sábado, 18 de agosto de 2007

Mercadoria e o fim da história

Por Atanásio Mykonios
Crítica da Necessidade




A mercadoria engendra um modo de relações cindidas, apartadas da história. Enfrentar teoricamente o sistema requer uma abordagem esotérica da compreensão marxiana do modo como se dá a mercadoria. Ela está no centro, mas será preciso enfrentá-la metodologicamente para determinar os elementos de sua contradição interna. A determinação da mercadoria e a extinção da história. A mercadoria revela o apagar de um processo vivo, concreto, real. Torna-se uma entidade metafísica que impõe o esquecido do trabalho e da origem das condições concretas em que este ocorre. O ponto de partida é literalmente esquecido. O processo de troca elimina a história, a história e a memória social, esconde a essência real das relações, coloca no lugar uma idéia que aparece naturalizada, divinizada, como que vinda dos céus.
O pensamento burguês se desprende do concreto e se transforma em uma força natural, ou uma força da natureza. Assume uma forma, a forma cristalizada, a forma que parece ser dada, conforme Marx apresenta. O componente histórico perde sua feição, a forma, aquilo que aparece se torna, a seu tempo presente, seu próprio conteúdo, nada mais, pois a historia que poderia indicar o processo e nele constatar o caminho percorrido não existe mais. Marx teoria sobre a teoria, como György Lukács, em História e honsciência de classe, afirma. Assim, a história tem o sentido não apenas de mostrar os fatos, os ocorridos, mas é o de mostrar o que ocorreu com o processo, como é que o homem transgride a própria realidade e coloca o mundo de cabeça para baixo.

O pensamento burguês, contudo, deve deparar aqui com uma barreira intransponível, visto que seu ponto de partida e sua meta são, embora nem sempre consciente, a apologia da ordem existente das coisas existente ou, pelo menos, a demonstração de sua imutabilidade. (LUKÁCS, 2003, p. 136)

O pensamento burguês e ao mesmo tempo seu próprio comportamento revelado pelo valor conseqüentemente afeta toda a vida social, inclusive a moral dos indivíduos, penetra na ética social, amplia-se no sentido das atividades científicas, a ciência se torna a visão burguesa do mundo e, tem como fundamento a iniciativa de romper com a história, transformar as relações de valor e necessidade em elementos naturalizados, em outras palavras, uma metafísica do mundo do valor, da mercadoria e da necessidade. Lukács, ainda salienta que:

deve eliminar do processo da história tudo o que tem um sentido, que visa a um fim; deve deter-se na mera "individualidade" das épocas históricas e de seus portadores sociais e humanos. Com Ranke, a ciência da história deve insistir no fato de que cada época histórica “está igualmente próxima de Deus”, isto é, alcançou o mesmo grau de perfeição e que, portanto, por motivos opostos –, não há, por sua vez, um desenvolvimento histórico. (Ibidem, p. 137)

As relações são produzidas pelos homens e não por outra coisa. A partir da naturalização, os fantasmas prorrompem em uma relação desvinculada da história e esta é um dado a mais para criar o grande pesadelo do homem em busca da grande alma que explique o mundo concreto. A consciência humana fica submetida e subsumida a um mundo de idéias e de formalidades, especulações e iluminações ansiadas e que leva o homem a procurar sua própria conversão, continuamente. A busca da essência real, se assim podemos chamá-la. Com Lucacks, o materialismo histórico nos revela a condição concreta do mundo e das relações. Será utilizado como forma de compreensão do histórico da mercadoria e da visão burguesa das relações cindidas pela metafísica da própria metafísica. Daí, a produção perder seu conteúdo histórico com a produção burguesa. Daí a passividade diante do processo social e das relações, diante do mundo, no qual a vida ganha um sentido natural, pois “Os objetos da história aparecem como objetos de leis naturais e imutáveis, eternas” (Idem, p. 137) e, por conseguinte, a representação da realidade deve ganhar contornos de uma estética pura, no sentido visível de que a racionalidade se coloca em um mundo de nuvens sendo “passível apenas de organização estética, como uma espécie de obra de arte” (Ibidem, p. 138), perdendo o sentido de sua manifestação concreta e desta forma, o que se nos aparece é o produto final, como um milagre, um desejo do eterno, como se o homem dependesse, daí em diante, de forças sobrenaturais para refazer continuamente o ciclo e reproduzir sua determinação, tornam-se um fantoche do destino alheio.
A forma do valor está impregnada na mercadoria, e o contrato social ou jurídico pode ou não revelar uma certa oficialidade, que implica a existência do Estado. No entanto, as relações colocadas pela mercadoria não atingem somente os homens oficiais, as pessoas jurídicas, mas sobretudo, toda a população, toda a sociedade colocada na determinação das trocas de valor.

O que distingue sobretudo o possuidor de mercadoria desta última é que para ela cada outro corpo de mercadoria conta apenas como forma de manifestação de seu próprio valor. Igualitária e cínica nata, a mercadoria está sempre disposta a trocar não só a alma, como também o corpo, com qualquer outra mercadoria, mesmo quando esta seja tão desagradável como Maritornes. (MARX, 1983, p. 80)

A igualdade a que a mercadoria advoga para si, nas relações sociais, parece dar a impressão a todos de que os indivíduos são iguais perante ela mesma. Ela iguala a todos em uma cadeia de trocas, bastando para isto que o seu adquirente possua uma determinada quantidade de equivalente geral, inclusive substituindo o valor pelo dinheiro, como expressão desta suposta igualdade. Tudo se passa como se o mundo estivesse perfeitamente ordenado, trabalhar, ganhar dinheiro, comprar e satisfazer necessidades. Tudo em um ciclo aparentemente perfeito. Basta que a sociedade coloque todos para trabalharem, anime os produtores a investirem, para que aumentem a produtividade e para que o consumo cresça como expressão do desenvolvimento, pois quanto mais o progresso proporcionar trabalho, maior a capacidade de consumo e maiores as perspectivas de manutenção dos trabalhadores no mundo do valor e da troca. O cinismo não se refere apenas à condição da mercadoria, mas especialmente ao fato de que o homem põe sobre esta a condição de um jogo de fetiches que ascendem à categoria de regulação do comportamento social e individual. Cabe acompanhar o trajeto oferecido a nós por Marx, quando faz a distinção do papel da mercadoria e sua função, quando de sua movimentação diante dos olhos dos homens, porque o caminho percorrido pela mercadoria nos dá a sua destinação e mais, nos oferece a possibilidade de compreendê-la em sua metamorfose ambulante. A mercadoria, por si, não tem consciência, mas ela adquire uma tal dignidade e um tal estatuto perante os homens que se torna autônoma, como vida própria, e que foge ao controle do homem, porém, este imagina ter sobre a mercadoria um controle absoluto, especialmente quando se coloca como consumidor ativo.

Esse sentido, que falta à mercadoria, para apreciar o concreto do corpo da mercadoria, o dono da mercadoria supre por meio dos seus cinco ou mais sentidos. Sua mercadoria não tem para ele nenhum valor de uso direto. Do contrário, não a levaria ao mercado. Ela tem valor de uso para outros. Para ele, ela tem diretamente apenas valor de uso de ser portadora de valor de troca e, portanto, meio de troca. Por isso ele quer aliená-la por mercadoria cujo valor de uso o satisfaça. Todas as mercadorias são não-valores de uso para seus possuidores e valores de uso para seus não-possuidores. (Ibidem, p. 80)

Ora, este caminho apresentado por Marx coloca o processo da troca-de-valor, em seu princípio originário. O princípio originário indica que um produto revela-se como mercadoria no momento em que o seu produtor de antemão coloca o produto na intenção da troca e não do uso específico. Cada mercadoria, por mais alienada que seja, carrega em si o valor de uso, mas para o proprietário, o produtor, aquele que com sua intencionalidade deseja trocar, não representa mais do que sua existência pode oferecer, ou seja, a própria troca. A alienação é outro elemento deste processo, o caminho se apresenta como uma cadeia ininterrupta de alienações, cuja base inicial está no momento primeiro em que o produtor oferece ao comprador um produto que aparece como seu real valor de uso, mas que é encapado pelo valor, pelo valor de troca. Não se trata do mesmo valor que historicamente foi determinada pelo escambo, ou a troca simples de objetos, mas de uma nova dimensão das relações materiais entre os homens. A realização da mercadoria se dá como valor, valor extrínseco, alienado da história, em outras palavras, sem história, sem ligação com o mundo concreto, pois o valor agora adquire uma vida própria, sem amarras, sem controle de que ali põe seu trabalho, mesmo que indireto, como na atualidade, envolto pela tecnologia de alta qualidade e eficiência. Por isso

Elas precisam, portanto, universalmente, mudar de mãos. Mas essa mudança de mãos constitui sua troca e essa troca as refere como valores entre si e as realiza como valores. As mercadorias têm que realizar-se, portanto, como valores, antes de poderem realizar-se como valores de uso (Idem, p. 80)

De fato, aqui está um dos cernes do problema substancial relativo à mercadoria. Sua essência é o valor. Mas esta essência está escondida na profundeza de sua própria realidade que não se manifesta, uma vez que para o comprador, o que permanece é o valor de uso, que para ele (o comprador) está plenamente resolvido o problema social, pois há um velamento da essência, deixando transparecer uma outra realidade, a que, de início dá o caráter formal ao produto, a saber, o seu valor de uso. Contudo, o valor está ali, ele é o motor que dá a propulsão à mercadoria como mercadoria. Cabe à mercadoria apresentar-se como sua pureza assim o determina, no seu conteúdo de uso, aquilo que é necessário ao usuário ou ao comprador. O valor de troca reflete a necessidade da própria troca, isto é indispensável para que a mercadoria realize sua trajetória, no entanto, isto só é possível se o trabalho socialmente determinado para a produção esteja vinculado ao valor de uso e não ao valor de troca. Mas surge a figura fantasmagórica da mercadoria como forma de garantir a circulação, o trabalho se torna o elemento chave que garante a produção e esta com vistas à troca, fecham o início do processo, assim o afirma Marx:

Por outro lado, as mercadorias têm de comprovar-se como valores de uso, antes de poderem realizar-se como valores. Pois o trabalho humano, despendido em sua produção, conta somente na medida em que seja despendido de forma útil para outros. Se o trabalho é útil para outros, se, portanto, seu produto satisfaz a necessidades alheias, somente sua troca pode demonstrar. (Idem., p. 80)

Há aqui um jogo muito sutil, entre trabalho, valor e mercadoria. O capitalismo prepara as condições para a sua superação, mas não a realiza, portanto, logicamente, o capitalismo não quer se ver como um reflexo negativo, é sempre a si mesmo = não admite contradição, mesmo que ela exista, o capitalismo não admite o processo dialético, rejeita-o.

Referências

Lukács, Georg. História e consciência de classe.: estudos sobre a dialética marxista. Tradução de Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2003. (Tópicos).
MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Vol. 1, Livro Primeiro: O processo de produção do capital, Tomo 1. Tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

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