Por Atanásio Mykonios
Que me perdoem os amigos e mestres!
À
medida que o processo produtivo capitalista nos apresenta um contexto em que,
por exemplo no Brasil, quase 90% dos trabalhadores não se encontram na produção
direta, vivemos numa sociabilidade em que, em grande medida, a materialidade não
faz parte da consciência social. Não produzimos mais nada do que adquirimos
como mercadorias, nossas necessidades se transformaram na necessidade absoluta
da produção de valor – capital por excelência. A materialidade não mais diz
respeito à experiência histórica da relação de vida e morte com a natureza. O humano
não é mais entendido como uma espécie dialética com o mundo da natureza.
A
transformação do meio social em um imenso campo de concentração, marcado pelo
trabalho abstrato, pela abundância da produção, pela exploração do
assalariamento, mas, sobretudo, por uma realidade em que as crianças não sabem
como surge um ovo, revela-nos uma realidade absurda e inumana.
A
transformação da consciência adquire um caráter eminentemente tardio e fugidio
em relação à natureza. Daí um esforço descomunal para criar recompensas
intelectuais a fim de compreender o fracasso da espécie humana, guindada a uma
esfera cujos pés estão em absoluta
flutuação. Estamos flutuando e nosso olhar sobre a materialidade é opaco,
mediado pelas emanações de uma realidade que não mais pertence à relação concreta.
Recusamos a materialidade.
A
partir do avanço do capitalismo como fundação hegemônica das formas de relação,
conduzindo as forças políticas e de mobilização para o distanciamento quase
definitivo em relação ao modo de produção e, dadas as condições em que isso
ocorre, vemos o desmoronamento das estruturas de poder e com elas a mal fadada
filosofia que se torna como que um fetiche da realidade. Não sabemos o que é o
real, por isso nos valemos e nos escondemos atrás de mecanismos cínicos de apreensão
do real, com medo de nos tornarmos ainda mais céticos.
Em
outras palavras, o olhar está impregnado com a ideia acerca da realidade, uma
vez que ao flutuar, a consciência social se vê intrincadamente enredada pelo
narcisismo promovido pela filosofia. O que vemos é que inventamos e não o que
experimentamos. Quer dizer, assim, que a filosofia se recusa a sujar suas mãos
no interior do real, isto é, se recusa a descer ao plano dos conflitos reais
onde se encontra a luta pela hegemonia de um sistema que alcançou seu ponto
cego, sem qualquer manifestação de oposição sistematizada.
O
que narramos é, sobretudo, o anteparo da realidade, uma vez que a terminante
recusa em mudar o estado de coisas, nos faz cair no colo do discurso benfazejo
do politicamente correto e das envolventes manifestações abstratas em favor da
compreensão do sujeito encarnado na sua própria estupidez e insensatez. Uma filosofia
salvacionista, que se confunde com traquejos de autoajuda e com a doçura dos
escolásticos que tentam converter os incautos nas salas de aula. Esse enredo é
deveras insustentável, porque em algum momento, a realidade nos puxará para a
terra, nossos pés deverão sentir a terra em nalgum momento, quer queiramos ou
não.
Esse
motivo leva de roldão as condições de uma real narrativa, que deveria se
comprometer com as consequências relativas ao afastamento do mundo da materialidade.
Dito de outro modo, quanto mais as máquinas, a serviço do modo de produção capitalista,
afastam os sujeitos da relação com a
natureza, mais temos de presenciar o vácuo solícito de uma realidade sem
substância. A sociedade capitalista é, por excelência, a sociedade do mundo das
nuvens, o perfeito Hiperurânio, onde tudo é oferecido como fetiche da realidade,
em que as mercadorias surgem como passe de mágica, sem que haja a aproximação
com esse mundo, apartado e distante. As lutas se tornam insustentáveis porque
não atingem o cerne do modo de produção. E pior, após tanto tempo de distanciamento,
não sabemos como agir nem mesmo no âmbito da luta política.
Os
modismos sociológicos, multiculturais, modernos e anti-modernos, pós-modernos,
etc., servem como muletas da grande superstição social. É disso que se trata
afinal. A filosofia é o ato da superstição ante uma realidade invertida. Ao invés
de os filósofos assumirem a sua total flutuação e a falsa consciência de um
mundo presumivelmente conhecido, prescrevem medicamentos conscienciosos e
varados de julgamento moral. Cada filósofo apresentado se torna uma porta para
a salvação. A religião não nos abandonou.
Eis
aqui o mote de uma impossibilidade histórica. Não se trata tão-somente da
filosofia, mas dos que ainda encaram a realidade como um subterfúgio seguro e
condizente com a ignorância do mundo que produz, indistintamente, mercadorias. O
interminável muro das lamentações acomete os encontros e as exposições. Nada pode
fazer com que esse modo de consciência encontre seu muro para que possa se
despedaçar por completo.
Essa
falsa liberdade propalada pelos docentes de filosofia, essa falsa condição de
aquisição de um pensamento autônomo, é, na verdade, uma carta de intenções destituída
do real, sem lastro histórico e social. Fala-se de política sem vivê-la! Fala-se
de movimentos sociais sem compreendê-los! Fala-se de um processo cujos
mecanismos de interpretação são recheados de preconceito e intolerantes. Palpiteiros
assumem um caráter filosófico-teológico sem que baixem ao nível da podridão das
relações reais – o mundo está em convulsão e mesmo assim, alunos e docentes
creem na libertação por meio de um fetiche metafisico – a apolínea reflexão que
paira sobranceira sobre o mundo dos homens. São capazes detidamente em cobrir
os processos sociais e encontrar as causas causantes das formas abstratas
adquiridas pelo sujeito contemporâneo, mas, tragicamente, o modo de produção
está intacto, nem mesmo o trabalho imaterial foi capaz de subverter as
condições desse modo de produção.
E
assim nos revestimos de imagens, somos vestidos pelas imagens, a imagem como
fim do processo dialético entre a essência e a aparência. Nosso discurso é a
pura imagem, sem conteúdo, insistindo na forma de uma composição em que a
projeção da narrativa cria um significado sem significação com a materialidade.
O capitalismo nos educou a odiarmos a materialidade e a confinarmos nossa consciência
a uma projeção cinematográfica das estruturas que passamos a descrever como um
mundo real, mas confinado à sua própria idealidade.
Filosofia
para feiticeiros! Discursos para a festa da subjetividade e do egoísmo metódico
que a todos abraça com suas conveniências sociais. Queremos um mundo sem o próprio
mundo. Onde nos esconderemos afinal? Talvez Platão nos conduza ao paraíso das
ideias sem materialidade.
Filosofia
fetichizada. Pensamento ardiloso que mantém o mesmo do mesmo até que o muro nos
encontre.