domingo, 30 de janeiro de 2011

A encruzilhada egípcia

De repente o Ocidente descobre que Hosni Mubarak está há mais de 30 anos no poder. De repente o Egito emerge como uma ditadura. Antes, ajudara o Ocidente e Israel. Recebeu vultosos recursos para manter-se alinhado com os EUA e Israel. Além disso, as forças armadas foram as mais aquinhoadas com esses recursos. Também pudera, era necessário dinheiro e muito equipamento para manter o povo sob a jurisdição do tacão da força.
O Egito tentou ingressar no mundo capitalista, nada mais justificável e até politicamente estratégico para um país que se localiza num enclave geográfico. Mas o capitalismo traz em si a necessidade de modernização. De um lado, moderniza parte das relações por meio da troca, das formas em que a mercadoria assume, destruindo as formações tradicionais.
Parece que os membros do núcleo mais duro do capitalismo não se importam em ter de negociar com ditaduras, sejam de esquerda ou até de direita. Há muito os gerentes do capitalismo mundial, os EUA, têm sócios dos mais diversos naipes. Grupos radicais, ditaduras militares, totalitarismos de direita, grupos familiares, teocracias, etc. Não faz muita diferença para os negócios, desde que haja controle social minimamente em condições de garantir a produção e a circulação de mercadorias.
Assim, a massa é apresentada ao que o capitalismo tem de mais banal e, substancialmente, as necessidades sociais se avolumam e as promessas do capitalismo começam a ser cobradas pela juventude que, assim como na Grécia, na Tunísia e em tantos outros países, perde a perspectiva ante o encantamento social. Desencantadas, as massas se vale de paus e pedras para manifestarem sua revolta.
Mas isto não é tudo. Os pobres se veem mergulhados no desemprego, na iminência da miserabilidade total, as estruturas sociais não conseguem garantir as formas de relação mínimas. O capitalismo em suas crises regionais e mundiais, atinge em cheio as pretensões dos governos que esperam encontrar espaços na geopolítica, imaginando serem capazes de influenciar os rumos dos conflitos sociais.
Assim, Mubarak não passa de mais uma caricatura, que é mantida por conta de interesses políticos. É sustentado assim como poderá ser descartado a qualquer momento. Ele surge na TV com um pronunciamento sem qualquer procedência, afirma apenas que pretende se manter no poder, e que as forças de segurança permanecerão ao seu lado. Por isso, nomeia um chefe das forças de segurança, como um capitão do mato para manter em ordem as forças repressoras.
A modernização chega tardiamente ao Egito. Espremido entre o Oriente e o Ocidente, entre a necessidade de ingressar definitivamente na sociedade de consumo e premido pela tradição islâmica, que tem em suas demandas, a exigência de se manter fiel aos seus próprios ditames. Neste sentido, a luta intestina por liberdade individual flagrantemente contradiz a condição da cultura milenar. A Irmandade Muçulmana resolve aderir aos manifestantes, que como uma turba, toma as ruas de assalto. Isto parece demonstrar que a insatisfação não tem um encaminhamento político, a direção é derrubar Mubarak. Mas durante 30 anos não se viu nada igual. O que aconteceu com os egípcios que não se manifestaram contra a monarquia egípcia? Monarquia tecnocrata, que se mantém no poder à base de uma repressão contínua.
Por todo Oriente Médio, as forças religiosas têm grande ascendência social e política. A ideia de uma separação entre Estado e religião não é tão acentuada nessa região. Isto não quer dizer que no Ocidente esta cisão ocorre tranquilamente, ao contrário, o presidente dos EUA toma posse tendo a Bíblia como testemunha de seu juramento de servir à nação.
Sem dúvida, é preciso cuidado para não acusar o Egito por um suposto atraso em relação à modernização ocidental capitalista. Mas o seu drama é, neste momento histórico, emblemático. Se derrubar Mubarak, terá de saber qual grupo deverá assumir a condição desse processo. As correntes mais ao fundamentalismo poderão assumir esse processo. Por outro, a democratização liberal é um caminho que dificilmente será atingido pelo Egito. Esta última pretensão não é interessante aos EUA nem a Israel. Ambos preferem uma ditadura com alguns traços laicos e que permita uma inserção limitada ao capitalismo mundial a uma democracia liberal que poderá fazer com que o apoio decisivo à causa israelense seja colocada em risco.
O Ocidente não sabe o que fazer, torce pelos manifestantes, mas precisa manter Mubarak no poder, afinal, sua ajuda para manter a paz entre palestinos e israelenses parece fundamental. Em troca, fecharam os olhos, as ditaduras tecnocráticas, misturadas com temperos teocráticos são um modo político eficaz no Oriente Médio.
Os fundamentalistas cristãos e capitalistas, querem, de forma sub-reptícia, derrubar o regime, falam em liberdades individuais, de imprensa, liberdades de organização, de expressão, políticas, etc. Se esquecem que apoiaram e apóiam ditaduras, no Chile, no Brasil, na Argentina, na África, na Ásia. Não importa. O fato é que para os negócios, esses gerentes atuam de forma pragmática.
Mas o tempo de cobertura dos meios oficiais de comunicação é infinitamente maior do que ocorreu na Grécia. Há um interesse, um tanto mórbido e de outro, profundamente emblemático, quanto aos acontecimentos no Egito.
A repressão
É notória a repressão às manifestações populares. No Brasil, na semana passada, em uma cidade próxima à Goiânia, a polícia reprimiu com extrema violência a insatisfação de moradores quanto ao transporte público.
Em Londres, a polícia reprimiu manifestações de estudantes, com força desmedida. Na Grécia, na França, no Irã, na Índia, nas Filipinas. Em qualquer lugar, as forças policiais estão se preparando para atuarem com força máxima.
Isto indica que há uma mudança na forma pela qual os estados nacionais estão encarando esses movimentos sociais. Indica, sobretudo, a leitura de que há um processo de hostilidade que expressa a crise do próprio sistema. Os estados nacionais estão cada vez mais atentos pois há um risco iminente para um estopim, um rastilho que pode espalhar com a velocidade dos meios de comunicação.
Não é à toa que a Internet e a telefonia celular são bloqueadas com maior veemência. As redes sociais nos mostram que há uma força que foge ao controle dos estados amplos. Estamos diante de uma encruzilhada. O Egito nos mostra claramente que um novo elemento se instaura no drama social do Oriente Médio, o drama entre a modernização, o capitalismo, a tradição e a luta pela igualdade e liberdade.


Marvin Gay - What's going on

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

A farsa do processo político

A economia de mercado caracteriza-se, notadamente, pela fúria destruidora e pela capacidade de colonizar a natureza das relações sociais e as instituições. Destarte o fato de ainda acreditarmos na pureza das instituições políticas e notadamente o Estado, a história nos mostrou que a política que sempre teve a alcunha de chegar ao poder e administrá-lo com as forças que o Estado oferece, não passa de uma ilusão, que foi nutrida por aqueles que ingenuamente acreditaram na lânguida e áurea condição do Estado, como se estivesse acima das categorias do jogo de mercado e do jogo autodrestrutivo do processo de produção da riqueza mundial.
Há muito, a força da política econômica suplantou o Estado e suas hostes. Desde o fim da I Grande Guerra, as políticas econômicas não são uma pratica do parlamento, ao contrário, este é instruído a guindar seus interesses conforme os interesses dos grandes grupos que fazem a mercadoria exercer o jogo da troca universal.
Isto revela, sobretudo, que há um jogo de farsa, mantido pelas instituições, por aqueles que se locupletam com as farsas e aqueles que ainda lutam por manter um sistema político em colapso.
Devemos partir, após este preâmbulo, da tese de que a política institucional, esta que movimenta as máquinas partidárias, as câmaras e assembleias, os sindicatos, os movimentos e outros, colapsou. Suas decisões não passam de ações cosméticas diante da avalanche de recursos cuja importância não cabe decidir nos gabinetes oficiais.
Este jogo de farsas requer uma denúncia muito comprometida com a democracia. Mas sabemos que quando a economia suplanta decisivamente a política, uma parte do trabalho de cada assalariado é destinado a manter um sistema que está em franca decadência, geme como um moribundo. Isto revela o estrondo devorador de uma máquina social que suga recursos para manter estruturas tecno-burocráticas que servem para controlar o poder e os canais de comunicação e informação, drenando os recursos em tempos de decadência absoluta.
Quando os políticos embolsam dinheiro em suas negociatas, fica evidente que a fonte é o tempo de trabalho de cada cidadão, pois os impostos e a malversação do dinheiro, público e da destinação do dinheiro privado (que não passa de uma coisa só) têm como sustentação um mesmo fundo - o trabalho humano.
Esta posição não é confortável, uma vez que pode se confundir com posturas fascistas, autoritárias, contra a chamada democracia representativa. No entanto, o que mais me impressiona é que na imprensa, hegemonicamente, não se encontram vozes que procuram questionar, criticar, refletir esse processo, interpelá-lo não para reformá-lo, mas para propor uma grande reflexão que supere esse sistema.
Pois não se trata simplemente de sentirmos a desonra pela eleição de Tiriricas ou Suplicys. Honestidade não faz a política melhor.
Essa farsa não deve ser mantida.

O Corpo: Nosso destino, nossa mercadoria

O corpo. Quando pergunto aos meus alunos, no primeiro dia de aula, qual é a coisa mais importante para eles, as respostas mais abstratas surgem de todas as partes da classe. A família, Deus, o cãozinho, a vida, o amor, o trabalho, o dinheiro, a esperança, o namoro. Todas essas coisas são ditas e convictas como as coisas mais importantes. Então, eu continuo a insistir com a pergunta. Procuro ser mais específico, mais incisivo, e peço que digam uma só coisa importante. Se bem que uma coisa pode ter o caráter que Immanuel Kant quisera dar a essa forma de existência – a coisa – mas aqui é apenas uma coisa. Talvez seja impossível chegar a uma coisa, a coisa-em-si.

A perplexidade continua. O que será afinal a coisa mais importante?
Nesse momento, faço uma descrição, conduzindo a indagação: digo a eles que é a única coisa que realmente nos pertence, com a qual nascemos e morreremos. Não poderemos emprestá-la a ninguém, não poderemos tomar de empréstimo, morreremos com esta coisa. Graças a ela é que adquirimos todas as noções e sentimentos, toda forma de conhecimento e todas as condições para termos o que somos.
Pois então, afirmo, depois de algum suspense, que é o CORPO. Percebo o espanto e a indignação de alguns. Especialmente os religiosos e fiéis se sentem ofendidos. Mas afinal, não é Deus a coisa mais importante?
Sem o corpo nada pode acontecer para nós. Até as noções e conhecimentos que temos do amor, da divindade, da generosidade ou do ódio e pavor, são possíveis por meio do corpo. Toda forma de abstração só acontece porque temos um corpo. Nossa trajetória pelo mundo ocorre com o nosso corpo. Ele é presença constante.
Mas, de alguma forma, nosso corpo, parece ter deixado de ser nosso corpo. Ele pertence a todos e a tudo, e quase sem querer temos uma pálida consciência sobre ele mesmo. Passamos boa parte do tempo sem perceber ou notar o próprio corpo. Nosso pensamento não cabe mais nas proporções físicas do corpo, estamos para além dele, além de suas fronteiras. Estamos em todas as partes, mas não estamos mais com o nosso corpo.
Ele é medido, moldado, calculado, contado, determinado, formado, deformado, estruturado, mutilado.
Pertence ao trabalho, aos ambientes diversos. Pertence a quem nos paga. Em cada ambiente o corpo assume uma linguagem. Ele é vendido, comprado, se transforma em vitrine ambulante – tatuado, rasgado, costurado. Sua imagem é mais importante, pois com ela podemos ser o que não somos. Os corpos devem ser desejados, amados, possuídos, explorados. Ele tem de se mover para ser mostrado.
Quantos sofrem com seus corpos e os escondem? Um corpo que sofre, deixado à própria sorte, atirado na solidão, que caminha para o seu próprio fim. O fim de tudo!
O corpo não pode perecer. A ciência, a religião, a escola, a TV, a Internet, todos se mobilizam para manter os corpos vivos. A idolatria à não-morte é tão intensa quanto a idolatria à imagem do corpo. Os corpos devem ser mantidos como num campo de concentração, prontos para serem tratados cientificamente.
Quanto sofrimento! Mesmo assim é um presente-ausente, entre tantas coisas que estão entre nós. Corpos que se vão, corpos que se mostram. E que fala, fala pelos poros, grita com seus olhos e sua boca.
Ao mesmo tempo, esses corpos são esmagados, humilhados diuturnamente. Nas filas, nos trens, nos ônibus, empilhados como caixas transportadas para o consumo. Como um bombardeio infernal, é preciso consumir. O corpo é o núcleo do consumo moderno. A propaganda fala ao corpo. A igreja fala ao corpo. A gôndola do supermercado fala ao corpo. Todos querem o corpo e querem cuidá-lo. O Estado, a Igreja, a Família, a instituições, a política e seus partidos.
O corpo é a mercadoria por excelência. A mercadoria especializada. A mercadoria extraordinária. O corpo está para a mercadoria como a alma está para Deus. É o centro do universo, o lugar absoluto por onde tudo passa. E por ser mercadoria, não pode envelhecer. A juventude é o modo pelo qual o corpo deve resplandecer e ser vendido na embalagem social.
Todos hoje sabemos que o corpo é a fonte da delação. Ele nos delata, se soubermos ler a sua linguagem, saberemos decifrar seus segredos. O corpo tenta se esconder, mas não consegue, ele grita por todos os poros. Mesmo confinado, silencioso, quieto, ele nos denuncia, não há crime passível de impunidade com o corpo.
Destinado a lugares comuns, o corpo se mostra inconsequente, incauto, claudica ante os olhares mais atentos. O corpo não consegue se esconder, atrofiado, tenta manter-se vivo, mas luta contra sua própria contradição. Essa contradição é visível, entre o mundo, a realidade e a abstração de si mesmo, o corpo é submetido a uma realidade absurda.
Na sociedade atual, o corpo é a fonte imprescindível da beleza, da arte, do grito, do governo. Sem o corpo não há sociedade nem Estado nem capitalismo. Adestrado, educado, confinado, como gado, obediente, está em toda parte, requer cuidados, mas se torna o inferno para outros corpos.
A fonte da exploração e do acúmulo é o corpo. Sobre ele, bilhões são ganhos. O corpo dá o que jamais lhe será devolvido. É controlado, vigiado com a tecnologia mais avançada e cada vez mais o será em escala planetária.
De fato, não sabemos o que fazer com os corpos. Exercem poder, fascínio, submissão, dor. A dor que conhecemos só é possível por causa do corpo. De qualquer forma, o corpo é uma contradição, um escândalo, como a morte, como o fim. Quase tudo permanece, mas o corpo tem um fim, termina sua existência, sua locomoção, a morte o define como o estertor de uma vida. O corpo sofre, destemido, insiste em viver, permanecer percebido entre outros corpos.
Resta pouco a dizer acerca do corpo. O caminho da linguagem. A sombra da verdade. Somos a luta contínua. Mas ainda temos de pensar no esmagar desse corpo face ao mundo da mercadoria.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

São Paulo: Sociedade Anônima




Por que as cidades crescem? Um fenômeno urbano ganhou fôlego nos últimos 200 anos. O mundo cresceu e as cidades cresceram. Parece um fato, simples, cabal. Elas crescem porque, como princípio fundamental, são o lugar onde as pessoas acorrem para encontrarem seu lugar no mundo. Trabalho, oportunidade, necessidades, vida, dinheiro. A cidade é o ambiente do trabalho. Cidades se tornaram monstros orgânicos, se expandem na mesma proporção das relações sociais de mercado, amplia seus horizontes, a cada dia, novas ruas, novos
bairros, mais carros, mais trânsito, mais solidão, menos vida, mais indiferença.
A cidade é organizada para dar sentido ao ordenamento da mercadoria. Materialmente, a ordem jurídica da cidade privilegia a circulação de mercadorias, antes mesmo de garantir moradia, hospital, escola, creche, teatro. Todos esses lugares têm de estar concernentes com a sua viabilidade econômica. A circulação dos cidadãos urbanos tem como função garantir a produção de mercadorias – o trabalho alienado é a fonte da cidade
Cada praça e avenida, assim como os outdoors, as pessoas, os ambientes e as fábricas têm seu projeto determinado pela premissa da produção da mercadoria. A cidade cresceu em torno ao tempo social da produção industrial. Todos os tempos culturais passaram a ter como referência o apito da fábrica, o trabalho se tornou o centro da cidade e a lógica do mundo urbano tinha como eixo a produção de valor.
As famílias chegavam de todas as partes. Os nichos, as culturas distantes, os costumes, a tradição, essas coisas deveriam ser mantidas, mas todos tinham de obedecer a uma mesma determinação social, todos deveriam seguir a uma mesma relação social. Suas tradições, costumes e memórias deveriam estar a serviço da sociedade produtora e trabalhadora.
E a cidade se agigantou. Transformou-se numa extensa área de combate pelos postos de trabalho, pelos melhores lugares na fila, na hierarquia, na empresa e no bairro. A violência das cidades está desde o seu princípio, porque a luta intestina dos indivíduos, na sua fragmentação, os leva a uma guerra desarmada, que aflora em outros aspectos, com as armas que os urbanóides têm à sua disposição. São os carros, o controle burocrático dos transeuntes, os semáforos, a intimidação no trabalho, as chantagens e os assédios e, por fim, o alastramento da compulsão por todas as formas de prazer, a droga, o roubo, a fome, a exclusão social de todas as formas.
A polis sonhada hoje é um arremedo. A política local está mais distante que a representação federal. Vereadores se prestam como doadores de comida e remédios – assumem confortavelmente o papel de assistentes sociais privilegiados sustentados com o erário público. A política institucional não consegue atender à demanda de 11 milhões de cidadãos, conforme o IBGE (senso de 2010).
Solidão, angústia, a impressão nítida de que o abandono está presente, a qualquer momento os indivíduos podem ser tomados pela loucura. A gente que passa, a velocidade com que as relações ocorrem, a prevalência de uma ordem, ou, diria melhor, de um imperativo, o lucro, a mais-valia, o valor-sobre-valor, tornam a vida árida, seca.
A morte ronda por toda parte, mesmo assim parece haver um sentimento obscuro que persegue cada vivente urbano, cada qual, ao seu modo, conta com as forças que lhe são mais amigáveis para se manter vivo. Mas na verdade, ninguém sabe se voltará vivo à noite ou em qualquer momento do dia.
Ainda assim, há os que insistem na idolatria a esses lugares imensos, absurdos, concretados, com o orgulho de insanos que tentam convencer a si e aos demais de que há felicidade em lugares tão desprovidos de humanidade.
Os pobres são empurrados cada vez mais para a distância segura, de onde poderão consumir o transporte que os levará ao centro. Lá tentarão encontrar trabalho, entregando seus currículos, vagando por horas em busca que qualquer trabalho. E talvez por isso a cidade continue a ser este monstro, porque qualquer trabalho é possível, sempre será.
A cidade esconde uma vida subterrânea. Um blackout numa noite ou um movimento dos invisíveis pode parar a cidade, trazer pânico, terror, desespero. As enchentes, os deslizamentos, a febre, a doença. O ruído que atravessa a mente, finca a estaca da psicopatia e os indivíduos portam esse pau-de-arara socializado. De repente emerge uma multidão de desvalidos, de onde surgiram? Há uma frágil segurança nas cidades.
Cá entre nós, acima de alguns milhares de habitantes, qualquer cidade se torna inviável. Não sabemos o que nos espera se o capitalismo colapsar, sabemos como as cidades se arrastam na crise endêmica do sistema. Há como que uma necessidade de manter a crença de que a cidade ainda é o único lugar viável e possível, talvez não haverá outro e o que nos restará será reconstruir nossas relações entre tantos anônimos e desconhecidos.
Tornou-se um lugar comum o fato de elogiar São Paulo em seu aniversário. Programas de rádio e TV querem nos convencer de que a cidade de São Paulo é amada e deve ser amada incondicionalmente. Mais uma vez, a aderência a uma condição social que requer dos indivíduos um convencimento conveniente. Precisamos estar certos de que essa cidade como tantas outras, é o melhor lugar para viver.

domingo, 23 de janeiro de 2011

O Cretino Social


          I
Com um humor cáustico e ácido, Nelson Rodrigues[1] nos apresentou a figura emblemática do Cretino Fundamental. Seria quase uma redundância e uma covardia procurar avançar nesse emblema social, que se tornou um marco para a compreensão do indivíduo atual, com muita perspicácia, apesar de não podermos deixar de considerar, de alguma forma, a trajetória política de Nelson Rodrigues, mas reconhecer seu tirocínio no que tange à produção de tipos sociais muito bem marcados e envoltos por uma aura acachapante. Mas este é o motivo, ou, o mote pelo qual poderei elaborar uma reflexão ampliando essa questão do cretino social para o que podemos considerar a preservação de um discurso que tem como objetivo reproduzir a estrutura do capital no desdobramento da mercadoria.
Haverá qualquer motivo que nos leve a considerar que o homem moderno se realizou plenamente? Terá este indivíduo alcançado seus projetos humanos no que tange às suas próprias perspectivas? Terá realizado seus sonhos humanos mais profundos? Quanto ao que lhe cabe no mundo ocupado pela lógica social da mercadoria, seria este indivíduo emancipado em sua condição social? Sua suposta alienação seria apenas motivo de crítica por parte dos que se opõem ao capitalismo, de sorte que não passaria de um nicho de intelectuais anacrônicos em um mundo prático, submerso no paraíso das coisas e objetos que compõem a felicidade imediata dos homens e das mulheres atuais? Em última instância, a que se deve o mal-estar que se apossa do meu pensamento e faz com que eu atribua um juízo sobre este indivíduo que está precisamente voltado para um mundo ensimesmado?
Diríamos, sem qualquer risco de incorrermos em erro, que o homem moderno vive o seu mais profundo e histórico retrocesso, ou, em vista das grandes promessas que lhe foram atribuídas, estaria este sujeito moderno em vias de um colapso psicossocial. De um modo muito peculiar, a alienação e o imediato das relações são o cotidiano santificado dos seres humanos, o que parece ser apenas um dado para ser colocado à prova, é para o sujeito comum, aturdido com sua alienação, algo pelo qual não deve prevalecer qualquer crítica. Por mais que haja uma crítica imperiosa ao que muitos enxergam como o império da individualidade, o indivíduo moderno foi alijado de sua própria capacidade de cumprir seu destino, está apartado de sua individualidade e obedece a uma espécie de estrutura invisível que o condiciona, dando-nos a impressão de que é ele um idiota na forma grega de sua acepção. Porém, ao observar com mais acuidade e paciência, podemos encontrar nesse sujeito um comportamento que obedece a uma determinação que é, em princípio, coletiva, pois cada qual converge, mesmo com seu modo exclusivista e excludente, a uma formação social que se tornou um eixo para todos se sentirem pertencentes ao sistema.

II
Este destino, atado às determinações e os modos pelos quais a mercadoria se expressa no interior do comportamento mais rasteiro do homem, não mais se vê apartado das probabilidades do próprio sistema capitalista, ao contrário, quanto mais a sociedade capitalista se totaliza como um conjunto que abrange a linguagem dos indivíduos sociais, sua sintaxe, sua religião, sua família e suas instituições, mais se torna ele mesmo (o indivíduo) parte integrante – a tautologia social que suprime todas as probabilidades de reflexão crítica, sucumbindo a um senso comum, transformado em dogma perene de toda sociedade.
A atitude patrimonialista do indivíduo aburguesado pela noção de preservação de sua herança, desenvolvendo para isto uma sociedade segura, cuja virtude estava na disciplina, no trabalho e no acúmulo, o trabalho era o grande valor que se encaixava perfeitamente nas condições existências desse indivíduo moderno. Estou aqui a me referir a um determinado modo de vida que começou especialmente num período em que o mundo conheceu o capitalismo pujante da indústria. Por isto “Esse desejo era de fato uma matéria-prima bastante conveniente para que fossem construídos os tipos de estratégias de vida e padrões comportamentais indispensáveis par atender à era do “tamanho é poder” e do “grande é lindo”: uma era de fábricas e exércitos de massa, de regras obrigatórias e conformidade às mesmas”[2]. Isto não quer dizer que este indivíduo historicamente construído a partir de uma visão de austeridade espartana e favor de um acúmulo para o bem das glórias humanas e divinas, que cumpria com uma forma de comportamento cuja base era a exploração do trabalho na forma mais acabada e, portanto, mais abstrata e alienada que a história pôde presenciar, seja, de algum modo, um exemplo de homem ou de indivíduo a ser seguido. É a partir dessa base psicossocial que houve as condições estruturais para um salto de qualidade que nos trouxe para este novo indivíduo, moderno, contemporâneo homem, atomizado, fragmentado, idiotizado, que sucumbiu a toda forma de exigência da mercadoria.
Este indivíduo, masculinizado pelas estruturas de produção e pela ideologia dos sistemas que fluem para se tornarem a expressão de uma metacultural, atualmente, a colonização da mercadoria em toda face da Terra, formalmente instituído pelo poder a ele mesmo aferido, foi levado gradativamente a abdicar da crítica em favor da cotidianidade, havendo então um ocultamento dos verdadeiros sentidos da exploração e do fetiche social. Sua transformação em um conteúdo imaginário, trazido para a realidade das imagens que se misturam às relações de cada dia, e que poderiam nos oferecer, minimamente, um estudo fenomenológico dessas relações, trazem um universo que nos coloca diante de um imenso vazio existencial. Quero com isto dizer que a alienação não pode ser apenas entendida como um dado historicamente aglutinado pelas forças de produção, mas, temos de considerar que a alienação se desdobrou dialeticamente, de um modelo que arranca do indivíduo de sua própria condição inicial, de sua totalidade, de uma possível potencialidade de suas próprias forças para, logo em seguida, se tornar um ser conduzido por elementos alheios à sua vida, por isso, a individualidade foi extirpada da vida humana. Dessa forma, é lícito dizer que “Em relação ao primeiro estádio da evolução histórica da alienação, que se pode caracterizar como uma degradação do “ser” em “ter”, o espetáculo consiste numa degradação ulterior do “ter” em “parecer””[3].
No mundo das imagens em movimento, no mundo das imagens em virtualidade, temos a imagem que se constrói do homem comum, e de seu senso, isto é, o pensamento que ele tem de si mesmo, não passa de uma imagem. Mas esta imagem não existe solta, a pairar pela consciência, como uma mônada existencial. Não se trata disto, pois o caso é que esta imagem, ou as imagens que são construídas atuam diretamente sobre a vida dos indivíduos e também sobre suas relações a partir de uma realidade palpável. De que realidade falamos? Daquela cujo único sujeito de fato aparece, ou, dito de outro modo, o verdadeiro sujeito histórico contemporâneo é a produção de valor capitalista e, por conseguinte, a sua expressão reveladora, mistificadora em determinado aspecto dessas relações, a saber, a mercadoria. É a partir e por meio desta coisa, a forma mercadoria, que a imagem do mundo se distorce, o ser humano, obrigado a viver sob a égide das relações engendradas pela mercadoria, é colocado numa teia, cujo primeiro estágio é a alienação, e daí por diante, submete-se a um processo de inversões absurdas. Diremos que a necessidade de adquirir mercadorias faz com que não apenas o comportamento para a sua aquisição no mercado, bem como todas as formas de ação e estratégia no trabalho, nas hierarquias, nas decisões e na execução de qualquer coisa, além de todas as relações implicadas no modo de vida relacional, estejam absolutamente conformadas a uma lógica que implica obedecer a uma imagem.
De que imagem falamos? Da imagem projetada como modelo de todas as outras imagens sociais, de todas as imagens-objeto, de todas as imagens materiais ou espirituais, quer dizer, com isto, que tudo converge para um algo que se metamorfoseia em metalinguagem, em meta-cultura, a mercadoria.
Ainda ficamos com o discurso restrito e reducionista de que a mercadoria é apenas um elemento a mais no processo de alienação, como se fosse o indivíduo o verdadeiro responsável pela sua alienação. No entanto, aqui é preciso fazer uma objeção a essa noção de senso comum, porque ambiguamente o homem-indivíduo teria poder sobre as mercadorias, no entanto, é ele dominado por uma forma-mercadoria que abrange todas as formas menores, e não se trata, como muitos ingenuamente atribuem, a impulsos, desejos, paixões, esquizofrenias estruturais, etc. É evidente que tudo faz parte do universo doentio do indivíduo atual, mas a mercadoria nos mostra a servidão com que o indivíduo se apresenta ante ela mesma, até porque “Os indivíduos servidos pelo capitalismo acabam sendo, ao final, seus servidores inconscientes. Eles não são apenas mimados, distraídos, alimentados e corrompidos”[4].
A alma dos negócios humanos está voltada especialmente para atender necessidades de um algo que não se manifesta totalmente e por isso mesmo, tem-se a impressão de que não existe de fato, que não passa de uma interpretação.
Neste momento em que o mundo está diante de um cataclisma social, perguntamos, de qualquer modo, se foi melhor que o sistema tenha falhado e mostrado suas fissuras. Se o capitalismo tivesse alcançado seu objetivo e não tivesse falhado em qualquer circunstância, seria o fim para este indivíduo. A sorte para todos nós é que nenhum sistema permanece como está e, por outro lado, historicamente a consciência parece permanecer atada ao sistema, mesmo que viva a sua decadência em todos os seus aspectos. Por isso, a crítica a o cretino fundamental tem um limite histórico, representa, por um lado, a substancial revolta para com um modo de vida que atingiu as relações humanas, desumanizando-as e, de outro, representa um grito de esperança, já que é possível compartilhar novas visões de mundo, nas quais esse indivíduo supere e encontre a emancipação, mas não sem levar em conta a sua condição de alienação total que hora o faz mergulhar e reproduzir as estruturas sociais do capitalismo.
E não é por outro motivo na insistência de que a mercadoria assumiu a centralidade do mundo, levando o indivíduo a uma projeção invertida de si, posicionando sua imagem nas relações humanas, assim determinadas pelo poder hierárquico.


            III
Uma virtude, dentre tantas outras, parece ter dado força a este homem atual, a objetividade e a praticidade para viver nos meandros da sociedade da mercadoria, estabelecendo suas estratégias sociais que se tornaram, por outro lado, estratégias psicológicas bem delineadas e sobretudo aplaudidas por consultores, administradores, gestores e psicólogos do trabalho. Esse indivíduo deve consolidar suas estratégias a fim de se conformar o mundo das relações que o levam à sua própria preservação, assim “Ele reage continuamente ao que percebe sobre si, não só conscientemente mas com o seu ser inteiro, imitando os traços e atitudes de todas as coletividades que o rodeiam (...) forçam um conformismo mais estrito, uma entrega mais radical à completa assimilação, do que qualquer pai ou professor poderia impor no século XIX”[5]. Obedece de um modo a preservar suas próprias posições, e o que parece ser mais interessante, na verdade, quase um verdadeiro milagre, é este conformismo biológico, instantâneo, que não prescinde de uma educação formal, a estrutura social jê por si engendra essa educação.
Tem-se a impressão de que o grande personagem impessoal de Nelson Rodrigues vingou na história, o cretino fundamental parece ter conquistado seu lugar no mundo capitalista, mesmo que para isto foi preciso criá-lo a fórceps. Paradoxal é a postura desse cretino, que imagina ter o poder sobre o mundo e, de outro lado, não se apercebe das engrenagens que o trituram diariamente e isto se revela no fato de que “o capital domina a consciência e, por conseguinte, o comportamento das pessoas, e finalmente o valor de troca em seus bolsos mediante a empatia do servir; portanto, o poder visto como mero servidor torna-se realmente dominante”. (p. 80, Crítica da estética da mercadoria) Não deixa de ser emblemático que ele tem algum poder, talvez o de manter refém sua própria consciência, de seqüestrar seu próprio corpo em nome da sobrevivência, que aliás parece ter orgulho em vociferar aos quatro cantos sua atitude obediente ao modelo atual.
Muitos criticam efusivamente a expressão mais visível desse cretino homérico, tratando de denunciar o chamado individualismo, mas esta hipocrisia não leva em conta que este individualista se torna um ser de traços egoístas devido à impossibilidade de compreender a práxis como elemento entre teoria e prática, em sentido dialético, que nos leva a um aprofundar do senso comum. Os pequeno-burgueses, com suas teorias morais alicerçadas na religião cristã (de vários naipes e cores), insistem em dizer que o problema não passa de perversão individual, que a solução estaria numa solidariedade, na fraternidade que só as religiões teriam possibilidade de realizar.
Por outro lado, sua práxis está totalmente em conformidade com as estruturas lógicas que são impostas pela forma-mercadoria, mesmo assim, a relação com as coisas é direta, imediata e toda forma de mediação não passa de um substrato que nos leva a dizer, em outras palavras, que a coisa manifestada e a o que se pensa acerca desta é linguisticamente o mesmo. Há uma consciência impregnada nesse processo, pois “Com efeito, o homem comum corrente se encontra em uma relação direta e imediata com as coisas – relação que não pode deixar de ser consciente –, mas nela a consciência não distingue ou separa a prática como seu objeto próprio, para que se apresente diante dela em estado teórico, isto é, como objeto do pensamento”[6]. Daí podermos inferir, com certa licitude, o fato da imagem corresponder às relações sociais. O estrategista moderno sabe exatamente a quem deve obedecer e de que forma deve fazê-lo, sua preservação é, concomitantemente, a preservação do próprio sistema. Isto parece um paradoxo, mas é no interior dele que esse sujeito tornado cretino a cada instância de sua existência, permanece como que a esperar, ainda, a possibilidade de realização.
O mito da realidade que se apresenta sem qualquer necessidade de argumentação ou explicação, a vida estabelecida em conformidade, a conformação diríamos, absoluta, a necessidade de preservação a todo custo, o imperativo produtivo para o consumo, a técnica que deve ser adquirida a fim de que este cretino seja útil à empresa, mesmo que intimamente permaneça a insegurança material e espiritual, todos esses elementos caracterizam parte fundamental da condição do desse indivíduo. Trata-se, então, de elaborar mecanismos de reação a uma realidade da qual não se tem muito claro o que ela é, mas que, de alguma forma, atinge cada qual em sua singularidade. A singularidade afeta o indivíduo na sua mais íntima realidade, ao mesmo tempo, toca-lhe o corpo, a sensação, a percepção, a intuição, toca-lhe a consciência, toca-lhe na dor e no prazer, enfim este indivíduo sente as agruras de um mundo que lhe é adverso, perverso na sua condição de realização, no entanto, ainda trafega por meandros nos quais permanece com a convicção de que há possibilidades, mas algo não corresponderia às suas expectativas, estas deverão se cumprir se, por ventura, houver uma adequação, diríamos, uma harmonização entre o que o sistema exige e o que o indivíduo deve fazer para se adaptar perfeitamente.
Se formos levar em conta a relação entre o sistema e o indivíduo, podemos observar que este é instado continuamente a se adequar ao modelo vigente, cabendo-lhe mudar quantas vezes for necessário para encontrar o trilho certo, no qual realizará suas vontades. Os desejos desse indivíduo somente poderão ser satisfeitos na medida em que souber equilibrá-los às regras do capitalismo, dito de outra forma, é neste contexto que surge a necessidade imperiosa de configurar uma imagem à forma-mercadoria, na sua totalidade. Uma imagem que é portadora de conteúdos, e que são formalmente instituídos no comportamento dos indivíduos. Por outro lado, uma imagem que fugiu ao controle e se apresenta como reprodução esquemática das estruturas da produção de valor. E é por isso que ele se sente só no meio de um turbilhão de imposições, sendo coagido e recebendo, por parte de um senhor absoluto, o juízo do que deve ser feito para alcançar com méritos, o objetivo supremo dessa sociedade.
O engano nesse processo é que se há algo de utópico trata-se do capitalismo em si. Nada há no capitalismo que nos indique que será capaz de oferecer os instrumentos para a realização do ser humano na sua totalidade, sua utopia reside em suas contradições internas. Esse indivíduo que tanto faz, que tanto luta para se harmonizar ao sistema, jamais poderá fazê-lo, jamais encontrará sua paz, jamais haverá a harmonia entre si e a forma-mercadoria, bastando a ele, tão-somente, continuar a ser explorado, sodomizado, torturado até o fim de seus dias, a não ser que encontre meios para emancipar-se. Entretanto, esses meios não se darão por mágica, por voluntarismo, ou por meio de conversões moral-religiosas, mas por meio de ações entre os próprios indivíduos, já que estes são os que podem subverter a lógica da estrutura da forma-mercadoria, podem, contrariamente a todas as determinações e determinismos, romper e minar a realidade em que se encontram. 
Voltemos à sua consciência, ela está sobrecarregada pelos sentidos imediatos, vê, toca, cheira, sente toda sorte de emanações e exortações que lhe chegam do mundo, mas este mundo não é isento, um todo sem qualquer intencionalidade. O mundo está composto por seus símbolos que são a expressão de um processo de relações, e em todas as relações, em todos os momentos, há um elemento que as coloca em é de igualdade, uma linguagem comum, uma moeda de troca com a qual todos podem se corresponder, que é a mercadoria. Por conseguinte, sua moral pequeno-burguesa se espalha por todas as relações de sua vida social, baseando-se nessa complexa estrutura que penetra todas as formações sociais.
Sua objetividade é seu orgulho, a virtude atual se condensa na capacidade de obedecer às ordens de uma estrutura cuja face de dominação é sem um dono explícito, obedece como um reprodutor automático que se orgulha daquilo que lhe foi “ofertado” ao longo de sua penosa carreira pelos meandros do capitalismo, sentindo-se realizado, como quem cumpriu sua missão na face da terra, missão carregada de moral, de valor religioso, de imperiosa lei do mercado. “Essa atitude natural baseia-se em ver a atividade prática como um simples dado que não requer explicação”[7] e nada parece requer qualquer explicação de cunho crítico-reflexivo, apenas as necessárias úteis, axiomáticas, para a manutenção do emprego, para a elaboração da estratégia para sobreviver no cotidiano. Qualquer forma até mesmo de possibilidade de romper com o senso-comum a fim de se perguntar sobre as verdadeiras razões da alienação, não ocorre, e a consciência se reduz a um amontoado de impressões, sensações e modelos que são seguidos ad eternum pelo indivíduo – valores religiosos anacrônicos, moral sexual da autopunição, cinismo, preconceitos, competição como virtude, apropriação capitalista, etc. – e nada se apresenta como um vestígio, por mínimo que seja, para romper com a mesmice social e chacoalhar este indivíduo para ao menos possa refletir sobre sua condição.
Não deixa de haver reflexão sobre sua condição, no entanto, ela se reduz a tentar explicar formalmente as razões pelas quais há deficiência para alcançar os objetivos do próprio sistema, isto é, seu nexo com a realidade está exatamente para aparar arestas a fim de cumprir as regras do jogo; não passa pela sua consciência, questionar o jogo, apenas manter-se em condições para continuar a jogá-lo, por isso, “Seus nexos com esse mundo e consigo mesma (a consciência) aparecem diante dela em um plano ateorético. Não sente a necessidade de rasgar a cortina de preconceitos, hábitos mentais e lugares comuns sobre a qual projeta seus atos práticos”[8].
IV
E quanto mais se vê o pensador compromissado em interpelar os indivíduos e intervir sobre essa realidade absurdamente insensata, mais sente-se enredado pelas formas mentais que atingem a quase totalidade do universo social, cujas formas de mentalidade estão organizadas como se fossem uma única estrutura impessoal. Dificilmente poderíamos penetrar na consciência desse homem, do cretino fundamental sem que nos sentíssemos aprisionados e com a nítida impressão de que a realidade assumira novos contornes em torno à mentira social reinante, inclusive criando a sensação de impotência recorrente. A utilidade desse pensamento está no fato de que serve totalmente ao modo de vida que a mercadoria impõe a todos indistintamente. Isto não é suficiente, é preciso então imaginar um mundo para além desse cretino social, da apatia política que o reveste, da condição insana na qual se meteu. Não é um único indivíduo, mas um amontoado que se torna uma multidão.
Ainda assim, devemos ter em mente que há um tensionamento entre a prática e a teoria. Muitos cínicos exigirão uma alternativa. Mas o crítico social deve ter em mente que há limites nesse processo crítico-reflexivo, mas não deve deixar de apontar a realidade ou, ao menos, dar à realidade uma interpretação, que seja a representação a partir de elementos razoáveis sobre ela e isto implica que, de um lado, o intelectual está impregnado dessa mesma realidade, de outro, é mister abstraí-la para que ofereça elementos que possam respondê-la com o intuito de não se mostrar além ou aquém desse contexto.
Alternativas são possíveis? Alternativas existem? Sim, de modo pragmático, sempre haverá alternativas, mas aqui é imprescindível não mergulhar numa espécie de profetismo social, político ou ideológico. Sem enfrentar o capitalismo não será possível superar a condição do cretino social. Uma espécie de guerrilha de consciência mesclada com um pacifismo que enfrente não a violência endêmica do sistema, revelada pelas guerras e pelo controle hierárquico, devemos nos tornar pacifistas contra a forma-mercadoria diante da totalidade das relações sociais. O problema crucial a ser enfrentado é que o processo da produção se estendeu por toda a arquitetura social, devemos penetrar, de alguma forma, as organizações e estruturas produtivas, desburocratizar tais articulações, desmercantilizar as relações hierárquicas, de forma que a guerrilha e o pacifismo estejam em relação dialética, no interior dessas relações de poder, cuja base é o do trabalho, da produção, que se espalha pelos ambientes da educação, da família, do Estado, dos institutos de controle, etc. e dessa forma, é preciso minar essas relações até que o sistema entre em colapso. Não sejamos ingênuos no sentido de acreditar que ao minar essas relações o capitalismo implodiria, uma vez que temos de considerar aquelas forças que imprimem ao capitalismo a sua contradição, sua decadência e seu colapso, do ponto de vista lógico. Assim, devemos atuar dialeticamente no interior do sistema e, de outro lado, estarmos atentos às fissuras do sistema.  


[1] RODRIGUES, Nelson. O óbvio ululante. 6. ed., São Paulo: Cia das Letras, 1996.
[2] BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 42.
[3] JAPPE, Anselm. Guy Debord. Tradução de Iraci D. Poleti e Carla da Silva Pereira. Lisboa: Antígoca, 2008, p. 17.

[4] HAUG, Wolfgang Fritz Haug. Crítica da estética da mercadoria. Tradução de Erlon José Paschoal. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997, p. 79.

[5] HORKHEIMER, Max. Eclipse da razão. Tradução de Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Centauro, 2002, p. 146.

[6] VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da práxis. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales – CLACSO; São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 32

[7] Ibidem, p. 31.

[8] Idem, p. 31.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Aporia Histórica

No contexto mundial, cuja hegemonia histórica nos revela a consciência social do capitalismo que assombra as relações em todos os níveis atuais, parece impossível encontrar um veio capaz de transformar a indignação em realidade que faça superar o capitalismo. Esta obsessão quanto à necessidade de superar o capitalismo vem da compreensão de que se trata de um sistema opressor, que arranca ao indivíduo a sua própria individualidade. Esmaga a sua capacidade de autodeterminação, tira-lhe o melhor de sua força intelectual, faz dele um ser como os objetos que consome diariamente. Ele pode ser contado, calculado, determinado, seu valor, o tempo em que é estabelecido tem um valor, a espera no ponto de ônibus tem um valor. O indivíduo é transformado em uma coisa igual às coisas.
Me parece não haver nada semelhante na história das formações sociais.
Mais precisamente, o movimento do capitalismo iguala objetos e coisas produzidas a seres humanos. Esta é uma operação simples, mas que não se percebe com facilidade, isto demonstra que é um sistema capaz de envolver os indivíduos de forma tal que não lhes é possível perceber o que lhes ocorre. Marx percebera isto de forma magistral.  Ele mostrou que há um processo que engendra o homem num emaranhado do qual não consegue se desvencilhar, ele porta a consciência do sistema e este o enreda.
A vida diária está marcada por condições que afetam os seres humanos, sua expressão raramente é com intuito de mover-se contra o capitalismo. A hostilidade, de algum modo é o reflexo da expropriação material. A constatação de que somos mercadorias não chega a afetar as pessoas, inclusive, de um modo geral, não parece ser possível perceber o grau de gravidade nesta forma social.
Tudo fica absolutamente abstrato e por ser abstrato, distante, radicalmente, cindido. Esta imensa vocação à abstração nos cinde da realidade concreta. O capitalismo instaurou a metafísica no concreto da vida. A bondade, o altruísmo, a generosidade continuam presentes entre os seres humanos, assim como a sua maldade, fealdade, sua ganância e imoralidade. Somos capazes de separar a vida do capital e do resto de nossas próprias existências. Podemos ser bons sem nos darmos conta de que há um modo social que deve ser superado. Podemos nos consternar com as tragédias, mas em última instância, valerá a relação de comércio que nos pauta o mundo.
Não há relação entre os elementos da contradição nem pode haver na consciência social, a vida separada é experimentada com naturalidade em todas as formas de relação, na família, na religião, nos ambientes de lazer, no trabalho massificador e abstrato.
Aliás, é no trabalho que podemos compreender melhor o que nos atinge. Uma realidade avassaladora - é o lugar onde o torniquete social pressiona o corpo e a mente e transforma indivíduos em zumbis sociais.
Mas isto não é tudo, porque, na outra ponta dessa realidade, encontramos a abundância, tanta e com tantos elementos que se tornam conquistas legítimas. A privacidade, a liberdade dos indivíduos em determinadas circunstâncias, o conforto tecnológico, o acesso à informação, os modelos matemáticos que conduzem nosso cotidiano urbano.
Mas para criticar o capitalismo com vistas a superá-lo, sem ser obsessivo, é preciso abarcar linguagens mais amenas, menos incisivas, ou, diria, menos radicais. A cultura foi absorvida pelo capitalismo e por mais que tenhamos espaços nas expressões culturais, os indivíduos estão interessados em que na música, na poesia, no teatro, no cinema, haja reflexão dispersa nas formas amenas. Uma espécie de pensamento anestesiado, que visa refletir sobre o mundo das formas, os valores da pequena-burguesia continuam na moda para serem consumidos nos divãs e nas prateleiras das grandes livrarias.
Por outro lado, cada vez mais distante no horizonte parece estar a derrocada do sistema. Isto nos coloca diante de outra exigência. Muitos acreditam que ainda há tempo para digerirmos o consumo, as riquezas, as relações que nos garantem alguma segurança afetiva. Se houver mudança radical, ela ocorreria no futuro, preferencialmente distante do nosso horizonte. Nossos horrores podem ser administrados sem que tenhamos de conviver com a iminência do colapso ou da barbárie. O capitalismo é bárbaro, paradoxalmente ao fato de que ao se estabelecer, necessita de condições pacificadoras para que seus negócios prosperem em todos os âmbitos sociais. Nossos interesses também se tornam difusos, mas importa aproveitar os oásis de consumo que nos é oferecido por agora.
O nosso problema crucial é que não há como amenizar esta realidade. Humanizar o capital não eliminará, em hipótese alguma, a produção de valor. O que está por detrás desta forma social é que ela controla os seres humanos e não o inverso. Produzir valor é produzir mercadorias e o fetiche aí embutido revela a real condição de nossa sociedade.
Aqueles que permanecem na crítica radical ao capitalismo, estão enclausurados, isto não quer dizer que não há pensamento nem teoria a respeito do contexto atual. Mas mesmo assim é difícil entender quais as justificativas pelas quais os seres humanos se debatem para manter um sistema social absurdo. São muitas as explicações, mas é impressionante como somos submetidos e nos submetemos.
Talvez e por isto temos nos colocado numa espécie de aporia diante da própria realidade. Como totalidade, o capitalismo parece ter atingido a sua estrutura máxima, a tautologia histórico-social e daí a tendência a esperar pelo fim. A chegada à totalidade implica, ato contínuo, sua decadência.
Mas é aporia à medida que o projeto de civilização capitalista chega ao seu estertor e realiza seu projeto ao mesmo tempo em que aponta para a sua destruição, devorando a si mesmo como um monstro.
Isto demonstra, por outro lado, a engenhosidade de um sistema capaz de subsumir a toda forma de hostilidade e que para continuarmos a ser hostis a ele temos de nos utilizar dele mesmo. Esta é a contradição que toda forma de filosofia não é capaz de encontrar um caminho de superação. Aliás, não compete à filosofia buscar os caminhos, creio que seu papel de denúncia deve ser apresentado ao conjunto da sociedade para que façamos juntos. Devemos pensar em SUPERAR o Capitalismo, Extirpar, Transformar ou Destruir? Talvez ele encontre sua própria destruição sem a ação definitiva dos indivíduos e suas organizações.
A reprodução desse processo também é historicamente observável. Encontrar uma linguagem capaz de furar o bloqueio da teoria e dialogar com a sociedade é um caminho que deveremos seguir se quisermos contribuir para a superação do capitalismo.