quinta-feira, 9 de junho de 2011

O Jogo

Atanásio Mykonios



A necessidade humana ultrapassa as condições puramente materiais e fisiológicas. Toda necessidade só se torna possível porque o ser humano está na natureza. Sua relação com esta e sua aproximação só ocorre porque a necessidade delimita a realidade, submete o homem, uma vez que ele é substancialmente um ser insuficiente desde seu nascimento até sua morte.
Nossas culturas também desenvolveram necessidades simbólicas e outras de caráter espiritual. A complexidade social amplia os horizontes das necessidades, mas, ao viver no império do Eu, não conseguimos identificar quais são nossas reais necessidades. A ordem social nos coloca no pressuposto de que há que satisfazer nossas prioridades, no âmbito das possibilidades que não são dadas, mas vendidas.
Isto não quer dizer que saibamos quais devem ser nossas próprias prioridades e parece, de alguma forma, que estas estão em nosso horizonte individual. Uma educação para a compreensão das necessidades está fora de cogitação no âmbito das estruturas coletivas. Para isto, nossas culturas passaram a acreditar que uma consciência madura poderia dar a responsabilidade para compreender e saber quais as necessidades que de fato importam.
Daí, a partir de um determinado período de nossa história, muitos acreditaram que o ser humano seria portador de uma espécie de consciência elevada, que o colocaria no topo da cadeia animal, o diferenciaria sob os aspectos da sua memória, da consciência, do pensamento, da sua transcendência. A centralidade da natureza seria o homem, sua condição privilegiada, suas prerrogativas e especificidades. Algo nele o tornara absolutamente especial, além das contas da natureza, incomum. Para outros, o ser humano não passa de uma mutação genética, um acidente, cuja consciência nada mais é do que o ponto de diferença no qual tenta se distanciar da natureza e que, tragicamente, não consegue superá-la.
O sonho de ir além da natureza esbarrou na impossibilidade de lutar permanentemente contra a própria natureza. Todo idealismo absoluto vive a esquizofrenia de ser impulsionado pela força da ideia separa de modo absoluto das condições materiais. A necessidade da consciência de atravessar os liames da coisa material, de seus limites absurdos, humilha a forma humana, é mais acachapante a sua realidade.
Não que seja desnecessária aquela realidade liberta das condições materiais. Ao contrário, trata-se aqui de reconhecer o movimento entre o mundo das materialidades e a realidade liberta. É disto que estamos tratando – de um movimento entre as duas formas. Privilegiar uma delas seria uma ingenuidade e para radicalizar a crítica, uma ilusão absoluta. Afinal, não somos abelhas, cupins ou formigas. Há em nós este elemento que permanece, como uma presença n presença material – a consciência.
Há constante conflito e convergência entre as duas realidades e, de tal forma que o concreto e o abstrato, em determinados aspectos e contextos, confundem-se, mas há que saber que entre ambos deve ser dada a condição para que se distingam e se confrontem quando for necessário. Jamais haverá a destruição de uma realidade em favor da outra, nunca viveremos o império do abstrato ou do concreto.
Satisfazer sonhos não é a mesma coisa que satisfazer necessidades materiais imediatas. Os sonhos das necessidades materiais podem se confundir com a perspectiva de sua realização, mas permanecerão sonhos quando seu objetivo ocorrer.
O sonho da sociedade que produz mercadorias é expandir sua capacidade de aplicar aos indivíduos a formalidade dos objetos materializados. A satisfação não reduz a capacidade de criar novos sonhos e a ação de sonhar é tão potente quanto uma bomba de efeito nuclear. Mas é próprio da natureza do jogo fazer com que o sonho primordial  seja o de que conceber a existência a partir do jogo e não fora deste.
O que podemos observar no cotidiano é a impressionante satisfação dos indivíduos. A satisfação pela vida social que possuem, a imensa capacidade de perpetuar a estupidez de uma sociedade organizada para travar os seres humanos, esmagá-los e, mesmo assim, criar a consciência reificada do mundo que pode nos dar tudo.  Estão satisfeitos por estarem no interior do jogo e quando se sentem frustrados é porque não foram competentes o suficiente para encontrarem, no interior do jogo, as formas pelas quais poderiam se manter nele sem serem excluídos.
Por outro lado, há os que gostariam que o jogo fosse mais equilibrado ou menos “injusto”. Suas regras principais por mais que sejam questionadas, permanecem. Mas há um desequilíbrio nessa realidade. Se o jogo é feito para que uma parte se mantenha jogando e outra esteja como espectadora, não é possível que todos assumam os mesmos papéis. No entanto, todos acreditam que isto pode acontecer e suas lutas intestinas servem apenas para conduzir o jogo sempre para o mesmo ponto – início e fim são a mesma coisa.
Chega-se a um ponto em que o jogo continua por si mesmo e parece não mais depender dos jogadores. Eles podem ser substituídos, eliminados, arrancados à força, serem submetidos a toda espécie de adestramento. Desde muito cedo, todos são treinados para o jogo. O fato é que o jogo está acima das vontades pessoais e das coletividades. A sociedade está satisfeita com o jogo, tanto que as regras não mudaram desde que foi instituído há mais de 250 anos.
Satisfazer necessidades implícitas à condição em que se encontram os indivíduos não é a mesma coisa do que viverem insatisfeitos com o jogo. São duas perspectivas diferentes. O que ocorreu no percurso histórico é que ambas as necessidades convergiram pelo processo de transformação tautológica do próprio jogo.
Em outras palavras, as necessidades do jogo se tornaram as necessidades dos jogadores. É por esta razão que não encontramos, nos indivíduos e nas instituições, uma consciência necessária de insatisfação quanto o jogo, contra este, porque ele adquire sua própria personalidade, seu caráter efetivo, ele se faz por si mesmo. Não é apenas um jogo que pode ser desfrutado numa tarde de lazer, é a efetivação de que suas regras assumem a condução real da vida.
O jogo some das consciências individuais, adquire um caráter de invisibilidade, tão espontâneo ele se faz para a vida, que sua justificação praticamente beira à mitologia. É o mito transfigurado, restituído como segunda natureza em que os seres humanos são destituídos de sua consciência ou, como alguns sonharam, de sua emancipação, para reduzirem-se a uma difusa massa corpórea que se move para fazer o jogo continuar.
Mas se o jogo perde sentido ou se deixa de cumprir com sua lógica, isto não afeta decisivamente os jogadores. Eles continuam a jogá-lo, movidos por uma ordem que está naturalizada na consciência e no corpo. É a ordem que manda jogar em qualquer circunstância, o jogo deve ser jogado. A única verdade, unívoca, instantânea e movente e a força que o jogo adquiriu após dois séculos e meio de sua criação.
Desta forma, a única insatisfação que tem lugar na condição dos jogadores é a de não conseguirem jogar o jogo ou, mais objetivamente, não poderem ganhá-lo para si mesmos. Mas o que isto quer dizer? Ganhar o jogo não significa possuí-lo definitivamente. De modo contrário, o jogo não tem um dono.
Todos se dirigem ao jogo. Os que esperam entrar nele, os que não conseguem, os que têm vontade mais não sabem como fazê-lo. Hás os que ficam impacientes, com muita sede, não entendem o que ocorre. E também aqueles que ficam nas imediações do jogo e sabem que não poderão entrar, mas vivem das migalhas dos espectadores.
Isto é ainda mais interessante, na medida em que todos se sentem donos de seu próprio destino, imaginando que têm, também, a condição de determinar os rumos do jogo, sair e entrar em campo quando lhes aprouver ou ditar suas próprias regras na doce ilusão de que não são afetados pelo jogo na sua integralidade.
Não importa se o jogo tem ou não qualquer sentido, basta que os jogadores permaneçam em seus lugares, apostos para assumirem uma posição no quadro geral. Poderão ser substituídos, e o são continuamente, mas isto não importa - tudo deve prosseguir. Importa, em última instância, que tenha sua linguagem própria e que possa ser absorvida por todos os jogadores e, de fato, o é, à medida que todos conhecem as regras sem pestanejar.
Assim, é possível compreender o quão poderoso o jogo é sobre a consciência, relativizando o próprio jogo, reduzindo-o a um mero estado espiritual cujo alcance é a realização das propriedades subjetivas dos seus jogadores.
O que não é possível perceber que não passa de um jogo de azar.

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