terça-feira, 10 de junho de 2014

Greve, o direito de ir e vir e os trabalhadores

Por Atanásio Mykonios


Os meios de comunicação, insistentemente, procuram apresentar uma tese que se mostra falaciosa. A estratégia desses organismos de comunicação é a de defender um falso dilema na sociedade capitalista. Qual seja, o de ter o direito ao trabalho. De maneira geral, a defesa se concentra contra os movimentos sociais e os movimentos paredistas, isto é, contra as greves em pontos estratégicos da fábrica social do valor. A circulação do valor deve prevalecer sobre todos os demais direitos. No entanto, esse princípio é tornado totalmente invisível e o que surge é uma espécie de política oficial do sistema, uma ideologia consistente que defende, o direito de ir r vir de cada cidadão – o direito inalienável dos sujeitos de circularem, mas circularem com que escopo? A cidadania se fixa no âmbito da pura individualidade e a liberdade a que se referem esses meios de comunicação não passa de uma obrigação para o trabalho. Marx, em sua obra Sobre a questão judaica, deixa claro o que significa a liberdade na sociedade burguesa.

A liberdade equivale, portanto, ao direito de fazer e promover tudo que não prejudique a nenhum outro homem. O limite dentro do qual cada um pode mover-se de modo a não prejudicar o outro é determinado pela lei do mesmo modo que o limite entre dois terrenos é determinado pelo poste da cerca. Tratase da liberdade do homem como mônada isolada recolhida dentro de si mesma. Por que o judeu, segundo Bauer, é incapaz de acolher os direitos humanos? (Marx, 2010, p. 49)

O homem abstrato é uma condição essencial para que o trabalho abstrato se torne condição para a exploração em geral. Por outro lado, nesta sociedade em que os interesses se tornam indiferenciados, por uma parte, e fragmentados por outra, a noção de vinculação aos demais “cidadãos” é um exercício de ficção, uma vez que a luta pela sobrevivência dos trabalhadores os empurra para uma competição absurda e fratricida entre si. Na mesma condição estão os produtores que se veem impingidos a produzirem para o mercado e só para o mercado, e que precisam do trabalhador para assegurarem o constructo do valor.

No entanto, o direito humano à liberdade não se baseia na vinculação do homem com os demais homens, mas, ao contrário, na separação entre um homem e outro. Tratase do direito a essa separação, o direito do indivíduo limitado, limitado a si mesmo.
A aplicação prática do direito humano à liberdade equivale ao direito humano à propriedade privada. (Marx, 2010, p. 49)

A liberdade, mais uma vez não diz respeito ao indivíduo que não possui nenhuma predicação, para ser o que é como indivíduo. Refere-se, substancialmente, a uma liberdade que não se encontra nas mãos desse indivíduo, mas nas mãos de um fantasma social que rege a estrutura e as relações sociais vigentes, relações de exploração. Todos serão iguais sob o teto do sistema capitalista deste que cumpram em serem livres para serem explorados ao máximo.

Restam ainda os outros direitos humanos, a égalité e a sûreté. A égalité, aqui em seu significado não político, nada mais é que igualdade da liberté acima descrita, a saber: que cada homem é visto  uniformemente como mônada que repousa em si mesma. (Marx, 2010, p. 49)

Essa liberdade se refere a uma coerção social que dita a regra fundamental do modo de produção do capital numa escala em que o processo de produção de valor não pode ser interrompido por nenhuma reivindicação particular, por parte dos trabalhadores ou até por quem está à beira do abismo social. Eis que, num sentido estrito, a segurança é o elemento constitutivo do direito à produção e à propriedade privada. Os trabalhadores não podem impor sua condição de explorados, a não ser como fonte de benevolência daqueles que atribuem ao Estado a função de dirimir contendas de negócios.
A segurança promovida pelo Estado é clara. Tem função clara. Exerce papel claro nas suas atribuições diante dos conflitos sociais. Serve, em primeiro lugar, para garantir o modo de produção e para isso, é crucial que os trabalhadores tenham condições materiais para chegar ao trabalho – ao lugar de produção. Isso não quer dizer que o sistema providenciará meios de circulação adequados, o que há por detrás desse processo, é a capacidade que as forças de segurança têm de garantir que os trabalhadores continuem a trabalhar.
É por isso que, via de regra, a polícia deve ser mobilizada para atender às demandas da iniciativa privada, ou, da propriedade privada (em consórcio com aparatos público-estatais), entendida aqui como o grande complexo de produção, distribuição e circulação de mercadorias. O sistema não pode parar sob nenhuma hipótese, é preciso empurrar os trabalhadores, forçá-los a produzirem, esmagá-los nos trens, ônibus, vans, metrô, seja lá como for. Isto denota um aspecto interessante, o fato de que o trabalho continua a ser crucial ao modo de produção capitalista, apesar de este continuamente expelir o próprio trabalho.
Mais uma vez, Marx aponta a questão da seguinte forma.

A segurança é o conceito social supremo da sociedade burguesa, o conceito da polícia, no sentido de que o conjunto da sociedade só existe para garantir a cada um de seus membros a conservação de sua pessoa, de seus direitos e de sua propriedade. Nesses termos, Hegel chama a sociedade burguesa de “Estado de emergência e do entendimento”.
Através do conceito da segurança, a sociedade burguesa não se eleva acima do seu egoísmo. A segurança é, antes, a asseguração do seu egoísmo. (Marx, 2010, p. 50)

O homem, aqui entendido, é a célula que faz a engrenagem funcionar, cuja perda de sua própria autonomia é o sintoma de uma coerção sem medidas, em que a escravidão moderna se apresenta, de forma que não há escolhas possíveis u plausíveis.
Nesse sentido, qualquer tentativa de impedimento da circulação dos trabalhadores em direção ás células de produção é e deve ser tratada como uma afronta deliberada. Nada pode cortar a circulação e a produção, por isso, as forças de segurança, guindadas pelos gestores públicos, estão cada vez mais atentas para qualquer desvirtuamento da ordem sistêmica do capitalismo.
Assim, quanto mais a crise se instaura em todos os quadrantes e quanto mais a fragmentação dos trabalhadores se mostra visível, mais se pode observar que algumas formas de atividade laboral se tornam fundamentais e estratégicas para a manutenção do sistema, tanto quanto para a sua destruição. A massa imberbe de trabalhadores sempre surge como vítima das greves, os mais humildes, os que mais dependem dos transportes, por exemplo, e que constituem a imensa maioria desse trabalhadores.
Também, é por essa razão, que os meios de comunicação se esmeram em defender obstinadamente as ações das forças de segurança, a manos que essas forças se voltem contra esses meios de comunicação. Daí, o que aflora é o sentimento corporativo, mas sem deixar de continuar com a lealdade que os caracteriza, promovendo a apologia da violência e do terror contra os trabalhadores em geral. Seja no seu extermínio, seja na brutalidade com que a polícia enfrenta a reação dos trabalhadores nas ruas e avenidas, etc.
Instintiva ou racionalmente, os meios de comunicação seguem à risca o que Marx coloca em sua obra. Atuam sem constrangimento porque estão acima do valor humano, da sua condição enquanto individualidade, uma vez que promovem o bem-comum não dos “cidadãos”, mas é o bem-comum da sociedade produtora de mercadorias.

Portanto, nenhum dos assim chamados direitos humanos transcende o homem egoísta, o homem como membro da sociedade burguesa, a saber, como indivíduo recolhido ao seu interesse privado e ao seu capricho privado e separado da comunidade. Muito longe de conceberem o homem como um ente genérico, esses direitos deixam transparecer a vida do gênero, a sociedade, antes como uma moldura exterior ao indivíduo, como limitação de sua autonomia original. O único laço que os une é a necessidade natural, a carência e o interesse privado, a conservação de sua propriedade e de sua pessoa egoísta. (Marx, 2010, p. 50)

Esse homem dito “egoísta” é a marca de uma sociedade que não encontra, na atualidade, formas de engendrar um consenso acerca do entendimento para uma ação coletiva sobre o modo e o processo de produção capitalista. E o Estado, assim como as organizações da empresa, fornecem um quadro em que a manipulação da verdade ocorre por meio da construção de uma falsa consciência, transformando assim, a grande massa, em sócia da ação do Estado, que tem como objetivo assegurar e garantir a produção e a circulação de valor.

Em outras palavras, o trabalho não é um direito, é uma escravidão, uma determinação imposta de fora para o “cidadão”, pois o verdadeiro direito universal no capitalismo é assegurar a produção de mercadorias, seja lá de que forma, com balas, bombas, algemas ou prisões.







Referência Utilizada

MARX, Karl. Sobre a questão judaica. Apresentação [e posfácio] Daniel Bensaïd; tradução Nélio Schneider, [tradução de Daniel Bensaïd, Wanda Caldeira Brant]. São Paulo: Boitempo, 2010. (Coleção Marx-Engels)

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Por que tanto espanto?

Por Atanásio Mykonios

Durante um período recente, as esquerdas pensaram que o caminho para a mudança cultural estava aplainado, mudança que implicava a conquista de um mundo distante das travessuras dos reacionários e fiscais do comportamento moral. A materialidade se tornou um dado aparentemente resolvido e que restava às vanguardas lutarem por emancipação no seio da cultura e com isso garantirem direitos de vanguarda para os mais oprimidos.

Por quase vinte anos, nos acostumamos e lidar com um público de pouca manifestação politica, imaginando que esse contingente não tinha consciência histórica para lidar com o debate político e o cenário das lutas sociais. Tratava-se de uma horda de ignorantes que somente criavam obstáculos e geravam um marasmo mobilizatório quanto aos objetivos de uma esquerda visionaria, em muitos casos, encastelada no interior das academias. Essa esquerda culminou no aprofundamento acadêmico-científico-teórico de grande envergadura, mas de pouco alcance social. Aos poucos foram engolidas pela esfera burocrática dos instrumentos de controle do Estado e se viram encurraladas pela lógica produtivista que alcançou os gabinetes e as salas de aula.

Enquanto isso a história prosseguia com sua dinâmica. As esquerdas, capitaneadas pelo PT, cresceram aos olhos vistos e não se preocuparam com a ascensão de um pensamento de direita que era urdido lentamente pela maioria silenciosa. A luta contra a ditadura deixou sequelas nas linhas da esquerda. Após o fim do regime militar, uma geração de atores políticos chegava ao cenário institucional e contava com o apoio de parte da opinião púbica, especialmente os artistas, intelectuais, formadores de opinião, profissionais liberais, que, recém-saídos da ditadura, encontravam um caminho para reconstruir o processo político com bases na democracia liberal representativa. Era pegar ou largar!

Movidos pela herança quase gloriosa de uma esquerda combativa e comprometida, o Brasil foi aos poucos ganhando contornos de uma democracia de cunho liberal festivo, fortemente ancorado na jurisdição, na igualdade social por direitos de acesso e ascensão, bem como um forte sentimento de inferioridade que prevalece até hoje em todas as camadas sociais. Os avanços cada vez mais significativos no âmbito dos direitos sociais ao mesmo tempo em que sonhavam (as esquerdas), com uma revolução socialista que, lentamente se perdia no horizonte histórico, desenharam um quadro estranho, mas ainda promissor e positivamente alentador para as esquerdas.

A bifurcação da história nos legou uma indecisão quanto às escolhas a serem feitas. Diante das esquerdas e, especialmente, diante do PT, dois caminhos se colocavam e se entrecortavam. De um lado, a tradição da luta e da organização burocrática do sindicalismo e da política administrativa, por meio das lutas dos partidos populares (anticapitalistas, anarquistas, marxistas, etc.), marca de um tempo de estrutura produtiva que permitia o modelo de concentração das massas trabalhadoras em torno de projetos comuns e sistematizantes. – a burocracia sindical juntamente com a hegemonia dos partidos de trabalhadores e marxistas no Ocidente. O Estado era o caminho natural da luta pelo poder contra o capital monopolista. Esse modelo estava alinhado com a estrutura de produção industrial massiva que engendrava na organização do trabalho interpretações que tinha como premissa o antagonismo entre trabalho e capital. As lutas pelo poder giravam em torno à possibilidade de inverter a balança desse antagonismo em favor dos trabalhadores, mas, em muitos casos, nada mais se observou que o sucumbir à lógica do capitalista coletivo, ora em favor das elites locais, ora em favor dos grandes conglomerados transnacionais.

De outro lado, uma revolução no interior das hostes do capitalismo que empurraria lenta e gradativamente as esquerdas para uma armadilha cujo gatilho impingiria quase que a sua destruição ou, mais radicalmente, sua autodestruição. Enquanto os administradores e gestores do capital enfrentavam a questão da recomposição de sua capacidade de produzir valor, as esquerdas se viam tragadas pelo canto da sereia que ditava o caminho político para a tomada do Estado-nacional. Chegaram ao poder e seu glamour as transformou em títeres de um desenvolvimento nacional herdado pela sociedade do bem-estar.

No Brasil, o ambiente criado na festiva luta pelos direitos de grupos e minorias, criou a impressão de que o pensamento de direita estaria, de alguma forma, sepultado. Talvez, em uma espécie de hibernação histórica. Os avanços nas conquistas de direitos das mulheres, dos negros, dos homossexuais, das minorias, dos índios, dos portadores de necessidades, das crianças e adolescentes, gerou um clima de otimismo das e nas esquerdas, até que o partido que detinha a hegemonia do movimento de esquerda chegava ao poder. Muitos se aliaram às esquerdas, criando um clima de falsa convergência, com aqueles que tinham concepções de justiça, mas se mantinham fieis ao liberalismo cultural, sem olvidar o modo de produção de valor. Entusiasmada com esse processo e a perspectiva de mudanças mais radicais, a esquerda se viu manietada pela bipolaridade politica exercida pelo PT e seus aliados. E com a estrada bifurcada opôs aliados e destruiu biografias intensamente construídas no período ditatorial último.


A saga petista foi de uma extraordinária agilidade e estupenda capacidade para aliar dois aspectos da política nacional que viviam em posições diametralmente opostas. Conseguiu convergir a politica da concentração da riqueza por meio do Estado e criou, em paralelo, políticas sociais apartadas do movimento da economia política, abrindo, assim, dois flancos. Enquanto a economia nadava de braçada e os índices financeiros abastavam ainda mais bancos, investidores e a indústria nacional; o problema social, por sua vez, foi tratado com linhas de crédito para favorecer s famílias indigentes sociais e com o auxílio de agentes terciários – isto é, o problema social passava a ser tratado por igrejas, psicólogos, organizações não governamentais, assistentes sociais e, por fim, pela polícia. E como não podia deixar de ser, foi envolvido pelas forças conservadoras que tinham, desde a década de 1960, o traço marcante da ordenação do capital como mola propulsora do desenvolvimento econômico, mantido sob a rédea curta pela classe dominante.

Não foi o bastante ter de agradar a dois senhores ao mesmo tempo. Não seria possível. A ruína tardaria, mas a história cobraria seu preço – e alto! Hoje, em meio a uma turbulência social que atinge diversos setores da sociedade, as esquerdas se veem aturdidas com o pulular de pensamentos de caráter extremista, com fortes contornos racistas, contra os pobres, contra os oprimidos, enfim, uma onda de revanchismo, sectarismo e ódio se espalha. Mas, será mesmo um fenômeno recente, uma espécie de bolha assassina que abduziu milhões de jovens e os lobotomizou para que apreendessem um discurso raivoso de cunho fascista ou nazista? Não, não foi por acaso e nem de repente que essa avalancha de violência ganhou as ruas e os espaços virtuais.

Há mais no profundo dessa realidade e há mais por vir. Esses jovens, moças e moços, esses homens e mulheres estão aqui como em outros lugares. Pelo mundo afora observamos estruturas discursivas que pleiteiam o poder dos mais fortes, o uso da força e da coerção de cunho militarizante, o fim dos direitos sociais, enclausurando os desprovidos de valor em modernos campos de concentração. Aqueles vinte anos citados acima são o caldo no qual uma geração e meia cresceu e se formou, acostumada com ganhos significativos, com a crescente despolitização do processo social, com o distanciamento dos reais problemas relativos ao capitalismo e a aparente derrocada dos regimes socialistas. Eles se acostumaram com uma sociabilidade sem conflitos reais, sem a pressão da materialidade, com a perspectiva de um acúmulo capitalista indefinido. A pequena burguesia deitou raízes com sua moral tacanha e invadiu a consciência social dos emergentes. Olhavam para as políticas sociais do governo com um ar de desconfiança, mas o Brasil crescia com alguma folga contra o maremoto do crash financeiro mundial, dado a partir de 2008. O pensamento metódico, organizado e sistematizado, que hoje surge como expressão de grupos emergentes, não ocorre com um passe de mágica, mas há uma causa ou algumas causas. Some-se a essa nova-velha mentalidade os horrores de uma sociedade embevecida pelo extermínio dos mais pobres, a perseguição sistemática contra os negros e indigentes, a insana moral do trabalho contra os que não são capazes de se inserir nos mecanismos de produção direta do valor, etc. A fábrica social do valor não exclui ninguém, como supunham as esquerdas cristãs benevolentes deste país.

Uma das mais importantes causas, senão a de maior significância, é o fato de quando o modo de produzir mercadorias entra em crise e, por conseguinte, o modo de adquiri-las também, há uma afetação de parcelas da sociedade acerca do modo de enxergar o contínuo real, que muda quase radicalmente. À medida que a crise avança, mesmo que não haja consistência em reconhecê-la ou apreendê-la em sua totalidade, os grupamentos sociais assumem seu caráter predatório e, também, reproduzem o que está no subterrâneo de suas práticas, tanto singulares quanto sociais, de sobrevivência histórica.

Outro aspecto interessante é que os movimentos sociais se articulam, especialmente os de trabalhadores sem nada, com o escopo de pressionar os vários níveis do estado-nacional, para a conquista de direitos necessários. Ocorrem um tanto quanto à margem da institucionalidade da esquerda, criando um estado de perplexidade, e, por outro, uma complexa engenharia social que foge às análises mais perspicazes dos teóricos da esquerda. Entre esses movimentos e os representantes oficiais da esquerda, há um fosso que parece ainda ser difícil transpô-lo, as pontes foram queimadas há algum tempo e por isso mesmo, o discurso da esquerda não encontra um veio por onde escoar seu projeto de sociedade.

Assim, não deveria haver de nossa parte o espanto com “os coxinhas” e as hostes reacionárias. Nem com as manifestações estúpidas que se espalham em forma de linchamentos, assassínios, apologia à segregação, perseguições religiosas, censura, etc. Esses grupos aparentemente acéfalos, estão conduzindo um processo de reação à crise que avança inexorável para além e acima das esquerdas em todo o mundo capitalista. A dinâmica social tem um caráter irreversível, caótico em certo sentido e de difícil controle, uma vez que as forças sociais entram na arena do conflito sem um projeto claro, a não ser o de cassar os bodes expiatórios de sempre.

O problema é que, de alguma forma, a esquerda acreditava que o que havia no conjunto da esfera social da política não passava de uma turba imberbe e sem rumo intelectual – os ignorantes que deveriam ser catequizados pelas vanguardas, aglutinadas nas academias e em nichos partidários cada vez mais em número reduzido. Nesse tempo de aridez intelectual, em que a sociedade do espetáculo se transveste de um caráter eminentemente imagético, os discursos da subjetividade assumem um poder social aparente, que ganha o ar de verdade absoluta ante o vazio deixado pelo pensamento das próprias esquerdas. Mas esses discursos estão destituídos de consciência histórica porque não têm um poder orgânico e sim uma força social descomunal, cujo parâmetro é a imposição de um poder cego, que clama pela intervenção de uma força militar que pusesse fim á baderna social, econômica e política . Um analfabetismo social impregna-os de cabo rabo, são como adolescentes vociferando pela coxinha do dia.

O que mais deve nos preocupar é a narrativa subliminar que aponta para algo já existente no interior desses grupos que, de certo modo, herdam a violência que está incrustada em nossa história social. Por outro lado, o fascismo não vem exatamente desses grupos, uma vez que não têm nenhuma ligação com os trabalhadores em geral, nem com um compromisso que faça-os se aproximarem de interesses nacionalistas contra inimigos ferozes externos, mas do próprio partido governista – partido de trabalhadores – que emprega a ordem institucional para mover para debaixo do tapete a perspectiva de uma ação histórica dos movimentos sociais e dos grupos de esquerda. Esses vorazes autômatos não gostam da ralé nem dos trabalhadores, querem que todos sejam queimados em praça pública.

Os trabalhadores estão sendo guiados pela foice que está a ceifar a sua consciência como trabalhadores.

Ora, não deveríamos termos sido pegos de surpresa dadas as condições em que a sociedade brasileira se viu investida de uma espécie de legitimidade política que ganha alguns espaços públicos, no entanto, essa forma de manifestar a insatisfação social e política não é nova. Mas, de alguma forma, os mais ignaros ganharam um aspecto social aceito por muita gente. É como se tivessem perdido o medo de expressarem o inominável, o indizível. Mas o fazem com aquele tom grave, de quem conhece os rumos da história e as sendas do processo político. Nada mais enganoso aos olhos de quem vê o mundo se virar de cabeça para baixo, em todos os cantos.

O que salta relevante nesse processo é a nossa incapacidade de enxergar a dinâmica social como um lastro de uma verdade. Isso ocorreu debaixo de nossas barbas que já estavam de molho.

À deriva! Rumo ao fim do caminho

Por Atanásio Mykonios



Dizer o mais do mesmo pode não ser de bom alvitre. Por todos os lugares do mundo, o contexto é de confrontação. Os conflitos sociais irrompem em violência desmedida. Grupos organizados, de diversas denominações, atuam com a força das armas, subjugam populações, os refugiados transitam por todas as fronteiras. A África está mergulhada em um banho de sangue. Os interesses econômicos conflitam com os interesses locais. Na Europa, o massacre no leste da Ucrânia nos mostra que grupos fascistas e neonazistas estão em franca ascensão. A extrema-direita assume uma posição preocupante no continente europeu e os indícios são de que ainda há mais espaço para conquistarem. Podemos contar mais de 50 países mergulhados em conflitos de várias espécies, todos, contudo, de caráter extremo de violência. Após o fracasso das esquerdas gestoras da crise, o capitalismo faz guindar aos postos de comando estatal os representantes da tecnocracia transnacional – os novos gestores assumem postos políticos, porém, não conseguem responder às demandas sociais e econômicas. Os trabalhadores estão encurralados nos seus territórios, seus respectivos estados-nacionais são uma ficção histórica. A Ásia está entre um crescimento econômico que empurra a concorrência capitalista para o extremo leste e a iminência de uma decadência inevitável da produção de valor paira sobranceira sobre as sociedades asiáticas. As américas começam a viver a crise dos estados-nacionais, a queda da atividade econômica se apresenta como fracasso das esquerdas pelo continente latino-americano,  sem que nem mesmo a direita tenha recursos para responder às demandas que surgem do interior do processo de produção industrial, que perde fôlego, ao mesmo tempo em que os juros continuam altos para os trabalhadores. Greves, paralisações, manifestações. Por outro lado, o imaginário coletivo e as formas urbanas de interpretação do contexto atual criam mecanismos de interpretação de aprofundamento dessa crise com contornos e nuances catastróficas. Pelo mundo, o que posso constatar é que estamos já em um ambiente de profunda destruição. Que definição é possível para esse contexto? Mas há os que não conseguem perceber esse processo ou o negam a fim de se manterem incólumes o barbarismo que se espalha como rastilho de pólvora. A velha máxima das esquerdas, “socialismo ou barbárie” está às nossas portas, mas com uma funesta constatação, a saber, onde está o socialismo das esquerdas? Isso revela uma dramática condição, o capital está em um declínio não virtual nem contingencial, está em franca decadência, que se torna uma perspectiva definitiva. Por outro lado, uma forma de organização social, que está reagindo com toda a violência (e isto não parece ser reconhecido nem mesmo pelas esquerdas e suas vanguardas) são as religiões, com seu discurso messiânico, apocalíptico e insurrecional. As religiões poderão responder com a violência que lhes é característica, nas variações regionais conforme a cultura e o lugar social em que se encontram. Ora com ações de violência total, ora como discurso de re-fortalecimento do próprio capital e sua consequente sociabilidade. Os conflitos que explodem escondem um sintoma de uma causa comum – o capital. No entanto, o que emerge como mais o trágico é a constatação, feita por alguns de modo claro, da falta de um projeto articulado por parte das esquerdas. Somos muitos e fragmentados, e parece que continuaremos assim. E dessa forma, o capital entra em colapso e leva à barbárie a humanidade. Estamos imersos no obscurantismo! Estamos à deriva? A sociedade mundial não tocou no modo de produção capitalista, procurou criar condições para uma justiça distributivista – o capital é dado como certo e irrevogável. Esse mundo está muito perigoso para termos uma esperança. Talvez o fim do caminho esteja próximo! Um projeto mundial está longe de se tornar ao menos uma parca esperança, a centelha da vida que ilumina a sociedade.