quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Estado Laico ou Teocracia: um falso dilema.

Por Atanásio Mykonios



Enganam-se aqueles que creem piamente que o Estado-nacional contemporâneo deve ser eminentemente laico. A laicidade implica um pacto social entre os agentes e as forças políticas, inclusive, entre os agentes religiosos, entre os elementos sociais, as instâncias de poder, etc., que reconheceriam o papel aparentemente neutro da forma mediadora do Estado-nacional. O que ocorre no atual estágio é que essa forma está cercada pelas religiões das mais diversas e uma parte da sociedade, aquela que se acostumou com avanços da modernidade capitalista, teme que esses avanços sejam capturados pelas religiões organizadas.

Mas ambos os lados se esquecem de que a forma-Estado-nacional serve a um senhor assim como as religiões também o fazem. O capitalismo é a expressão histórica de um ente que totalizou a sociabilidade, de forma que o Capital é este deus que atua sobre tudo e sobre todos – o capitalismo é a religião de um deus encarnado na realidade global das relações materiais e espirituais. A religião mundial não é uma ficção, é uma fonte inesgotável de sua auto-efetivação. Mesmo que algumas religiões, de forma explícita ou velada, atuem para a sua própria expansão, ampliando sua influência em diversas esferas sociais, são forçadas a se ajoelharem no interior do grande oráculo do deus-Capital – o Estado.

Os sacerdotes dessa nova religião, totalizante e totalitária, não admitem tergiversações. Infelizes somos todos nós, aqueles que acreditaram fielmente que o Estado-nacional seria a ordem jurídica de um mundo livre das amarras e olhares das religiões organizadas. Faz parte da própria condição histórica de toda religião organizar a vida social de seus fiéis, para isto, elas não abrirão mão de interferir politicamente nos destinos sociais.

Porém, o que estamos a ver na atualidade é que as seitas que obedecem ao deus-Capital não admitem mais que o Estado-nacional seja conduzido apenas por técnicos que não tenham ou não assumam a coloração de uma religião organizada. É a revanche das religiões contra a ciência, contra a liberdade individual, contra os direitos civis, mas não contra a sociedade produtora de mercadorias.

Me corrijam os meus mais diletos amigos, mas não vejo nenhuma religião organizada, pelo mundo, a assumir

frontalmente um movimento contra o deus-Capital, contra esse deus que subsumi a condição humana. Aliás, até os grupos ditos mais radicais que lutam pela afirmação de sua religião, com ações separatistas e fundamentalistas, não negam a ajuda do deus-Capital para impor teocracias pelo mundo afora. Ou seja, há sempre quem os financie com recursos, armas e infraestrutura.


O Estado-nacional é a grande pedra angular dessa religião por excelência. Walter Benjamin destaca com grande maestria essa questão. O capitalismo é a única religião de fato ecumênica, “O capitalismo deve ser visto como uma religião, isto é, o capitalismo está essencialmente a serviço da resolução das mesmas preocupações, aflições e inquietações a que outrora as assim chamadas religiões quiseram oferecer resposta”1. O Estado-nacional é um fenômeno religioso, uma vez que age como mediador entre as classes e o deus-Capital. Parece estranho dizer isto, até com certa naturalidade, mas as religiões organizadas não estão dispostas a abrir mão de sua condição onto-metafisica para romperem com a própria lógica do modo de produção capitalista.

Como seitas, essas religiões lutam apenas para dividir o território e controlar moralmente seus fiéis, e discipliná-los para a obediência, para o trabalho, para a valorização do capital e a dominação de consciência. Escamoteia-se o fato de que os capitalistas se associam em graus diversos de poder e articulação para blindarem o Estado-nacional a fim de estruturarem as condições de produção e utilizam as religiões organizadas para preencherem lacunas com seu poder militar-metafísico e controlar as populações em seu comportamento social e moral.

Aliás, o aspecto da dívida espiritual que marca as religiões é, substancialmente, a marca do capitalismo, nascemos sob o signo da dívida e da promessa eterna de redenção ao pagarmos o que devemos, por meio do culto à mercadoria e ao trabalho – eternos devedores; os ideais mais elevados da religião e em especial do cristianismo estão no trabalho e na dívida, ou seja, “No Ocidente, o capitalismo se desenvolveu como parasita do cristianismo (...), de tal forma que, no final das contas, sua história é essencialmente a história de seu parasita, ou seja, do capitalismo”2.

Por outro lado, essa forma-Estado parece ter se tornado o último bastião da garantia de direitos civis. Como um guarda-chuva, e sua aparente soberania, tornou-se o protetor desses direitos, no entanto, esquecem-se todos de que o direito fundamental à própria humanidade é absolutamente desrespeitado e jogado ao lixo por ordem do deus-Capital. O direito à liberdade, à autodeterminação histórica dos povos, ao direito de decidir romper com esse deus in-maquina não existe nem mesmo para as religiões e o direito a um novo modo de produção, etc. A justiça para este ser, tornado deus-Capital, é a injustiça de todos contra todos, pela exploração dos homens e mulheres para manterem a valorização do valor capitalista.

Portanto, não nos enganemos quanto a isto. Os partidos de esquerda defendem a laicidade do Estado-nacional, no entanto, assumem, de modo reticente, a autoridade desse deus-Capital, imaginando que podem mitigar seus efeitos desastrosos sobre a humanidade, utilizando o oráculo do Estado-nacional para garantirem justiça material distributiva. Até mesmo as esquerdas se submetem à doutrina e à teologia das condições impostas pelo dogmatismo do deus-Capital.

A História da formação do Estado-nacional nos mostra que essa forma esteve eivada de um caráter espiritual, esse espírito absoluto, baixado ao nível da materialidade, seria, segundo Hegel, expressa pelo Estado-nacional. Esse caráter teológico pairou e foi a substância, como um fantasma, desse oráculo social. Sua condição espiritual-messiânica esteve presente nos nazistas, nos soviéticos, com os islâmicos, os cristãos, os norte-americanos, os sionistas, os hindus, os africanos, os europeus em geral, etc. Apenas como ilustração, na Grécia não há diferença entre Estado e Igreja Ortodoxa. Quem paga o salário dos sacerdotes ortodoxos gregos é o Estado.

Por isso, não passa de um falso dilema essa questão. Laicidade ou Teocracia adoram ao deus-Capital.


(1)   BENJAMIN, Walter. O capitalismo como religião. Tradução de Nélio Schneider e Renato Ribeiro Pompeu. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 21.

(2)   Idem, p. 23.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado pelo seu comentário