circulam os inimigos confessionais e outros que desejam a conversão.
Felizes os que podem adquirir as mercadorias! Eis as bem-aventuranças da idade contemporânea. A consciência social se contenta, então, com uma certa mobilização em torno da qual giram os valores da distribuição vista sob o ângulo da ética coletiva. E, contraditoriamente, esse movimento é um refluxo para o interior mesmo da mercadoria, que impulsiona os indivíduos a uma satisfação aparentemente perene, mas, em verdade, se tornou um redemoinho que traga todos para um mesmo ponto central.
Essa centralidade da mercadoria é a última expressão de uma arquitetura social que engloba de uma só vez o trabalho abstrato e o valor, regado substancialmente pela espiral do acúmulo do valor sobre o valor. Todos que se deitam num mesmo leito de morte se transformam em inimigos. Essa inimizade se configura em uma beligerância apática, num certo aspecto, mas noutro, torna-se explícita, gerando a própria morte dos indivíduos. Contudo, ela é mascarada por formas que dão a aparência de um pacto social permitido, como, por exemplo, a concorrência, a competência, o vencer a todo custo. A culminância desse processo é uma sociedade eivada de egoísmo e narcisismo absurdo, que leva os sujeitos adquirentes da mercadoria a uma verdadeira ode à sobrevivência e cuja perspectiva é o céu sem limites ou barreiras.
Nesta sociedade confeccionada a partir das relações determinadas pela mercadoria, encontram-se os valores das culturas que, via de regra, são subsumidos à grande formação social imposta pela deusa-mercadoria. Uma categoria que abrange todas as culturas e identidades, formando assim um círculo fechado e perfeito.
A necessidade colocada na contenda
A necessidade colocada na contenda
Mas as necessidades materiais, paradoxalmente, prendem o homem à sua materialidade, mantém-o preso à terra, ao barro, às condições limítrofes. Contudo, essas forças limitadores são como que esquecida, deixadas num canto da consciência, exatamente quando esse homem se depara com a sua própria criação – refluxo de sua consciência na materialidade, em forma de objeto-mercadoria e então se sente liberto de uma suposta condição que, de alguma forma, pode ser superada ou transformada.
Tem-se a idéia de que a mercadoria pode transformar a humanidade das pessoas, dando-lhes uma condição superior, até mesmo numa perspectiva espiritual, como se o acesso a certos bens espirituais formasse uma outra entidade na humanidade mesma. Isto quer dizer que há uma sensação recorrente de que se consumirmos as mercadorias revestidas de arte, de cultura, como o teatro, a música, a dança, isto nos faria pessoas melhores, mais sensíveis, mais atentas, em outras palavras, mais justas, mais conscientes de nosso papel social na atualidade.
A mercadoria é um ente que se tornou global, cuja ontologia se explica por meio da submissão dos indivíduos à sua forma eternizante, constituindo uma cadeia de relações que, paradoxalmente são humanas e anti-humanas, fortalecida pela metafísica da estética, que aprisiona o humano em torno a uma condição de estreiteza existencial.
Isto significa dizer, em outras palavras, que a mercadoria não pode se sustentar indefinidamente porque não é capaz de gerar um equilíbrio do ponto de vista ecológico, nem um equilíbrio no que concerne a uma correlação de forças minimamente sustentável. O processo da valoração do próprio valor, implica um crescimento e um fomento material que não pode, em sua condição original, manter-se no sentido de satisfazer todas as necessidades abstratas dos indivíduos sociais.
Aqui, é necessário reconhecer que a sociedade das mercadorias promove uma relação entre indivíduos cujo produto final é, inexoravelmente, a morte, tanto no sentido da separação do homem de sua totalidade, quanto no que concerne à sua manifestação existencial.
Uma sociedade de inimigos perde sua perspectiva de preservação biológica da própria espécie. Isto implica uma condição que extrapola, inclusive, a realidade biológica mais elementar da natureza, que é a proteção da espécie. A morte ronda o espectro social. Mesmo assim, é possível vislumbrar uma nova perspectiva, em cuja formação social estarão implicados todos os desafios possíveis e imagináveis, pois após milhares de anos, a humanidade tem possibilidade de formular novas relações em um novo patamar, sem, no entanto, estar presa ao seu próprio passado, vislumbrando uma nova sociedade a partir da superação do que já se tornou notoriamente um modelo de morte, superando assim os limites da própria racionalidade ou mantendo-a nos limites necessários para a construção de uma arquitetura social que leve em conta a liberdade, o fim do trabalho determinado pelas condições do capitalismo, como centralidade protogênica do humano, dando fim a uma ciranda mortificante baseada na mercadoria.
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