sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

REFUGIADOS AFETIVOS

Por Atanásio Mykonios


Há uma indigência afetiva entre nós. Estamos abandonados. Nós mesmos somos refugiados de uma guerra de sentimentos, uma guerra de indiferenças. Fingimos estar fortes e sermos autônomos, fingimos não precisar de pessoas que conhecemos, fingimos felicidades e realizações. Queremos esconder nossa miserável condição social, nossa mediocridade com as fotos de um dia ensolarado. Há uma necessidade doentia de sermos percebidos. Nossa infância ainda não acabou, como mendicantes, pedimos atenção, carinho, em meio a escombros sociais e emocionais. Nossa idade mental revela a extrema ignorância acerca do que nos ocorre. Temos medo de sermos descobertos. Esse fingimento esconde nossa perversidade mais recôndita. Em ruínas internas e externas, continuamos a seguir nossos caminhos, esperando que alguém nos dê a atenção devida. O silêncio dessa condição social é mortal. Nos tornamos uma imensa maioria silenciosa que assiste ao desmoronamento de as estruturas afetivas, psicologicamente estamos por um fio. As pessoas silenciam diante do real que as esmaga. Simplesmente dão de costas e continuam. E assim como recebem indiferença, praticam-na com o mesmo esmero e método. metodicamente somos estranhos a nós mesmos, queremos que o mundo seja para nós, de modo que a sustentável forma de nosso corpo social é uma ilusão. Assumem um caráter difuso. Conseguem ser extremamente corajosas escondidas pela tela de um computador e por teclados – essa virtualidade se torna um mundo dentro do mundo real. É como um refúgio, por isso, somos refugiados de um mundo dentro do mundo real. Nesse mundo, não importa a presença, não importa o olhar real, não importa o pulsar real. Não acreditamos em mais nada, a não ser a imensa vacuidade que nos preenche. Não nos interessa qualquer compromisso com a humanidade. Nossa arte é diletante, somos os "capitalistas anticapitalistas" como Robert Kurz apontou. Como mercadorias, somos trocados no varejo dos sentimentos como objetos de troca e de consumo, ainda estamos em nossa própria pré-história. Pouco importa o que ocorre no mundo ou à nossa volta, a não ser um lugar seguro para trabalhar e uma vida de entretenimento. Esse mundo parece que veio para ficar. Mesmo que tudo esteja para ruir, o que importa é que até a ruína seja motivo de entretenimento, tudo deve ser agradável ao imediato da consciência sem individualidade. Mas, por outro lado, como toda cultura da mercadoria, possivelmente, esse mundo será ainda substituído por outra virtualidade e novos campos de refugiados serão criados. O silêncio desse sepulcro social é a expressão mais importante da orgulhosa indiferença que nos acomete. De certa forma, quanto mais distantes da materialidade do mundo, mais indiferentes nos tornamos, mais nuvens preenchem nosso modo mental. Quanto mais nas nuvens, mais estranhos somos. Essa apoteose da indiferença é também a marca de um tempo sem a presença do indivíduo, que abdicou de seu direito de estar no mundo. Que essa forma social nos pense e que o faça do modo com que continuemos entorpecidos pela eternidade afora. 

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

A CIDADE, O QUE ELA É?

Por Atanásio Mykonios

Temos de mergulhar em três elementos a serem considerados, de início.

Primeiro: O que é a cidade, qual é a sua função e qual é fundamentalmente a sua condição para o sistema de produção de mercadorias.

         É importante reconhecer que a cidade como uma grande concentração urbana é um elemento da produção industrial. A cidade se organiza para organizar a indústria. A vida na cidade é uma existência industrial, e por quê? Porque todas as ações e toda a rotina dos cidadãos são marcadas pelo tempo e pelo compasso da produção industrial.

         A vida na cidade deixa de existir, passa a existir um mecanismo de reprodução das condições do tempo e do compasso da fabricação. O que existem são espaços fabricados. Os corpos fabricam espaços, fabricam coisas na cidade. Por isso, o ir e vir na cidade tem como primeiro princípio o de garantir a fabricação de coisas.

         O primeiro direito não é existir na cidade, mas é fazer a cidade produzir. E continuamos a produzir coisas na cidade. Por mais que queiramos, a cidade é um lugar que não nos privilegia. O direito primeiro na cidade é mantê-la funcionando, produzindo, fabricando.

Nós temos de seguir por esses caminhos que não nos levam para a nossa felicidade. As pessoas caminham pela cidade, as pessoas vivem na cidade, apesar de ser ela uma grande fábrica de coisas e de valores.

Mas também as pessoas querem respirar. Existe uma necessidade de resistência, de fazer emergir a beleza, o grito, a sensibilidade, fazer viver o que não passa de concreto. Temos de saber que a cidade não é feita para nós, mas nós podemos recriá-la se assim pensarmos nas possibilidades de superarmos o modo fabril de valorizar cada espaço da cidade.

Segundo: Que cidade a população quer? Obviamente partindo do primeiro elemento a ser considerado.

         Partindo do princípio de que a cidade é uma imensa fábrica social que produz dinheiro, tristeza, indiferença, que cidade nós imaginamos para nós? Temos de estudar a fundo a nossa cidade, temos de conhecê-la, precisamos saber como ela se constitui, como os espaços são divididos, a quem esses espaços são destinados, como o direito de viver a cidade é exercido.

         Não podemos estar vivos na cidade e não vivermos a cidade em que estamos. Isso implica que é preciso lançar os olhos sobre a cidade. Se prestarmos atenção, observaremos que a maior parte das pessoas transita pela cidade, mas não a vê.

         Pensar a cidade e não deixar que ela nos pense. Eis o desafio. Se essa é uma questão, a partir do modo como a cidade é organizada, temos de saber o que a cidade representa para nós. Os espaços, os lugares onde temos de ir e temos de trabalhar, os lugares onde estudamos, comemos, convivemos uns com os outros.

         A questão mais importante é o acesso aos lugares. Acessar significa ter o direito. Mas a cidade é dividida. Não podemos ir a todos os lugares, precisamos de uma condição fundamental. O dinheiro é o elemento mais importante para podermos acessar os lugares. Se temos dinheiro, podemos comprar um terreno em um condomínio, ou se não temos condições suficientes, temos de viver em localidades sempre conforme as nossas posses.

E isso tem a ver com o trabalho e com a forma de produção capitalista. Se queremos uma cidade que proporcione maior liberdade e maior capacidade de mobilidade, temos de repensar o modo como a nossa sociedade se organiza em torno do sistema de produção.

       Terceiro: De que forma a cidade pode propiciar condições para que a maioria das pessoas transite na cidade?

         Quer queiramos ou não, ainda estamos no modo capitalista de viver a cidade. A cidade é um imenso galpão produtivo. Cada vez mais temos menos liberdade e menos condições de ver a cidade.

         Nesse sentido, não podemos ter ilusões. A passagem é comprada e não paga. Se a passagem é comprada, como qualquer outra coisa no mundo capitalista, a passagem é uma mercadoria. E como mercadoria, ela tem de ser tratada num campo de negociações. Essas negociações implicam luta política.

         A mercadoria tem um caráter social, mas, sobretudo, tem um caráter político, pois é uma imposição social de uma forma de produção, que está presente em todas as relações sociais e presente na cidade como um todo. qualquer mercadoria é imposta por meio do trabalho.

         O preço de uma mercadoria não chega ao mercado sem que por trás não haja uma luta e uma imposição. Por isso é um processo político. Dessa forma, se a população compra uma mercadoria e o aumento dessa mercadoria incide sobre parte do seu trabalho, é mais do que razoável que essa população se organize politicamente para enfrentar o aumento dessa mercadoria nas relações entre oferta e procura.

         Para isso, nessa luta política, é preciso saber que o preço de uma mercadoria, como a passagem de ônibus, é paga por alguém. No capitalismo o que existe é uma rede de dependências, sendo que, de uma forma ou de outra, se um preço é praticado no mercado, significa que a demanda sustenta a oferta. Se o preço da passagem deve se manter constante, a mais-valia (ou o mais-valor) deve ser transferido para alguém.

         Se a população não mais pagar por essa mercadoria, significa que alguém deverá fazê-lo, mas deve fazê-lo socialmente. Quem deve absorver a Tarifa Zero, por exemplo, é a sociedade como um todo. Significa que é um processo político que coloca em jogo o preço de uma mercadoria.

         Dessa forma, a sociedade deve se posicionar, com seus grupos de interesse, sabendo que se trata de um conflito político, pois quem tem mais poder estabelece o valor dessa mercadoria. A mercadoria é, portanto, um processo de luta política, não só entre produtores e consumidores, também o é entre os produtores e entre os próprios consumidores. Toa mercadoria se coloca na relação social após um forte confronto de interesses.

         Aqui, há vários interesses envolvidos. Da parte dos produtores, os detentores dos meios de produção, de outro lado, aqueles trabalhadores que promovem a circulação da mercadoria. Há os que adquirem essa mercadoria, ou seja, aqueles que a consomem imediatamente, estes são os que se servem do processo de produção de passagens.

         Essa produção de passagens, implica uma tensão contínua. E nada que se faça nesse sentido não irá excluir, em hipótese alguma, o conflito político envolvido nesse processo.

         É evidente que temos algumas escolhas e decisões a serem feitas. Cabe à sociedade fazê-las tendo em vista da importância dos cidadãos na cidade, e que importância esta tem sobre eles.