Por Atanásio Mykonios
Enganam-se
aqueles que creem piamente que o Estado-nacional contemporâneo deve ser
eminentemente laico. A laicidade implica um pacto social entre os agentes e as
forças políticas, inclusive, entre os agentes religiosos, entre os elementos
sociais, as instâncias de poder, etc., que reconheceriam o papel aparentemente
neutro da forma mediadora do Estado-nacional. O que ocorre no atual estágio é
que essa forma está cercada pelas religiões das mais diversas e uma parte da
sociedade, aquela que se acostumou com avanços da modernidade capitalista, teme
que esses avanços sejam capturados pelas religiões organizadas.
Mas
ambos os lados se esquecem de que a forma-Estado-nacional serve a um senhor assim
como as religiões também o fazem. O capitalismo é a expressão histórica de um
ente que totalizou a sociabilidade, de forma que o Capital é este deus que atua
sobre tudo e sobre todos – o capitalismo é a religião de um deus encarnado na
realidade global das relações materiais e espirituais. A religião mundial não é
uma ficção, é uma fonte inesgotável de sua auto-efetivação. Mesmo que algumas religiões,
de forma explícita ou velada, atuem para a sua própria expansão, ampliando sua
influência em diversas esferas sociais, são forçadas a se ajoelharem no
interior do grande oráculo do deus-Capital – o Estado.
Os
sacerdotes dessa nova religião, totalizante e totalitária, não admitem tergiversações.
Infelizes somos todos nós, aqueles que acreditaram fielmente que o Estado-nacional
seria a ordem jurídica de um mundo livre das amarras e olhares das religiões organizadas.
Faz parte da própria condição histórica de toda religião organizar a vida
social de seus fiéis, para isto, elas não abrirão mão de interferir politicamente
nos destinos sociais.
Porém,
o que estamos a ver na atualidade é que as seitas que obedecem ao deus-Capital
não admitem mais que o Estado-nacional seja conduzido apenas por técnicos que
não tenham ou não assumam a coloração de uma religião organizada. É a revanche
das religiões contra a ciência, contra a liberdade individual, contra os
direitos civis, mas não contra a sociedade produtora de mercadorias.
Me
corrijam os meus mais diletos amigos, mas não vejo nenhuma religião organizada,
pelo mundo, a assumir
frontalmente um movimento contra o deus-Capital, contra
esse deus que subsumi a condição humana. Aliás, até os grupos ditos mais
radicais que lutam pela afirmação de sua religião, com ações separatistas e
fundamentalistas, não negam a ajuda do deus-Capital para impor teocracias pelo
mundo afora. Ou seja, há sempre quem os financie com recursos, armas e infraestrutura.
O
Estado-nacional é a grande pedra angular dessa religião por excelência. Walter Benjamin
destaca com grande maestria essa questão. O capitalismo é a única religião de
fato ecumênica, “O capitalismo deve ser visto como uma religião, isto é, o
capitalismo está essencialmente a serviço da resolução das mesmas preocupações,
aflições e inquietações a que outrora as assim chamadas religiões quiseram
oferecer resposta”1. O Estado-nacional é um fenômeno religioso, uma
vez que age como mediador entre as classes e o deus-Capital. Parece estranho
dizer isto, até com certa naturalidade, mas as religiões organizadas não estão
dispostas a abrir mão de sua condição onto-metafisica para romperem com a própria
lógica do modo de produção capitalista.
Como
seitas, essas religiões lutam apenas para dividir o território e controlar
moralmente seus fiéis, e discipliná-los para a obediência, para o trabalho, para
a valorização do capital e a dominação de consciência. Escamoteia-se o fato de
que os capitalistas se associam em graus diversos de poder e articulação para
blindarem o Estado-nacional a fim de estruturarem as condições de produção e utilizam
as religiões organizadas para preencherem lacunas com seu poder
militar-metafísico e controlar as populações em seu comportamento social e
moral.
Aliás,
o aspecto da dívida espiritual que marca as religiões é, substancialmente, a
marca do capitalismo, nascemos sob o signo da dívida e da promessa eterna de
redenção ao pagarmos o que devemos, por meio do culto à mercadoria e ao trabalho
– eternos devedores; os ideais mais elevados da religião e em especial do
cristianismo estão no trabalho e na dívida, ou seja, “No Ocidente, o
capitalismo se desenvolveu como parasita do cristianismo (...), de tal forma
que, no final das contas, sua história é essencialmente a história de seu
parasita, ou seja, do capitalismo”2.
Por
outro lado, essa forma-Estado parece ter se tornado o último bastião da
garantia de direitos civis. Como um guarda-chuva, e sua aparente soberania, tornou-se
o protetor desses direitos, no entanto, esquecem-se todos de que o direito
fundamental à própria humanidade é absolutamente desrespeitado e jogado ao lixo
por ordem do deus-Capital. O direito à liberdade, à autodeterminação histórica dos
povos, ao direito de decidir romper com esse deus in-maquina não existe nem mesmo para as religiões e o direito a um
novo modo de produção, etc. A justiça para este ser, tornado deus-Capital, é a
injustiça de todos contra todos, pela exploração dos homens e mulheres para
manterem a valorização do valor capitalista.
Portanto,
não nos enganemos quanto a isto. Os partidos de esquerda defendem a laicidade
do Estado-nacional, no entanto, assumem, de modo reticente, a autoridade desse
deus-Capital, imaginando que podem mitigar seus efeitos desastrosos sobre a
humanidade, utilizando o oráculo do Estado-nacional para garantirem justiça material
distributiva. Até mesmo as esquerdas se submetem à doutrina e à teologia das
condições impostas pelo dogmatismo do deus-Capital.
A
História da formação do Estado-nacional nos mostra que essa forma esteve eivada
de um caráter espiritual, esse espírito absoluto, baixado ao nível da
materialidade, seria, segundo Hegel, expressa pelo Estado-nacional. Esse caráter
teológico pairou e foi a substância, como um fantasma, desse oráculo social. Sua
condição espiritual-messiânica esteve presente nos nazistas, nos soviéticos,
com os islâmicos, os cristãos, os norte-americanos, os sionistas, os hindus, os
africanos, os europeus em geral, etc. Apenas como ilustração, na Grécia não há diferença
entre Estado e Igreja Ortodoxa. Quem paga o salário dos sacerdotes ortodoxos
gregos é o Estado.
Por
isso, não passa de um falso dilema essa questão. Laicidade ou Teocracia adoram
ao deus-Capital.
(1) BENJAMIN, Walter. O capitalismo como religião. Tradução de Nélio Schneider e Renato Ribeiro
Pompeu. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 21.
(2) Idem, p. 23.
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