O corpo. Quando pergunto aos meus alunos, no primeiro dia de aula, qual é a coisa mais importante para eles, as respostas mais abstratas surgem de todas as partes da classe. A família, Deus, o cãozinho, a vida, o amor, o trabalho, o dinheiro, a esperança, o namoro. Todas essas coisas são ditas e convictas como as coisas mais importantes. Então, eu continuo a insistir com a pergunta. Procuro ser mais específico, mais incisivo, e peço que digam uma só coisa importante. Se bem que uma coisa pode ter o caráter que Immanuel Kant quisera dar a essa forma de existência – a coisa – mas aqui é apenas uma coisa. Talvez seja impossível chegar a uma coisa, a coisa-em-si.
A perplexidade continua. O que será afinal a coisa mais importante?
A perplexidade continua. O que será afinal a coisa mais importante?
Nesse momento, faço uma descrição, conduzindo a indagação: digo a eles que é a única coisa que realmente nos pertence, com a qual nascemos e morreremos. Não poderemos emprestá-la a ninguém, não poderemos tomar de empréstimo, morreremos com esta coisa. Graças a ela é que adquirimos todas as noções e sentimentos, toda forma de conhecimento e todas as condições para termos o que somos.
Pois então, afirmo, depois de algum suspense, que é o CORPO. Percebo o espanto e a indignação de alguns. Especialmente os religiosos e fiéis se sentem ofendidos. Mas afinal, não é Deus a coisa mais importante?
Sem o corpo nada pode acontecer para nós. Até as noções e conhecimentos que temos do amor, da divindade, da generosidade ou do ódio e pavor, são possíveis por meio do corpo. Toda forma de abstração só acontece porque temos um corpo. Nossa trajetória pelo mundo ocorre com o nosso corpo. Ele é presença constante.
Mas, de alguma forma, nosso corpo, parece ter deixado de ser nosso corpo. Ele pertence a todos e a tudo, e quase sem querer temos uma pálida consciência sobre ele mesmo. Passamos boa parte do tempo sem perceber ou notar o próprio corpo. Nosso pensamento não cabe mais nas proporções físicas do corpo, estamos para além dele, além de suas fronteiras. Estamos em todas as partes, mas não estamos mais com o nosso corpo.
Ele é medido, moldado, calculado, contado, determinado, formado, deformado, estruturado, mutilado.
Pertence ao trabalho, aos ambientes diversos. Pertence a quem nos paga. Em cada ambiente o corpo assume uma linguagem. Ele é vendido, comprado, se transforma em vitrine ambulante – tatuado, rasgado, costurado. Sua imagem é mais importante, pois com ela podemos ser o que não somos. Os corpos devem ser desejados, amados, possuídos, explorados. Ele tem de se mover para ser mostrado.
Quantos sofrem com seus corpos e os escondem? Um corpo que sofre, deixado à própria sorte, atirado na solidão, que caminha para o seu próprio fim. O fim de tudo!
O corpo não pode perecer. A ciência, a religião, a escola, a TV, a Internet, todos se mobilizam para manter os corpos vivos. A idolatria à não-morte é tão intensa quanto a idolatria à imagem do corpo. Os corpos devem ser mantidos como num campo de concentração, prontos para serem tratados cientificamente.
Quanto sofrimento! Mesmo assim é um presente-ausente, entre tantas coisas que estão entre nós. Corpos que se vão, corpos que se mostram. E que fala, fala pelos poros, grita com seus olhos e sua boca.
Ao mesmo tempo, esses corpos são esmagados, humilhados diuturnamente. Nas filas, nos trens, nos ônibus, empilhados como caixas transportadas para o consumo. Como um bombardeio infernal, é preciso consumir. O corpo é o núcleo do consumo moderno. A propaganda fala ao corpo. A igreja fala ao corpo. A gôndola do supermercado fala ao corpo. Todos querem o corpo e querem cuidá-lo. O Estado, a Igreja, a Família, a instituições, a política e seus partidos.
O corpo é a mercadoria por excelência. A mercadoria especializada. A mercadoria extraordinária. O corpo está para a mercadoria como a alma está para Deus. É o centro do universo, o lugar absoluto por onde tudo passa. E por ser mercadoria, não pode envelhecer. A juventude é o modo pelo qual o corpo deve resplandecer e ser vendido na embalagem social.
Todos hoje sabemos que o corpo é a fonte da delação. Ele nos delata, se soubermos ler a sua linguagem, saberemos decifrar seus segredos. O corpo tenta se esconder, mas não consegue, ele grita por todos os poros. Mesmo confinado, silencioso, quieto, ele nos denuncia, não há crime passível de impunidade com o corpo.
Destinado a lugares comuns, o corpo se mostra inconsequente, incauto, claudica ante os olhares mais atentos. O corpo não consegue se esconder, atrofiado, tenta manter-se vivo, mas luta contra sua própria contradição. Essa contradição é visível, entre o mundo, a realidade e a abstração de si mesmo, o corpo é submetido a uma realidade absurda.
Na sociedade atual, o corpo é a fonte imprescindível da beleza, da arte, do grito, do governo. Sem o corpo não há sociedade nem Estado nem capitalismo. Adestrado, educado, confinado, como gado, obediente, está em toda parte, requer cuidados, mas se torna o inferno para outros corpos.
A fonte da exploração e do acúmulo é o corpo. Sobre ele, bilhões são ganhos. O corpo dá o que jamais lhe será devolvido. É controlado, vigiado com a tecnologia mais avançada e cada vez mais o será em escala planetária.
De fato, não sabemos o que fazer com os corpos. Exercem poder, fascínio, submissão, dor. A dor que conhecemos só é possível por causa do corpo. De qualquer forma, o corpo é uma contradição, um escândalo, como a morte, como o fim. Quase tudo permanece, mas o corpo tem um fim, termina sua existência, sua locomoção, a morte o define como o estertor de uma vida. O corpo sofre, destemido, insiste em viver, permanecer percebido entre outros corpos.
Resta pouco a dizer acerca do corpo. O caminho da linguagem. A sombra da verdade. Somos a luta contínua. Mas ainda temos de pensar no esmagar desse corpo face ao mundo da mercadoria.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado pelo seu comentário