segunda-feira, 4 de julho de 2022

MANIFESTO DO GRUPO CRÍTICA SOCIAL

 

MANIFESTO PARA UMA CRÍTICA SOCIAL CONTRA A BARBÁRIE DO CAPITAL – O OCASO BRASILEIRO

 

Os fantasmas rondam o Brasil e o mundo. Não são os fantasmas da revolução ou do comunismo mundial. Não são os fantasmas da revolta dos trabalhadores nem os fantasmas das insurreições sociais. Os fantasmas hoje são mais reais que a imaginação possa alcançar. O Brasil mergulha na mais profunda crise de sua história contemporânea. Um país governado pelo absolutismo capitalista, a face entranhada da exploração que a sociedade, enganada, escolheu para ser governada. O fantasma da fome. O fantasma da pobreza absoluta. O fantasma que atinge o corpo das mulheres, dos negros e negras, das crianças, dos velhos e dos adolescentes. O Brasil se tornou o capitalismo nacional com melhor eficiência no mundo, a economia brasileira transfere para o sistema financeiro mais de 50% do que o Estado arrecada, para garantir a funcionalidade e o lucro desse sistema que rege a economia fantástica brasileira. O estatismo a serviço do sistema abstrato da riqueza capitalista.

Não temos ilusões quanto ao destino do capital como sistema social, historicamente determinado. Mesmo que os movimentos operários e intelectuais, de inspiração marxista, aludam constantemente a crença de que o capital prevalecerá ainda por muito tempo sobre nossas cabeças, somos herdeiros dos intelectuais que colocaram uma pedra de toque na compreensão do movimento real do capital. A crise não é apenas sistêmica ou estrutural, ela se configura como o limiar do limite absoluto do próprio sistema produtor de mercadorias. O capital não encontra mais condições adequadas para a geração de valor, a queda não é apenas tendencial, ela expressa, objetivamente, as condições gerais de produção em que se encontra o capital, de modo que, globalmente, nem mesmo a capacidade de transferência do mais valor dos países periféricos dependentes, é capaz de dar ao capital o fôlego necessário para seguir com sua lógica. Por outro lado, não aceitamos a pecha de que nossa atitude e a interpretação atual do contexto em que vivemos nos leva a um comportamento niilista. Os trabalhadores continuam a serem explorados como classe e como sujeitos sociais. Pertencemos aos trabalhadores, porque somos trabalhadores que compreendem que o atual momento histórico revela a sua mais profunda contradição e nós estamos mergulhados nesta contradição.

Não há salvação para o capital nem haverá salvação para o Estado, ambos perecerão diante da crise que se abate estruturalmente sobre o sistema mundial de produção de mercadorias. Mas os otimistas, os positivistas, os cínicos, os ingênuos e os iludidos acreditam ainda que é possível salvar o capital e trazer de volta para o leito do rio, os miseráveis, os não rentáveis, os sem teto, sem-terra, sem roupa, sem comida, os sem esperança alguma. Acreditam que é possível conter a avassaladora destruição que se abate sobre a humanidade, sobre os famintos e deserdados, lançados à sorte da barbárie.

 

 O capitalismo é o sistema produtor de mercadorias, onde tudo é produzido como mercadoria e nisso se distingue dos sistemas anteriores. Terra, meios de produção, força de trabalho e dinheiro foram acoplados à lógica da produção de mercadorias, em um processo de mercantilização social. O tempo de trabalho médio se tornou a substância do valor das mercadorias, configurando uma Lei do Valor como base do modo de produção capitalista. Assim, o tempo de trabalho excedente ou sobretrabalho, em termos de valor, se torna a origem do Mais-Valor (a conhecida “mais-valia”), origem dos lucros, juros e renda, estabelecendo uma economia da exploração da força de trabalho. A sociedade das mercadorias é a forma de relação entre pessoas intermediada por coisas. A imposição de trabalho é encoberta pela sociabilidade das trocas de mercadorias, de aparente liberdade e igualdade. (Tese 1 do Grupo Crítica Social)

Os banqueiros, os sacerdotes, os políticos, os tecnocratas corporativos, os governantes, os comunicadores sociais, todos riem da eficiência do sistema que suga a terra, os nervos, os músculos, os veios, os rios, terra e seres humanos são tragados para o liquidificador social. Todas as veias estão abertas, as feridas escancaradas, os gritos de dor, os abandonados que cruzam as avenidas e lutam encarniçadamente por um pedaço de lixo. A economia, condicionada aos interesses da lógica do capital, é indiferente ao sofrimento, à morte e aos trabalhadores. Ainda milhões acreditam na dignidade do trabalho, na honra da educação, na disciplina e na ordem. As esquerdas se unem para salvar o que resta do Estado falimentar, promovem suas alianças com objetivos de minimizar a barbárie, mas esquecem que a sociedade capitalista é uma forma social totalitária e somente a barbárie pode prevalecer nas relações de exploração. A desigualdade é o timbre que nos marca como o gado a ser abatido, a forma social do capital sobre todas as outras condições humanas e é exatamente o Estado quem garante essa desigualdade. Hoje estamos presos a uma armadilha, em que nos colocamos, em parte conscientes e por outro lado, cegos, pois não sabemos o que fazer com o Estado-nacional, a não ser curar-lhe algumas feridas para colocá-lo de pé novamente, com objetivo misericordioso de dar aos pobres novamente algum alento.

Aquilo que consumimos hoje, vem dos grandes parques industriais, que requerem cada vez menos trabalhadores e por isso também a reestruturação produtiva levou a classe trabalhadora a não ter mais acesso direto, a não ter domínio e a não ter poder sobre aquilo que é produzido. Com isso, tanto a ciência quanto a tecnologia estão distantes dos trabalhadores, este contexto afeta todas as relações e afeta inclusive a capacidade de organização dos trabalhadores, porque não sabemos mais para onde focar e para onde direcionar a nossa luta. Nós focamos a nossa luta contra o Estado, mas não somos capazes de mudar o preço do pãozinho, o preço da gasolina, o preço dos alimentos ou o preço do aluguel. O desenvolvimento da sociedade da informação, que desembocou numa estrutura tecnológica de redes de computadores que agora estão sob nosso uso também. Se antes, a estrutura de informação tecnológica de computadores, de redes, estava apenas na mão dos produtores, agora isso se transformou em aparato de consumo direto. Nós então, estamos diretamente envolvidos com isso e agora estamos numa nova cultura, que é uma cultura virtual e uma das características e isto provocou impactos e efeitos, como a passividade política, a regressão intelectual, a regressão cognitiva, uma mudança profunda nas estruturas de educação.

Mas o capital prevalece e é este quem orienta, como o senhor da nossa história, os caminhos que escolhemos, imaginando que o fazemos do alto de nossa suposta liberdade. E a barbárie ganha um caráter dramático, porque no interior da estrutura social surge novamente o grande fantasma que nos aterroriza, redivivo pelos nostálgicos do fascismo que acreditam que somente a barbárie fascista pode salvar o capital da imoralidade e das incertezas da crise, que se tornou irreversível e mundial. Como se não bastasse, mantemos a desordem com o grito de ordem dos fascistas contra todos nós. Já decidimos, mundialmente, que não queremos o fim do capital. Já decidimos por amplas alianças com a certeza e a pureza dos santos, que acreditam na conversão dos fascistas e que estes voltarão aos seus ninhos e serão calados pela força do amor e do perdão. Mais uma vez a história se repete. Mais uma vez a história é o grande palco da pantomima em que nos encontramos. A ironia da nossa condição se deve ao fato de que a história se repete na medida em que acreditamos ser possível refazer e reconstruir o que foi deliberadamente destruído, abandonando a própria história, como quem apaga ou incinera os próprios passos dados.

Em 2021, a transferência para pagamento da dívida e para amortização, promovidas pelo governo central, alcançou o maior índice. Foram transferidos para o sistema financeiro nada mais, nada menos do que 50,83% de tudo o que o Estado arrecadou nesse ano. O teto de gastos alcançou o seu objetivo. Desde 2013 a média salarial dos trabalhadores no Brasil vem caindo, ano a ano, de modo que os trabalhadores brasileiros, em geral, atingiram os menores índices de ganhos reais salariais, nos últimos 20 anos. Além disso a massa salarial percebida pelos trabalhadores brasileiros, a cada ano, tem correspondido a menos participação na riqueza produzida pelos próprios trabalhadores. O PIB nacional aumenta e a participação dos salários na riqueza nacional tem sido cada vez menor, alcançando as médias mundiais. Em 2021, a massa salarial que os trabalhadores brasileiros obtiveram foi apenas 10,89% do total produzido, isto significa que nós produzimos 9 vezes mais para o sistema do capital gratuitamente. A agroindústria Brasileira é a segunda maior eficiente do mundo, está apenas atrás dos Estados Unidos em termos científicos e tecnológicos. A área agriculturável de posse dos capitalistas agropecuários tem aumentado ininterruptamente há mais de 10 anos. Avançam sobre a Amazônia, penetram, dominam, tomam posse, penetram todas as formas de vida impunemente. Os capitalistas agropecuários estão entre os maiores exportadores de grãos no mundo e os maiores produtores de carne exporta, também do mundo, enquanto mais de 120 milhões de brasileiros experimentam a fome diária. Segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (I VIGISAN), o número de domicílios com moradores passando fome saltou de 9% (19,1 milhões de pessoas) para 15,5% (33,1 milhões de pessoas). São 14 milhões de novos brasileiros e brasileiras em situação de fome em pouco mais de um ano. O flagelo da fome, no Brasil, atingiu 125,2 milhões de pessoas no período entre 2021 e 2022. A fome, o desterro, o abandono social e econômico, gritam e expõem as entranhas da sociedade brasileira. A fome não pode esperar, este é um flagelo de proporções inimagináveis, a consequência última da desigualdade, como expressão do modo de exploração capitalista, traduz-se na última etapa antes da morte, o que é a condenação daqueles, que mesmo sem julgamento, são transformados em réus sociais.

Em contraste, no ano de 2020, segundo o Banco Central do Brasil, apenas 6753 investidores capitalistas brasileiros detinham, no exterior, 282 bilhões de dólares e o total de investimentos de capitalistas brasileiros somava 558 bilhões de dólares, mais de meio trilhão de dólares de posse de menos de 60 mil brasileiros capitalistas. As mulheres brasileiras estão na base da exploração na sociedade produtora de mercadorias, estão entre as que recebem os menores salários em comparação aos homens, são as que mais estudam e as mais vulneráveis. As mulheres negras estão ainda mais submetidas a uma espécie de semiescravidão na exploração da sua força de trabalho, lançadas a toda sorte de insegurança social.

Elas veem seus filhos serem assassinados todos os dias nos becos, nas vielas e nos morros, nos campos, nas praças e nos camburões. Toda a nossa crítica radical contra a sociedade produtora de mercadorias, cuja base é a produção de mais valor por meio do trabalho abstrato, não pode, de maneira alguma, prescindir da crítica radical ao massacre perpetrado, diariamente, sobre os negros e as negras do Brasil, que retomou a mesma face que permeava os quatro séculos de escravidão. No atual estágio do movimento da forma social do valor, a tecnocracia capitalista, estatal e concorrencial, elabora mecanismos da gestão da miséria com requintes tecnológicos de controle dos corpos, com a militarização capilarizada, o encarceramento institucional e territorial, que encurrala os trabalhadores negros e negras.

O Atlas da Violência (2021), mostra que no Brasil, em 2019, foram registrados, 3.737 casos de feminicídio, que equivalem a uma taxa de 3,5 vítimas para cada 100 mil habitantes do sexo feminino no Brasil. Os números podem nos mostrar uma queda de 17,9% em relação ao ano anterior, cuja taxa foi de 4,3 vítimas para cada 100 mil mulheres. A sociedade patriarcal capitalista odeia as mulheres, procura tê-las sob a rédea curta da violência, da tortura, da perseguição, ainda medieval e cuja exploração estrutural garante a formação da forma valor como instrumento lógico do capital. No Brasil, a exploração sobre as mulheres expressa o domínio estrutural da forma da dissociação do valor que tem raízes na colonização escravocrata da sociedade brasileira.

Não podemos escamotear a escalada violenta das forças da ordem contra as minorias. A comunidade LGBTQIA+ nunca esteve tão vulnerável e tão perseguida e mesmo assim há uma resistência que grita por socorro e por reconhecimento. O Brasil está entre os países que mais persegue e mata a população LGBTQIA+. Ainda segundo o Atlas da Violência (2021), pulicado sob a responsabilidade do IPEA, o número de denúncias de homicídios e de tentativas de homicídios contra pessoas LGBTQIA+ (2011 a 2019), tem caído. Em 2016, foram 85 homicídios, em 2017, 193, no ano de 2018, foram assassinadas 138 pessoas LGBTQIA+. No ano de 2019, os órgãos oficiais registraram 8 homicídios. Isto não demonstra que houve uma mudança social capaz de permitir a queda drástica do número de assassinatos. O que houve, efetivamente, foi a pressão social para o silenciamento das denúncias e isto implica que a partir de 2019, entra em cena o Mecanismo social de repressão estatal contra a população LGBTQIA+, que se vê cada vez mais ameaçada, coagida e sob risco iminente de não encontrar proteção estatal. Essas informações devem ser consideradas sob o prisma de que fazem parte da estrutura social metodológica de subnotificações e de silenciamento da violência contra a população LGBTQIA+.

Segundo o IMAZON - Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia, o desmatamento acumulado entre o ano de 2019 e 2021 foi de 67,13%, o que representa a soma de 18.458 km2. A devastação sobre a Amazônia hoje é conduzida por uma metodologia consistente, cuja velocidade é superior aos períodos anteriores ao atual governo. Sabemos que para o capital não há fronteiras, não há espaço territorial que não deva ser conquistado pelo modo de produção capitalista. Qualquer tentativa de impor políticas de sustentabilidade ou de manejos autossustentáveis do ambiente, enquanto a forma social do capital com sua expansão prevalecer, não haverá qualquer possibilidade de barrar a destruição. É neste bojo que os diversos povos indígenas passam a ser alvo da lógica expansionista de devastação do sistema produtor de mercadorias. É preciso registrar que somente no ano de 2019 em relação ao ano de 2018, houve um aumento de 134,9% de invasões de terras indígenas, o que indica que não há mais possibilidade, diante na voracidade do capital, em sequer proteger a população indígena. Entre os anos de 2009 a 2019, foram assassinados 1.288 indígenas.

A máquina totalitária de extermínio humano está a pleno vapor.

Não aceitamos as ideias correntes de que os movimentos sociais não têm um caráter anticapitalista. Todos os movimentos sociais têm como origem a multidão dos trabalhadores, desempregados ou não, informais ou não. Não é possível cindir a luta anticapitalista entre marxistas genuínos e movimentos sociais que carregam consigo a necessidade do reconhecimento de suas identidades. Negros, negras, homossexuais, mulheres, portadores de necessidades especiais, indígenas, moradores de rua, artistas, desempregados. Este universo não pode ser separado da classe trabalhadora e é por esta razão que as posições devem convergir para dar um fim ao espetáculo da barbárie.

O capitalismo mostra sua face mais horrenda, a face que tenta esconder em determinados períodos de aparente tranquilidade social, mas não consegue fazê-lo porque sua sanha é vampiresca, sádica, perversa e desumana. O capitalismo suga toda energia do mundo para continuar a ser a maior abstração da história humana, criando uma riqueza abstrata que não diz respeito à própria humanidade.

 

A crise do capitalismo se baseia na contradição interna ao seu próprio sistema. Trata-se da substituição histórica do trabalho vivo (capital variável) pelo trabalho morto (capital constante), que cegamente mina e estreita a base de valorização do capital. O capital tenta assim se desprender de sua base material, criando a sua própria ficção. Porém, a substância deste continua sendo o trabalho, de forma que a realidade cobra como uma lei da gravidade este afastamento. As crises cíclicas do capital cumulam para uma crise estrutural de longo prazo, que não significa uma passagem automática para uma sociedade melhor ou uma revolução social, mas a muito provável barbárie. (Tese 2 do Grupo Crítica Social)

É de notar, por outro lado, que a história brasileira está permeada pela presença do ordenamento militar sobre a vida cotidiana da nossa sociedade. Os militares insistem não apenas em fazer parte da vida nacional, mas compreendem a si mesmos como artífices da sociedade brasileira, numa espécie de mito criador da identidade nacional. Não bastasse isso, os militares acreditam que parte do metabolismo social se deve à sua intervenção direta. Por isso todas as vezes que tiveram oportunidade, assaltaram o poder para conduzir os caminhos da sociedade e dela usufruir como uma casta intocável. Mais uma vez eles estão no centro das decisões políticas e sua ideologia de caserna é transformada em imposição societária, além do fato de que vivem uma contradição em termos, pois promulgam aos quatro ventos que estão a serviço da nação e a ela devem obediência. Também em seus discursos afirmam que seu papel é o de proteger a sociedade e suas fronteiras. De modo escancarado, o estatismo militar atropela a suposta ordem democrática, que em sua aparência, imagina prevalecer sobre as forças autoritárias. Nossa história está recheada de intervenções, golpes e uma economia promovida pelo capitalismo absolutista com aval dos militares que hoje se arvoram em tecnocratas da ordem social.

Uma parcela dos militares não tem se colocado no envolvimento dessa agitação toda em torno das urnas. Sobre a outra que, aos ânimos desse governo, se instalaram ainda mais politicamente, como tecnocratas e gestores, é preciso colocar muita coisa no balanço, no interior de cargos burocráticos que com intensidade continuam a exercer do ponto de vista da liderança, a articulação na própria hierarquia interna. Até onde o processo eleitoral e, consequentemente, um outro governo é um impasse para atuações políticas dos militares, para seus acordos e negociações?

Resta pensar, também, no bolsonarismo, em suas proximidades populares e milicianas.  Até onde a efervescência dos mais emocionados conseguiria se projetar para além de um processo eleitoral. Sustentariam toda arquitetura de um golpe, dessa vez em uma composição do capital brasileiro muito diferente a 2016?

No que se refere ao processo eleitoral em si, não tenhamos dúvidas de que podemos esperar todo tipo de ameaças, invasões, grupos armados, Fake News como linguagem oficial, tudo que já foi utilizado para a eleição de 2018, agora na versão 2.0.

A pós-modernidade parece não descer apenas sobre os acadêmicos, a direita parece se constituir num processo cada vez mais difuso, mesmo que para abocanhar as fatias do Estado ou em seus golpismos. Mais distante de um ponto em comum, o monopólio da aparência como apontou Debord, parece afastar qualquer construção concreta até mesmo do bizarro “projeto de nação”.

O cotidiano está varado pela violência estatal que coloca suas polícias em guerra contra as populações indefesas, mas com um traço muito bem delineado de proteção das camadas e das franjas da classe dominante. Militares e policiais se confundem, fazem parte do mesmo banquete, comem à mesma mesa, bebem do mesmo sangue dos brasileiros e brasileiras. Nossa história se confunde com a tutela do controle militar sobre as relações de exploração. Um capitalismo que nunca renunciou aos serviços praticados pela ordem militar-policial, serviços estes que mantêm a sociedade sob rédea curta, ameaçando-a constantemente, coagindo-a permanentemente e humilhando-a todas as vezes que lhe são dadas as possibilidades.

A crítica radical ao modo de produção e exploração capitalistas, deve também voltar a sua atenção para as instituições que constituem a ordem, o controle e a reprodução cega do sistema produtor de mercadorias. Em algum momento teremos de enfrentar a caserna, as armas, os tanques, as prisões, as humilhações e as torturas. Em algum momento, será necessário colocar em questão, em seu caráter radical, a existência da sociedade militarizada, pois o capital até hoje necessita da ordem unida para a sua reificação. Os próximos governos, que se eleitos no campo progressista, deverão enfrentar sem tergiversar o problema que nos ronda diuturnamente, deverão encarar o poder das armas sob pena de também serem tragados e ameaçados com a força da espada.

Na última década o mundo tem experimentado a ascensão de grupos neofascistas, não tem sido diferente no Brasil, cujas últimas informações dão conta de que há ao menos 500 células entranhadas no subsolo da sociedade Brasileira.

Constantemente encontramos nos meandros sociais o fato de que o fascismo exerce fascínio e ele é revivido não apenas como um afeto nostálgico, é um movimento muito afeito e solícito dos capitalistas. Todas as vezes em que mergulhamos numa crise estrutural, os capitalistas e tecnocratas veem no fascismo um caminho para impor aos trabalhadores o terror e assim garantirem na pretensa suposição de que o capital será protegido pelas hordas fascistas. Como um movimento social, os fascistas brasileiros encontraram seu empoderamento com o atual governo, incentivados e protegidos pelo mercado das armas, o capitalismo brasileiro encontrou a sua confluência entre milícias, grupos fascistas, militares, polícias torturadoras, líderes religiosos e políticos mafiosos.

No período mais duro provocado pela ditadura no Brasil, corria uma anedota que dizia que a esquerda só se unia de fato na prisão. Era para mostrar, de alguma maneira, como as várias correntes de esquerda não eram capazes de se entender em condições normais e até mesmo debaixo da ditadura havia muita discordância quanto às estratégias a serem tomadas para combatê-la. Parece que essa anedota continua a ter alguma validade na atualidade. Os diversos grupos de esquerda continuam a não se entender. Construir alianças contra um inimigo comum é difícil, quanto mais sob regimes aparentemente democráticos. A esquerda parece sempre ter encontrado muita dificuldade parar trilhar um caminho que fosse minimamente de unidade. A unidade que muita gente espera das esquerdas não é tão simples de ser alcançada. Unidade programática? Unidade ideológica? Unidade de ação? Para muitos, subtende-se que um inimigo comum seria suficiente para que todos se unissem em torno de determinadas causas comuns, que efetivassem a derrubada do inimigo.

Numa sociedade tão complexa e capitalista, essa tarefa se torna um verdadeiro esforço hercúleo. Muita gente que fica do lado de fora pensa que é fácil juntar as diversas correntes de esquerda. Em determinados aspectos conclusivos das análises desses grupos, existe concordância, especialmente quando se trata de apontar elementos superficiais que parece serem comuns entre todos os grupos. Mas quando se começa uma análise, uma reflexão mais profunda, mais radical, as diferenças logo aparecem, de tal modo que as discordâncias podem ser transformadas em lutas intestinas, tão profundas, tão raivosas e tão diametralmente opostas, que a discordância pode muito bem ser transformada em luta de vida ou morte. Foi assim durante os 21 anos do regime militar, também foi assim durante o período da ditadura varguista. Hoje não parece diferente.

A questão que salta os olhos é se de fato parece natural a divergência entre as esquerdas ou se é uma obrigação das esquerdas assumirem uma aliança que seja duradoura. Parece óbvio aos olhos de muitos, que o inimigo é comum, que este inimigo é fácil de ser apontado e que não haveria discordância quanto à conclusão acerca do inimigo. Dada a confusão, não restaria às esquerdas seguirem o caminho da unidade para pavimentar o caminho da libertação. As discordâncias entre os vários grupos de esquerda podem desembocar em lutas fratricidas, não raro, com traições, que já levaram a mortes, atentados, além de uma série de outros componentes que permeiam o universo das esquerdas. Também não é raro que quando há desentendimentos, estes chegam a redundar em rompimentos definitivos, de tal sorte que quem está do lado de fora se pergunta qual o verdadeiro propósito de tantas diferenças e embates entre os grupos de esquerda. Seria importante uma análise mais profunda sobre essa questão porque envolve alguns elementos cruciais.

Seria possível encontrar um veio comum? Seria possível construir um programa comum entre todos os grupos de esquerda? E entre os grupos marxistas, seria possível elaborar uma carta de intenções comum, que desse o tom e pudesse acalmar os ânimos e fazer o que todos concordassem numa mesma estratégia? Sabemos que os congressos internacionais têm ou deveriam ter esse papel, de encontrar caminhos comuns, estabelecer estratégias comuns, encontrar um acordo mínimo, necessário para conduzir a luta e a organização. Sabemos também que o atual contexto em que se encontra o Brasil, até o momento, não houve nenhuma proposta que pudesse abarcar uma espécie de encontro entre todas as correntes das esquerdas marxistas, muito menos com outros grupos, como por exemplo os anarquistas. Se alguém se arvorar a costurar uma aliança mínima entre todos os grupos de esquerda, certamente será tachado ou acusado de conciliador.

O drama em que nos encontramos nesta quadratura histórica, revela o trágico roteiro que parece levar as esquerdas ao eterno retorno do próprio capital. Parece não restar outro caminho a não ser o retorno ao Estado e ao keynesianismo social, ao liberalismo social, com fortes contornos humanísticos. É preciso salvar as massas que estão à margem do rio. O rio estreita cada vez mais o seu leito e as margens são cada vez maiores e áridas. Parece não haver uma alternativa a não ser trazer de volta para o leito deste rio estreito as massas e as multidões desamparadas. No interior do leito, o oxigênio torna-se raro, cada vez mais raro. A economia política que resta para as esquerdas talvez seja apenas gerenciar as obras de uma riqueza que insiste em prevalecer sobre a humanidade. Mesmo assim, tentaremos fazer isto com a espada de Dâmocles sobre nossas cabeças, ininterruptamente ameaçados pelas hordas fascistas e pelos empresários e tecnocratas, que promovem turismo pelo mundo afora. As corporações controlam o Estado e permitem que em seu quintal o governo neofascista se esmere à caça de todos os trabalhadores que hoje, de joelhos, rezam o catecismo do neoliberalismo e empreendedorismo.

 

O Estado-nacional não é um aparelho externo ao capital, nem pode ser entendido como uma forma com fim em si mesma, uma constituição transhistórica, mas um aparelho de gestão da produção de mercadorias e da lei do valor, não servindo à emancipação – é um momento do próprio capital, engendrador de condições gerais de produção capitalistas. A dinâmica e o movimento de acumulação e centralização do capital exigiram historicamente a instituição de um Estado Amplo – a malha transnacional de soberania das empresas, novo centro de poder político que passou a suplantar e se sobrepor ao Estado-Nacional restrito; a mundialização e a globalização assim o exigiram. (Tese 3 do Grupo Crítica Social)

Temos a consciência histórica de que o Estado-nacional é alvo principal da luta de classes, no interior no sistema social do capital. Temos clareza de que não é possível, no atual estágio do movimento real da sociedade capitalista, o fim do Estado-nacional, muito menos a remota possibilidade de tomá-lo a fim de promover a organização revolucionária e política com perspectiva ao socialismo. Sabemos da profunda crise que esta sociedade experimenta, colocada frente a um falso dilema - o de humanizar as condições gerais de exploração, com o dito empoderamento social por parte nas camadas populares de trabalhadores, que encontrariam na gestão social do Estado-nacional, o caminho para mitigar as profundas consequências do modo de exploração capitalista.

No atual estágio em que a sociedade mundial e, especialmente o Brasil, encontra-se, dado o fato de que os trabalhadores em todas as partes do mundo, encurralados pela contínua desvalorização do seu preço, como capacidade de trabalho, não ameaçam o sistema mundial do capital. Os níveis de endividamento alcançam patamares estratosféricos. Alimentar a expectativa de que será possível, por meio da revolução social, alcançar a emancipação, é, sobretudo, mergulhar no sofrimento dos desvalidos.

Por essas razões, temos clareza das limitações históricas, materiais, sociais e econômicas que nos colocam o desafio de decidir se lutamos apenas contra as ações estratégias da atual economia política de destruição ou, se nos colocamos na luta contra o neofascismo instaurado no Estado-nacional ou, ainda, se para nos posicionarmos contra o neofascismo, assumimos a defesa institucional da candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva, para a presidência da República. Mais uma vez o movimento real desta sociedade parece impor uma derrota sobre a teoria, politizando-a e mantendo-a sob a rédea curta dos interesses puramente políticos institucionais e tecnocratas, que forçam a teoria a se submeter a um grau muito superficial que implica estarmos conscientes da armadilha que historicamente o capital nos impõe.

 

Partidos políticos institucionalizados, de caráter puramente eleitoral, sindicatos oficiais e instituições como ONGs, movimentos burocratizados, igrejas e religiões organizadas atuam e trabalham dentro dessa lógica do capital – trabalho abstrato, valor, mercadoria e dinheiro, constituindo elemento de reprodução desta lógica e campo de formação de gestores da força de trabalho. (Tese 5 do Grupo Crítica Social)

Devemos estar atentos e não escamotear o mundo concreto da exploração que tem como seu produto a desigualdade, em níveis e escalas inaceitáveis para a condição humana. Corremos o risco de sermos extintos como espécie ou de amargarmos um cenário catastrófico que somente nos filmes de ficção temos a oportunidade de assistir. A marcha inexorável do modo de produção capitalista atingiu toda a face da Terra, tornou-se muito rápido na metafísica encarnada, a tautologia social cuja engenharia social organizou e conduziu a humanidade numa imensa fábrica social, que produz, cada vez mais, gratuitamente, o mais valor social que alimenta uma realidade invertida, na forma de mercados derivativos, mercados de crédito, a grande indústria da dívida mundial, os mercados das criptomoedas e o mercado concorrencial entre as corporações e entre os estados-nacionais.

 

Os trabalhadores deixaram de ser uma ameaça ao sistema do capital. Um Estado amplo é constituído para além das fronteiras nacionais, o Estado mundial das corporações que controlam todos os povos no interior das fronteiras nacionais. Este Estado amplo e mundial hoje luta, por meio dos seus agentes, para garantir as melhores fontes de recursos para a contínua evolução do processo produtivo material das mercadorias em âmbito global. Este modelo se tornou hegemônico e conta com o consentimento das burguesias locais e regionais, tornou-se hegemônico também pela forma da organização institucional, que o capital impõe sobre as relações de exploração. A classe dos políticos e de seus partidos em colapso, agarram-se aos últimos estertores de um sistema social que há muito dá sinais de que não poderá salvar a humanidade, mesmo assim, todos seguem em procissões, cada qual com o seu estandarte, em oração, nas súplicas e nas lágrimas copiosas, na esperança de que haverá um tempo sem conflitos, sem lutas, um tempo de redenção e conversão à fé capitalista. A esperança de que o capitalismo poderá ser adestrado e educado e não infringirá à humanidade a sua sanha que representa a lógica formal de seu conteúdo - a produção de mais valor ininterrupta.

É nesse cenário miserável em que nos encontramos, que o capital grassa sobre o mundo brasileiro. O senhor da nossa história agora parece querer arrancar de nós os últimos suspiros para seguir cumprindo seu desígnio. Mas em nós ainda resta a possibilidade do gesto supremo de apontar para nossa humanidade este estado de coisas inconteste. Temos insistido ao longo de quase duas décadas, que o capital, como forma social global, não apenas está em franca decadência como experimenta a sua crise derradeira, que o leva ao encontro de seu colapso. Para muitos, a crise vivida pelo sistema social do capital pode ser debelada com os mecanismos de retificação do próprio sistema e, some-se a isto, a crença de que o capital tem um poder de renovação infinito até que a classe trabalhadora, como sujeito da história da luta de classes, porá fim ao capital. Isto parece sempre ter implicação na convicção de que somente a classe trabalhadora pode, efetivamente, dar fim e cabo, com suas próprias mãos, ao sistema do capital. Mas, ao invés da crença teológica, presente no apregoado senso comum, o capital não obedece à vontade de seus gestores nem pode ser combatido com voluntarismo e gestos heroicos, estes obedecem cegamente a um sistema cuja dominação e o controle não tem face muito menos proprietário. Esta é, por certo, a grande questão colocada na raiz da crise do capital e, por esta razão, a teoria não pode se furtar a esse papel histórico e decisivamente político.

 

Por mais que não se queria reconhecer, o fato inconteste é que o capitalismo não pode prescindir da exploração da força de trabalho, mesmo que haja uma invisibilidade de sua condição. A engenharia social fragmentou os trabalhadores, dificultando sobremaneira suas lutas e sua identidade de classe. É preciso e urgente desfragmentar as lutas sociais e especialmente criar condições de uma solidariedade entre as diversas lutas e a classe trabalhadora. Entendemos que é preciso assim construir, por esta solidariedade prática a visão de totalidade. Para isto, é necessária a autonomia crítica e teórica e um programa prático de unificação de lutas em torno de pautas concretas e sensíveis, e não demandas abstratas da modernização capitalista. Se o pós-modernismo dissolveu a compreensão da realidade na fragmentação e no relativismo niilista da produção de mercadorias, cabe à teoria crítica restabelecer o conceito de verdade. Porém, não como uma verdade abstrata, metafísica e totalitária, mas como a verdade do fato histórico e da vida concreta e real, da crítica teórica e prática negativa a uma condição social de exploração e opressão. (Tese 11 do Grupo Crítica Social)

Sabemos do risco que as esquerdas têm assumido na última quadra histórica em que decidiram aplainar os caminhos do anticapitalismo, dando-lhe fôlego e sobrevida. Construíram a ideia de que somente o gerenciamento estatal poderia garantir a assistência e proteção sociais às massas deserdadas pelo capital. E sabemos que as posições apresentadas neste Manifesto não representam a maioria do pensamento de origem marxista, ao contrário, são contra hegemônicas, temos profunda clareza de que nossas teses e este Manifesto apresentam a crítica radical à forma social que o capital impôs sobre todas as instâncias sociais. Não podemos nos furtar à condição crítica que a teoria exorta. Por isso, assumimos criticamente a posição de apoio à candidatura de Luís Inácio Lula da Silva, conscientes de que a chegada ao poder central não colocará em pauta, em caráter radical, as questões apresentadas pelo Manifesto.

Temos ciência de que o neofascismo deve ser combatido, para além das ações institucionais. Sabemos que é de extrema importância manter viva a trágica realidade material em que se encontram as multidões de trabalhadores e trabalhadoras. Compreendemos as limitações políticas em um cenário estruturalmente colapsado e não percebido pelas maiorias exploradas. Não aceitamos a resiliência política e não esperamos que nossa voz seja reconhecida pelas maiorias e minorias que compõem o quadro hegemônico do espectro político nacional. Colocamo-nos no escopo de enfrentar, nas trincheiras que temos, com os instrumentos que nos são caros, o neofascismo e o neoliberalismo, não para escamoteá-los, mas para derrotá-los, com o firme propósito de superar a sociedade produtora de mercadorias.

Não somos um partido político, não pertencemos a nenhuma corrente histórica do espectro marxista, não somos uma organização hierárquica e doutrinária, somos constituídos de homens e mulheres trabalhadores, que encontraram na crítica radical da forma valor a sua condição de luta. Não pretendemos aliciar membros nem ativistas. Temos clareza de que muitas de nossas posições não são hegemônicas, compreendemos que a crítica radical estabelecida por nós acerca do Estado, tanto quanto a crítica radical à sociedade do trabalho, não são bem aceitas pela maioria das esquerdas. Entendemos que o momento em que estamos por atravessar requer que tomemos determinadas posições, não nos parece que é a hora de contemporizar o contexto atual com o discurso redentor do fim do capital e toda a sua forma social. Requer de nós um engajamento no interior do qual não renunciamos à crítica radical que há 18 anos tem caracterizado a nossa atuação, nossos estudos e nosso pensamento.

Este manifesto é o resultado e a expressão de longa reflexão crítica por parte dos membros do Grupo Crítica Social.

 

Os membros do Grupo Crítica Social

Junho de 2022