Por Atanásio Mykonios
Em
seu livro Para além do capital, István
Mészaros diz com todas as letras que acredita que a mudança social anticapitalista
poderia advir dos EUA, ele enxerga nesse país possibilidades de mudanças no
modo de produção e na sociabilidade que, ao contrário da maioria de nós,
acredita nas fissuras e nas condições anárquicas que a sociedade estadunidense
apresenta. Ele vê condições para o fim do capitalismo naquela sociedade
multiforme que esconde os mais terríveis monstros psicossociais.
Certos
acontecimentos são emblemáticos. Certas decisões também se tornam emblemáticas
porque rompem com algo que parece dado, certo, composto no embate de forças
sociais e interesses de grupos. Tornam-se históricos porque abrem uma fissura
no que parece estar equilibrado, ou quando surge algo que nega aquilo
estabelecido ou até mesmo quando certos episódios servem para mostrar que nem
toda forma de poder pode permanecer como dominação ou exploração.
Para
nós, que de alguma forma temos uma formação histórica de combate e resistência,
os EUA sempre pareceram o grande império contemporâneo. Imperialismo praticado pelos EUA foi motivo
de grandes lutas. Sabemos a dominação desse país e a sua capacidade de gerir o
capital mundial com a força das armas.
Uma
parte de nós, aprecia a cultura estadunidense, aprecia tudo que diz respeito às
leis, aos costumes, aprecia as relações de poder, admira a liberdade de fazer
negócios, admira o cinema, o teatro, a tecnologia, enfim, admira a terra da
liberdade e das oportunidades. Houve quem cunhou a famosa frase: “O que é bom
para os EUA é bom para o Brasil”.
Os
EUA servem de exemplo para as diversas organizações neopentecostais e
pentecostais. É um país que inspira a moda, a comida, os costumes, inspira na
liberdade de religião, inspira no fato de parecer um país próspero que tal se deve ao cristianismo. Mas também inspira no que há de mais degradante em um
país profundamente acostumado à violência desmedida. Hoje os EUA possuem a
maior população carcerária do mundo. Os negros e os latinos mais pobres
representam a maioria dos presos naquele país, mais de 2 milhões de encarcerados.
Os
EUA também possuem o maior exército do mundo, o mais bem equipado, a melhor
tecnologia e mais de 700 bases militares espalhadas pelo mundo.
Por
tudo isso, tem crescido no Brasil, não apenas a admiração àquele país, mas tem
aumentado entre diversos grupos o discurso que transforma os EUA em uma
referência a ser seguida por nós. De que referência se trata? Muitos pregam
abertamente que os EUA devem ser um exemplo a ser seguido por aqui, especialmente como exemplo nos
negócios, na religião, na “democracia”, mas sobretudo nas relações econômicas,
afinal para esses grupos os EUA são o que há de melhor a seguir em termos de
liberdade total em favor dos que trabalham e sabem fazer o capital ser mais capital, também a total flexibilidade em relação ao emprego, a terceirização, a privatização generalizada da sociedade,
etc.
Quando
seguimos literalmente exemplos, sempre corremos o risco de sermos desmoralizados,
porque o exemplo pode simplesmente não ser aquilo que pensamos ou pregamos aos
outros. É assim com pessoas, grupos, instituições, times de futebol, partidos, religiões, afetos, qualquer coisa. Quando elevamos qualquer dimensão humana ou instituição a um nível de culto,
transformando-as em mitos, o risco de uma decepção é muito grande, mas mesmo
assim, há os que ainda jamais aceitarão ou reconhecerão que tais institutos
podem simplesmente não se caracterizarem com o grau de abstração que
elaboramos e defendemos.
A decepção pode ser enorme, mas a recusa em admitir a miséria desse culto pode ser ainda mais perversa e perigosa, transformando-se em violência contra tudo e todos.
Há
pouco os EUA propuseram uma aproximação com Cuba. Isso escandalizou muitos
raivosos no Brasil. Alguns de fato chegaram a dizer abertamente que se tratava de uma conspiração internacional. Hoje o Papa Francisco reconheceu o Estado da Palestina e há
católicos absolutamente inconformados com tal decisão do Vaticano. Li que alguns católicos fervorosos (não citarei nomes para não haver constrangimentos públicos) defenderam abertamente que o distinto Papa seja impedido de exercer suas funções, com base no Direito Canônico.
Hoje
soubemos que a Suprema Corte dos EUA liberou para todo o território estadunidense,
para todos os estados da união, a união homoafetiva sem restrições. Possivelmente isso não
mudará os ânimos e a extrema oposição que vários grupos praticam esse tipo de união. Certamente, os religiosos de todas as tendências e grupos que defendem determinados princípios morais não mudarão
seu pensamento. É possível que o preconceito, a perseguição, a segregação
continuem e até aumentem em determinadas regiões e estados da união estadunidense. É provável que a decepção se transforme ainda em mais frustração,
insatisfação e raiva.
Certamente
isso não alterará a posição de pessoas que têm demonstrado uma fúria incontrolável
contra homossexuais. Por aqui, em nosso país combalido, não haverá mudança no posicionamento dos deputados que compõem
a Comissão de Direitos Humanos na Câmara dos Deputados. Provavelmente aumentarão
a mobilização contra a parcela da população que hoje é alvo de endurecimento no parlamento brasileiro, provocado por grupos que defendem a moral e defendem o escárnio da coisa pública por debai dos tapetes.
Mas
a atitude é simbólica. O simbolismo desse processo é histórico, tanto quanto a
decisão da Suprema Corte dos EUA. É bem certo que quatro mulheres daquela Corte
votaram a favor e apenas um homem se pôs ao lado delas. Dos votos contrários, todos pertenciam a
homens - cinco. Sem dúvida, esse placar tem um sentido emblemático e histórico ainda mais importante.
O
simbolismo é que estamos dizendo para os defensores irrevogáveis dos EUA e tudo
o que representam, que dali pode vir algo que nega peremptoriamente as suas próprias
convicções. O que ocorreu ali pode não surtir nenhum efeito legal por aqui. Mas
pode surtir efeitos inimagináveis.
O
sexo, de uma forma ou de outra, permanecerá como um imenso tabu. Mas também é
preciso reconhecer que parte da sociedade brasileira começa a reagir às
investidas insanas de grupos políticos, religiosos, especialmente econômicos e
de outros matizes sociais, que querem impor uma mordaça religiosa, política,
com retrocessos visíveis do ponto de vista de alguns direitos estabelecidos.
Por
outro lado, é certo que quando lutamos por um direito, implícita ou
explicitamente, há uma injustiça social que subjaz nas relações entre sujeitos
sociais e suas instituições que fazem com que exijamos o direito como processo reparatório. Quando lutamos politicamente por um direito que
consideramos “justo” é porque, de certa forma, abrimos mão de extirpar a
injustiça que provoca a necessidade de impor o direito, como defesa de uma estrutura
que por si e em si é injusta.
Mas,
que seja! Quando certos direitos são afrontados por grupos que desejam
estabelecer mecanismos de desmonte de direitos, é que estamos num retrocesso do
nosso ponto de vista, mas para os que defendem o fim de determinados direitos, significa
retomar o status anterior, de privilégios.
A
par a questão moral que também é emblemática, o recado que estamos dando aos
grupos radicais de direita, aos grupos radicais religiosos, aos grupos radicais
de militares, é que o eco que veio da Suprema Corte tem uma simbologia que
transcende os conflitos e estabelece um elo de referência, justamente sobre
aquele país que se tornou o exemplo e o modelo para tantos que o defendem em
detrimento das esquerdas.
Pode ser que nada
disso será suficiente para uma mudança aqui no Brasil, porém, certos
acontecimentos ganham uma dimensão e um caráter imprevistos do ponto de vista
político. Aguardemos os próximos lances desse processo histórico.
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