Durante um período recente, as
esquerdas pensaram que o caminho para a mudança cultural estava aplainado,
mudança que implicava a conquista de um mundo distante das travessuras dos reacionários
e fiscais do comportamento moral. A materialidade se tornou um dado
aparentemente resolvido e que restava às vanguardas lutarem por emancipação no
seio da cultura e com isso garantirem direitos de vanguarda para os mais
oprimidos.
Por quase vinte anos, nos
acostumamos e lidar com um público de pouca manifestação politica, imaginando
que esse contingente não tinha consciência histórica para lidar com o debate
político e o cenário das lutas sociais. Tratava-se de uma horda de ignorantes
que somente criavam obstáculos e geravam um marasmo mobilizatório quanto aos
objetivos de uma esquerda visionaria, em muitos casos, encastelada no interior
das academias. Essa esquerda culminou no aprofundamento acadêmico-científico-teórico
de grande envergadura, mas de pouco alcance social. Aos poucos foram engolidas
pela esfera burocrática dos instrumentos de controle do Estado e se viram
encurraladas pela lógica produtivista que alcançou os gabinetes e as salas de
aula.
Enquanto isso a história
prosseguia com sua dinâmica. As esquerdas, capitaneadas pelo PT, cresceram aos
olhos vistos e não se preocuparam com a ascensão de um pensamento de direita
que era urdido lentamente pela maioria silenciosa. A luta contra a ditadura
deixou sequelas nas linhas da esquerda. Após o fim do regime militar, uma
geração de atores políticos chegava ao cenário institucional e contava com o
apoio de parte da opinião púbica, especialmente os artistas, intelectuais,
formadores de opinião, profissionais liberais, que, recém-saídos da ditadura, encontravam
um caminho para reconstruir o processo político com bases na democracia liberal
representativa. Era pegar ou largar!
Movidos pela herança quase
gloriosa de uma esquerda combativa e comprometida, o Brasil foi aos poucos
ganhando contornos de uma democracia de cunho liberal festivo, fortemente
ancorado na jurisdição, na igualdade social por direitos de acesso e ascensão,
bem como um forte sentimento de inferioridade que prevalece até hoje em todas
as camadas sociais. Os avanços cada vez mais significativos no âmbito dos
direitos sociais ao mesmo tempo em que sonhavam (as esquerdas), com uma
revolução socialista que, lentamente se perdia no horizonte histórico,
desenharam um quadro estranho, mas ainda promissor e positivamente alentador
para as esquerdas.
A bifurcação da história nos
legou uma indecisão quanto às escolhas a serem feitas. Diante das esquerdas e, especialmente,
diante do PT, dois caminhos se colocavam e se entrecortavam. De um lado, a
tradição da luta e da organização burocrática do sindicalismo e da política administrativa,
por meio das lutas dos partidos populares (anticapitalistas, anarquistas, marxistas,
etc.), marca de um tempo de estrutura produtiva que permitia o modelo de concentração
das massas trabalhadoras em torno de projetos comuns e sistematizantes. – a burocracia
sindical juntamente com a hegemonia dos partidos de trabalhadores e marxistas
no Ocidente. O Estado era o caminho natural da luta pelo poder contra o capital
monopolista. Esse modelo estava alinhado com a estrutura de produção industrial
massiva que engendrava na organização do trabalho interpretações que tinha como
premissa o antagonismo entre trabalho e capital. As lutas pelo poder giravam em
torno à possibilidade de inverter a balança desse antagonismo em favor dos
trabalhadores, mas, em muitos casos, nada mais se observou que o sucumbir à
lógica do capitalista coletivo, ora em favor das elites locais, ora em favor
dos grandes conglomerados transnacionais.
De outro lado, uma revolução no
interior das hostes do capitalismo que empurraria lenta e gradativamente as
esquerdas para uma armadilha cujo gatilho impingiria quase que a sua destruição
ou, mais radicalmente, sua autodestruição. Enquanto os administradores e
gestores do capital enfrentavam a questão da recomposição de sua capacidade de
produzir valor, as esquerdas se viam tragadas pelo canto da sereia que ditava o
caminho político para a tomada do Estado-nacional. Chegaram ao poder e seu
glamour as transformou em títeres de um desenvolvimento nacional herdado pela
sociedade do bem-estar.
No Brasil, o ambiente criado na festiva
luta pelos direitos de grupos e minorias, criou a impressão de que o pensamento
de direita estaria, de alguma forma, sepultado. Talvez, em uma espécie de
hibernação histórica. Os avanços nas conquistas de direitos das mulheres, dos
negros, dos homossexuais, das minorias, dos índios, dos portadores de
necessidades, das crianças e adolescentes, gerou um clima de otimismo das e nas
esquerdas, até que o partido que detinha a hegemonia do movimento de esquerda
chegava ao poder. Muitos se aliaram às esquerdas, criando um clima de falsa convergência,
com aqueles que tinham concepções de justiça, mas se mantinham fieis ao
liberalismo cultural, sem olvidar o modo de produção de valor. Entusiasmada com
esse processo e a perspectiva de mudanças mais radicais, a esquerda se viu
manietada pela bipolaridade politica exercida pelo PT e seus aliados. E com a
estrada bifurcada opôs aliados e destruiu biografias intensamente construídas no
período ditatorial último.
A saga petista foi de uma extraordinária
agilidade e estupenda capacidade para aliar dois aspectos da política nacional
que viviam em posições diametralmente opostas. Conseguiu convergir a politica
da concentração da riqueza por meio do Estado e criou, em paralelo, políticas sociais
apartadas do movimento da economia política, abrindo, assim, dois flancos. Enquanto
a economia nadava de braçada e os índices financeiros abastavam ainda mais
bancos, investidores e a indústria nacional; o problema social, por sua vez,
foi tratado com linhas de crédito para favorecer s famílias indigentes sociais e
com o auxílio de agentes terciários – isto é, o problema social passava a ser
tratado por igrejas, psicólogos, organizações não governamentais, assistentes sociais
e, por fim, pela polícia. E como não podia deixar de ser, foi envolvido pelas
forças conservadoras que tinham, desde a década de 1960, o traço marcante da
ordenação do capital como mola propulsora do desenvolvimento econômico, mantido
sob a rédea curta pela classe dominante.
Não foi o bastante ter de agradar
a dois senhores ao mesmo tempo. Não seria possível. A ruína tardaria, mas a
história cobraria seu preço – e alto! Hoje, em meio a uma turbulência social
que atinge diversos setores da sociedade, as esquerdas se veem aturdidas com o
pulular de pensamentos de caráter extremista, com fortes contornos racistas,
contra os pobres, contra os oprimidos, enfim, uma onda de revanchismo, sectarismo
e ódio se espalha. Mas, será mesmo um fenômeno recente, uma espécie de bolha
assassina que abduziu milhões de jovens e os lobotomizou para que apreendessem
um discurso raivoso de cunho fascista ou nazista? Não, não foi por acaso e nem
de repente que essa avalancha de violência ganhou as ruas e os espaços
virtuais.
Há mais no profundo dessa
realidade e há mais por vir. Esses jovens, moças e moços, esses homens e
mulheres estão aqui como em outros lugares. Pelo mundo afora observamos
estruturas discursivas que pleiteiam o poder dos mais fortes, o uso da força e
da coerção de cunho militarizante, o fim dos direitos sociais, enclausurando os
desprovidos de valor em modernos campos de concentração. Aqueles vinte anos
citados acima são o caldo no qual uma geração e meia cresceu e se formou,
acostumada com ganhos significativos, com a crescente despolitização do
processo social, com o distanciamento dos reais problemas relativos ao
capitalismo e a aparente derrocada dos regimes socialistas. Eles se acostumaram
com uma sociabilidade sem conflitos reais, sem a pressão da materialidade, com
a perspectiva de um acúmulo capitalista indefinido. A pequena burguesia deitou raízes
com sua moral tacanha e invadiu a consciência social dos emergentes. Olhavam para
as políticas sociais do governo com um ar de desconfiança, mas o Brasil crescia
com alguma folga contra o maremoto do crash financeiro mundial, dado a partir
de 2008. O pensamento metódico, organizado e sistematizado, que hoje surge como
expressão de grupos emergentes, não ocorre com um passe de mágica, mas há uma
causa ou algumas causas. Some-se a essa nova-velha mentalidade os horrores de
uma sociedade embevecida pelo extermínio dos mais pobres, a perseguição sistemática
contra os negros e indigentes, a insana moral do trabalho contra os que não são
capazes de se inserir nos mecanismos de produção direta do valor, etc. A
fábrica social do valor não exclui ninguém, como supunham as esquerdas cristãs
benevolentes deste país.
Uma das mais importantes causas, senão
a de maior significância, é o fato de quando o modo de produzir mercadorias
entra em crise e, por conseguinte, o modo de adquiri-las também, há uma
afetação de parcelas da sociedade acerca do modo de enxergar o contínuo real,
que muda quase radicalmente. À medida que a crise avança, mesmo que não haja
consistência em reconhecê-la ou apreendê-la em sua totalidade, os grupamentos
sociais assumem seu caráter predatório e, também, reproduzem o que está no subterrâneo
de suas práticas, tanto singulares quanto sociais, de sobrevivência histórica.
Outro aspecto interessante é que
os movimentos sociais se articulam, especialmente os de trabalhadores sem nada,
com o escopo de pressionar os vários níveis do estado-nacional, para a
conquista de direitos necessários. Ocorrem um tanto quanto à margem da
institucionalidade da esquerda, criando um estado de perplexidade, e, por
outro, uma complexa engenharia social que foge às análises mais perspicazes dos
teóricos da esquerda. Entre esses movimentos e os representantes oficiais da
esquerda, há um fosso que parece ainda ser difícil transpô-lo, as pontes foram
queimadas há algum tempo e por isso mesmo, o discurso da esquerda não encontra
um veio por onde escoar seu projeto de sociedade.
Assim, não deveria haver de nossa
parte o espanto com “os coxinhas” e as hostes reacionárias. Nem com as manifestações
estúpidas que se espalham em forma de linchamentos, assassínios, apologia à
segregação, perseguições religiosas, censura, etc. Esses grupos aparentemente acéfalos,
estão conduzindo um processo de reação à crise que avança inexorável para além
e acima das esquerdas em todo o mundo capitalista. A dinâmica social tem um caráter
irreversível, caótico em certo sentido e de difícil controle, uma vez que as
forças sociais entram na arena do conflito sem um projeto claro, a não ser o de
cassar os bodes expiatórios de sempre.
O problema é que, de alguma
forma, a esquerda acreditava que o que havia no conjunto da esfera social da
política não passava de uma turba imberbe e sem rumo intelectual – os ignorantes
que deveriam ser catequizados pelas vanguardas, aglutinadas nas academias e em
nichos partidários cada vez mais em número reduzido. Nesse tempo de aridez
intelectual, em que a sociedade do espetáculo se transveste de um caráter eminentemente
imagético, os discursos da subjetividade assumem um poder social aparente, que
ganha o ar de verdade absoluta ante o vazio deixado pelo pensamento das próprias
esquerdas. Mas esses discursos estão destituídos de consciência histórica
porque não têm um poder orgânico e sim uma força social descomunal, cujo parâmetro
é a imposição de um poder cego, que clama pela intervenção de uma força militar
que pusesse fim á baderna social, econômica e política . Um analfabetismo
social impregna-os de cabo rabo, são como adolescentes vociferando pela coxinha
do dia.
O que mais deve nos preocupar é a
narrativa subliminar que aponta para algo já existente no interior desses
grupos que, de certo modo, herdam a violência que está incrustada em nossa
história social. Por outro lado, o fascismo não vem exatamente desses grupos, uma
vez que não têm nenhuma ligação com os trabalhadores em geral, nem com um
compromisso que faça-os se aproximarem de interesses nacionalistas contra
inimigos ferozes externos, mas do próprio partido governista – partido de
trabalhadores – que emprega a ordem institucional para mover para debaixo do
tapete a perspectiva de uma ação histórica dos movimentos sociais e dos grupos
de esquerda. Esses vorazes autômatos não gostam da ralé nem dos trabalhadores,
querem que todos sejam queimados em praça pública.
Os trabalhadores estão sendo
guiados pela foice que está a ceifar a sua consciência como trabalhadores.
Ora, não deveríamos termos sido
pegos de surpresa dadas as condições em que a sociedade brasileira se viu
investida de uma espécie de legitimidade política que ganha alguns espaços
públicos, no entanto, essa forma de manifestar a insatisfação social e política
não é nova. Mas, de alguma forma, os mais ignaros ganharam um aspecto social
aceito por muita gente. É como se tivessem perdido o medo de expressarem o inominável,
o indizível. Mas o fazem com aquele tom grave, de quem conhece os rumos da
história e as sendas do processo político. Nada mais enganoso aos olhos de quem
vê o mundo se virar de cabeça para baixo, em todos os cantos.
O que salta relevante nesse
processo é a nossa incapacidade de enxergar a dinâmica social como um lastro de
uma verdade. Isso ocorreu debaixo de nossas barbas que já estavam de molho.
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