sexta-feira, 3 de junho de 2011

A farsa da academia

Atanásio Mykonios


Um ensaio a respeito das relações acadêmicas no Brasil. Seria isto possível, elaborar uma crítica contundente sobre as mazelas da academia brasileira sem temer as represálias que advirão como forma de patrulhamento ideológico?

Mesmo assim, me parece que o risco deve ser assumido. A burocratização da universidade pública brasileira teve um efeito devastador na sua organização. Apesar d ter havido um controle de ferro nos anos da ditadura militar, o fato é que isto parece ter criado um hiato que favoreceu uma burocracia feudalista, que teve como consequência mais nefasta a criação de nichos de controle por parte das hostes docentes.

A história das lutas pela justiça, pelas liberdades de expressão e autonomia da universidade, deu lugar a uma plêiade de administradores denominados gestores da coisa pública. Mas isto ainda não é o mais grave.

A ciência administrativa não teve início na técnica de gerenciamento do Estado, foi este o último bastião a sofrer as influências históricas do controle da produção de mercadorias.

Mas, ao longo do século XX, a ideia de uma universidade autônoma e emancipada, capaz de refletir criticamente os destinos sociais foi, progressivamente, superada pelo pragmatismo da ciência a serviçal do processo capitalista. E não haveria outro caminho, uma vez que a ciência só foi capaz de expandir suas fronteiras por conta da expansão calculada do valor. A mercadoria pagou à ciência-mercadoria a sua qualificação histórica.

A velha e boa intenção acadêmica de transformar os indivíduos em cidadãos melhores e capazes, hoje é uma versão de algo que parece uma farsa social.

Talvez, o que podemos fazer, de alguma forma, é reconhecer certa ingenuidade que nos moveu por longos anos, de nutrir a crença de que a universidade seria um núcleo de resistência e honestidade intelectual. Não deixa de ser um nicho fundamental, cada vez menos influente e mais e mais arrogante.

Para além dos muros da universidade não há vida intelectual. Ela é um templo científico, todos acorrem à ciência para moldar o comportamento social. Pedagogicamente, os cientistas são consultados para melhor orientar a vida cotidiana, o que fazer, como fazer, o que comer, o que vestir, como se portar e reagir às adversidades sociais. A ciência nos dá a nova virtude social.

Este templo reduz a liturgia do processo do conhecimento a uma série de regras tecnocráticas que favorecem as estruturas de poder. Ironicamente, os governos militares favoreceram os núcleos de interesses de grupos na academia.

Entre nós, algumas gerações foram formadas numa espécie de vácuo das lutas sociais da universidade, exatamente naquele período em que a repressão assumiu um caráter decisivo para a emergência dessas gerações, formando-as na ideologia mais acabada do capitalismo absoluto e total. Não obstante a pretensa manutenção da qualidade do ensino público, das condições de excelência do ensino, a mentalidade produtivista ganhou as cátedras por meio de políticas que pressionaram a expressão do conhecimento em catapulta do capitalismo tardio.

Os modelos científico-tecnológicos promovidos pela lógica da forma-mercadoria impulsionaram as descobertas e a articulação dos conhecimentos em grandes transformações dos processos de produção. As pesquisas se voltam para atender mercados e a indústria, nada mais conveniente e seguro, destina os recursos à produção cada vez mais acelerada de mercadorias e as teorias gestadas servem a este fim. Mais tarde, migram para o interior das salas de aula e especialmente para os laboratórios.

No entanto, mesmo que muitos continuem a acreditar piamente que seu esforço acadêmico deve ser registrado como um exemplo de abnegação e apostolado, em favor da grande missão de salvamento dos ignorantes, a verdade parece ser bem outra.

A velocidade com que os conteúdos são transmitidos na universidade demonstram a sua obsolescência. Mas isto não quer dizer que se a academia atingisse um grau de eficiência na transmissão dos conhecimentos necessários e o fizesse em tempo recorde, não alteraria o cenário no qual a universidade está definitivamente metida.

O mercado pode, hoje, em muitos aspectos, pagar por conta própria para a formação de seus trabalhadores. Os cursos de aperfeiçoamento, em grande escala, não precisam da academia, atuam em paralelo e com mais eficiência.

Os avanços no know-how não estão, como se imagina, no interior dos laboratórios acadêmicos. A velocidade das descobertas faz com que mais e mais nos convençamos de que o mercado trafega com mais desenvoltura que os mecanismos de pesquisa universitários.

A não ser aqueles grupos que estão perfeitamente sintonizados com as vontades dos produtores de mercadorias, os demais se sentem absolutamente defasados. Neste sentido, percebe-se que os conhecimentos adquiridos nos bancos acadêmicos, especialmente no âmbito das profissões técnico-exatas, são pouco utilizados na prática dos exercícios profissionais.

Por outro lado, as demais áreas do conhecimento, notadamente as humanas, se sentem relegadas a um nível de concessão de espaços. Muitos, por conseguinte, aproveitam o ostracismo e criam suas próprias condições de trabalho, atuando com o propósito de favorecer um grupo seleto, que ingressa na universidade e progride sob a proteção das elites acadêmicas, criando, de um modo perverso, uma espécie de caixa-preta dos programas de pesquisa, em favorecimento daqueles que continuarão os projetos e destinando o favorecimento de recursos aos que trafegam sem qualquer constrangimento por entre os meandros da burocracia docente. Uma reserva de mercado que tem o verniz do discurso social das ciências humanas, politicamente correto.

Uma pesquisa superficial com profissionais de várias áreas demonstra que muito rapidamente as bases de conhecimento são deixadas de lado ou nem são utilizadas. Os jovens assumem diversas profissões, além de vários empregos. Podemos dizer que cada profissão exige tarefas diferenciadas.

Os processos tecnológicos assumem o papel de direcionar a produção e articular os conhecimentos necessários. Tem-se, então, a impressão de que agora, como em um passe de mágica, a humanidade descobre uma nova janela do saber – a interdisciplinaridade. O mercado quer, o homem sonha e a universidade obedece.

Isto se deve não à compreensão iluminada dos pedagogos, mas à pressão utilitária e pragmática dos processos de produção que sempre visam ao aumento da produtividade e da competitividade.

E de uma forma desesperada, os sacerdotes da educação, os gestores e os beatos da pedagogia, veem sua honra deflagrada pela nova ordem social. A universidade se torna e continuará, por um bom tempo, a alavanca social, mas o modelo de ensino e aprendizagem está definitivamente em crise. Mais claramente, o mercado não prescinde tanto mais dos conhecimentos que a academia oferece.

Isto parece indicar, de algum modo, que os bancos escolares e acadêmicos servem para criar um ambiente socializante, articulado em torno de determinadas ideologias, adestramento social necessário para que o projeto de civilização não seja colapsado definitivamente.

Continuará a farsa do discurso em favor da lisura e autonomia universitárias, a estrutura carcomida, as exigências da produção intelectual, as condições precárias de trabalho. Porém, ainda assim, a universidade pública está no horizonte onírico dos que desejam nela ingressar e daqueles que imaginam que ali poderão planejar a compra de novas propriedades ao longo prazo.

Assim como destaquei em meu texto As gavetas do mundo real: os discursos fragmentados, o discurso da academia está engavetado, serve para aplainar as consciências nos quadrantes da sala de aula e nos corredores e para criar um torpor relativo às condições de inutilidade a que está submetida, talvez pela indiferença racional da sociedade que encontrou a via de escape contra o pensamento – a mortificação pela mercadoria.

De qualquer forma, as pressões da sociedade atual não nos mostram que ela esteja preocupada com os destinos intelectuais da universidade. Ao contrário, quanto menos crítica for a instituição, melhor para a produção da exuberância social da mercadoria.

Na universidade onde atuo, a aridez da reflexão e as expectativas para o cumprimento de metas pragmaticamente estabelecidas é a realidade absoluta. Nas reuniões ordinárias em todas as instâncias nada mais importa a não ser a execução das tarefas e o cumprimento das metas.

O Estado brasileiro exige desempenho, chantagem é uma prática corriqueira, mas, de que forma isto ocorre? A coerção ocorre tendo como moeda de troca os recursos à disposição. Mais uma vez, o cerne da questão está na forma como o capitalismo age sobre suas próprias instituições, coagindo-as na medida exata dos interesses e das trocas necessárias.

Para isto, o modelo adotado parece-me esbarrar na utopia coreana. Colocar todos na escola e formá-los tecnologicamente. A velha e boa intenção sindical de fornecer formação técnica para que os trabalhadores tenham condições de enfrentar os desafios tecnológicos.

Como bons tarefeiros, exercemos ordinária e exemplarmente nossa função alienada, de docentes que têm na burocracia e no tecnicismo as orientações para a realização da universidade. Mesmo uma universidade nova não foge a este padrão de conduta.

Poucos, ou quase ninguém, se dá conta de que o contexto atual se deve a um processo social, político e especialmente o fato do esmagamento das estruturas de pensamento em favor da produção social das mercadorias. A aridez com que a reflexão ocorre nos dá a nítida impressão de que estamos em um jogo macabro, em que a farsa se torna realidade e verdade absoluta.


Com que avidez os docentes encaram sua atividade acadêmica, criando mecanismos perversos de destruição dos seus supostos oponentes! Se os alunos tivessem conhecimento às barbaridades que o meio acadêmico costuma promover, ficariam estarrecidos. Certamente, não mudaria a perspectiva da academia. E por quê?

Porque o mercado está acima dessas pendengas. O pedantismo da honestidade intelectual não será mais capaz de alterar a realidade de uma premissa inquestionável: a forma-mercadoria e a produção de valor norteiam a formação dos indivíduos, independentemente de sua orientação social. Não passaria de mais um detalhe, o que importa, definitivamente é alcançar o objetivo absoluto, por isso, toda forma de sodomia não afetará a concepção dos estudantes, pois também querem ser sodomizados.


3 comentários:

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  2. Black Block disse...

    Caraca Grego, cada vez mais eu sinto asco do meio acadêmico. Imagino você que convive e, como descreveu, precisa cumprir metas nesse ambiente. É foda. Estou há um mês na PUC e já me sinto enojado com a postura dos professores. Dentro do templo se fala de tudo, inclusive contra o capitalismo, mas do lado de fora, exceto o José Arbex e outras raríssimas exceções, ninguém atua em nada. O conhecimento é visto apenas como algo instrumental, desse modo, algumas teorias 'perigosas'são abordadas, mas 'amansadas'.
    É inevitável não lembrar da delinquência acadêmica do Tragtenberg, é exatamente isso: a academia está a serviço do capital, de várias formas diferentes, até mesmo os 'cursos críticos'.
    Abração
    Ótimo artigo!
    Coveiro

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  3. Nas universidades brasileiras, há um desestímulo gritante por parte dos professores quanto aos avanços em todas as áreas da ciência e, sobretudo, perpassam com vontade esse marasmo aos alunos.

    1) Conseguem negligenciar potencial de ótimos alunos e motivam em impor barreiras burocráticas e políticas sobre eles;
    2) Fazem concessões torpes, mesmo dentro da lei, mas contra a moral científica, para que alunos não capacitados subam num curso que não estão qualificados;
    3) Trabalham arduamente para campanhas eleitorais e focam para cargos políticos dentro da universidade;
    4) Fiquei meses sem ser cobrado, e provavelmente terminarei a minha dissertação sem essa mesma cobrança;
    5) São poucos os professores que tem um grupo de pesquisa, e quando têm, passam todo o cargo de inovação para os alunos, e dificilmente conseguem apresentar alguma contribuição para os trabalhos;
    6) São professores dependentes em trabalhos científicos com outros professores e alunos, e exigem a independência que não têm aos alunos, que ainda não estão preparados;
    7) Os alunos não apresentam qualificações técnicas para exercer a parte acadêmica no futuro. Grande parte porque se permite escolher por outras vias o exercício da função, em destaque por relações politiqueiras.

    Honestamente, em todos os anos que estive na universidade, jamais vi alguém sair daí verdadeiramente motivado a mudar esse cenário que é comum em toda a academia no Brasil. Os alunos que não se adéquam ao sistema politiqueiro criado pelos próprios docentes são psicologicamente abalados por mentiras, fofocas, intrigas e indiferença por parte de professores e seus “protegidos”.

    Eles são docentes ou simplesmente funcionários públicos? Pois se forem ou procuram ser o segundo, assumam e deixem quem quer dar ciência fazer ciência. Faria um bem para a sociedade e estressaria menos os próprios docentes. Não vejo o porquê continuar a lidar com uma coisa tão séria como a graduação e a pós-graduação com tamanha mesquinhez e falta de humildade. Eles acabam com suas vidas ao não saberem o querem de fato com o seu trabalho na universidade, além da remuneração e o status quo entre vocês.

    Por fim, há uma manipulação e controle baseados na compensação de favores entre professores e discentes “protegidos”, escancarada, em atitudes que vão contra a ética acadêmica, cujos critérios são obscuros e, mesmo passíveis de processos, continuam a serem feitas.

    Fiquei estarrecido com tudo que vi na universidade. Tentei mudar junto com alguns alunos, mas ficamos isolados, já que a alienação é grande. Como mudar? Criar um grupo de denúnicas?

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