quarta-feira, 29 de junho de 2011

Por que estamos mais pobres

Atanásio Mykonios



Ora, pode parecer estranho, mas mesmo com toda a abundância e a produção em escala gigantesca e mundializada, estamos mais pobres e muito mais explorados pelo capital.
Isto foi previsto no século XIX, em paralelo a Marx, outros pensadores já observavam a tendência do sistema em aumentar a exploração à medida que não mais prescindia de trabalhadores em quantidade. Isto significa dizer que a exclusão do mercado principal do capitalismo, que é o trabalho, não exclui os trabalhadores da própria exploração, ao contrário, suga-os para dentro do sistema e a ordem primordial é que a exploração se torna relativa e mais perversa.
Jean-Charles-Léobnard de Sismondi, foi um economista e historiador suíço, morto de 1842, que influenciou Marx e outros pensadores posteriormente. Ele observou que o aumento da tecnologia, inevitavelmente levava a um aumento real da produção – algo que hoje é uma redundância, o que implica a necessidade de ampliar o escoamento das mercadorias. É possível encontrar qualquer bugiganga na porta de qualquer banheiro público. Mas isto não ocorre sem submeter ao mercado toda forma social, indo para além das fronteiras estabelecidas – é preciso colonizar a face da Terra e as suas profundezas. Com isso, todos se tornam subsumidos ao modo de produção que se expande interminavelmente. 
No início do capitalismo industrial, isso se dava pelo aumento do tempo de trabalho e pela espetacular diminuição dos salários para competir com a concorrência. A exploração selvagem submetia os trabalhadores em uma infindável jornada de tarefas, a especialização não era tão necessária.
Quanto mais se torna sofisticado o processo produtivo, a ciência qualifica o conhecimento, ao mesmo tempo em que o fragmenta. São necessários novos saberes a fim de cumprir o complexo social das tarefas do trabalho. As profissões se multiplicam juntamente com as exigências e os serviços.
Mas atualmente, esse processo não precisa da massa qualificada de trabalhadores e sim de consumidores, mesmo que a tecnologia e a diminuição do valor-trabalho seja um componente fundamental para vencer a concorrência. Um pequeno número será suficiente no futuro para mover a máquina capitalista.
Enquanto as empresas têm um rosto marcado pela sua identidade – a marca, o nome, a imagem – a massa de despossuídos não tem rosto, todos que fazem parte dela não passam de números formalizados nas listas oficiais. Permanecem, no entanto, presos à necessidade de sobreviverem no contexto do mercado, e se tornam mendicantes das migalhas que o sistema espalha com sua indiferença generalizada.
A crueldade desta forma social reside no fato de que há dois elementos que substanciam a dependência na exploração. De um lado a força da tecnologia que abrange a totalidade dos modos de produção e quanto mais sofisticado torna-se o processo, maior o grau de exploração sobre a especialização dos trabalhadores que passam a ser sugados ininterruptamente. Seu corpo, seu cérebro sua mente e seus conteúdos morais passam a ser dominados por um inquilino mordaz e efetivo, uma espécie de sanguessuga permanente. Não é mais uma exploração datada, ela deixa de ser temporal para ser onipresente.
Trabalhadores com competências multidisciplinares atuam aparentemente com maior desenvoltura, são tratados como maior reverência social, têm acesso ao emprego remunerado, mas são cada vez mais explorados, diríamos, sugados diuturnamente. Seu valor no mercado está relacionado à capacidade de produzir mais valor em menos tempo. Estes trabalhadores cada vez com formação com propriedades acima da média assumem a condução formal do sistema, mas a maioria, ainda, não tem poder decisório, apenas os gestores e administradores. Esta espécie de nova classe gestora garante a liturgia do processo e a aparente da acumulação.
Juntamente com esta condição, ao atingir o seu ápice, o capital estende a exploração para o âmbito da dependência, uma vez que mesmo na exclusão, não há outra forma de lidar com a sobrevivência que não seja a dura realidade de manter-se preso às relações de troca.
Significa pensar que a massa dos desempregados não se liberta do mundo das dependências sociais e das necessidades materiais impostas pela relação da troca do valor. Desempregados ou não, estamos presos, atados a esta forma histórica de relação humana.
Como disse Marx, em uma profética visão, o dinheiro é a máxima social que sustenta todas as formas de vida no capitalismo. O dinheiro é apenas a expressão de um equivalente necessário que faz a mediação entre o valor-trabalho e as mercadorias.
Seria o caso de as massas cada vez mais despossuídas romperem as amarras dessa dependência e encontrarem novas formas de vida, mas isto fica nebuloso em um horizonte distante, pois contrariamente a este determinismo social, os que permanecem no sistema, trocando sua força de trabalho pelo tempo excedente da exploração, não se dão conta de que não podem mais sair. E os que estão à deriva, lutam para serem explorados sem o saber.
Empobrecidos cada vez mais com a ilusão de ótica provocada pela imensidão de produtos que invadem o cotidiano e, também, pela impressão de que há um ambiente favorável promovido pelo progresso material em escala planetária. Este ambiente, por mais que nos ofereça o acesso a uma existência planificada, baseado no conforto, na informação, na velocidade das operações tecnológicas, há um empobrecimento gradativo, mas não visível.
A exploração não aumenta simplesmente porque as massas não podem consumir conforme as promessas do sistema, aumenta progressivamente porque se torna evidente a dependência.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

O Jogo

Atanásio Mykonios



A necessidade humana ultrapassa as condições puramente materiais e fisiológicas. Toda necessidade só se torna possível porque o ser humano está na natureza. Sua relação com esta e sua aproximação só ocorre porque a necessidade delimita a realidade, submete o homem, uma vez que ele é substancialmente um ser insuficiente desde seu nascimento até sua morte.
Nossas culturas também desenvolveram necessidades simbólicas e outras de caráter espiritual. A complexidade social amplia os horizontes das necessidades, mas, ao viver no império do Eu, não conseguimos identificar quais são nossas reais necessidades. A ordem social nos coloca no pressuposto de que há que satisfazer nossas prioridades, no âmbito das possibilidades que não são dadas, mas vendidas.
Isto não quer dizer que saibamos quais devem ser nossas próprias prioridades e parece, de alguma forma, que estas estão em nosso horizonte individual. Uma educação para a compreensão das necessidades está fora de cogitação no âmbito das estruturas coletivas. Para isto, nossas culturas passaram a acreditar que uma consciência madura poderia dar a responsabilidade para compreender e saber quais as necessidades que de fato importam.
Daí, a partir de um determinado período de nossa história, muitos acreditaram que o ser humano seria portador de uma espécie de consciência elevada, que o colocaria no topo da cadeia animal, o diferenciaria sob os aspectos da sua memória, da consciência, do pensamento, da sua transcendência. A centralidade da natureza seria o homem, sua condição privilegiada, suas prerrogativas e especificidades. Algo nele o tornara absolutamente especial, além das contas da natureza, incomum. Para outros, o ser humano não passa de uma mutação genética, um acidente, cuja consciência nada mais é do que o ponto de diferença no qual tenta se distanciar da natureza e que, tragicamente, não consegue superá-la.
O sonho de ir além da natureza esbarrou na impossibilidade de lutar permanentemente contra a própria natureza. Todo idealismo absoluto vive a esquizofrenia de ser impulsionado pela força da ideia separa de modo absoluto das condições materiais. A necessidade da consciência de atravessar os liames da coisa material, de seus limites absurdos, humilha a forma humana, é mais acachapante a sua realidade.
Não que seja desnecessária aquela realidade liberta das condições materiais. Ao contrário, trata-se aqui de reconhecer o movimento entre o mundo das materialidades e a realidade liberta. É disto que estamos tratando – de um movimento entre as duas formas. Privilegiar uma delas seria uma ingenuidade e para radicalizar a crítica, uma ilusão absoluta. Afinal, não somos abelhas, cupins ou formigas. Há em nós este elemento que permanece, como uma presença n presença material – a consciência.
Há constante conflito e convergência entre as duas realidades e, de tal forma que o concreto e o abstrato, em determinados aspectos e contextos, confundem-se, mas há que saber que entre ambos deve ser dada a condição para que se distingam e se confrontem quando for necessário. Jamais haverá a destruição de uma realidade em favor da outra, nunca viveremos o império do abstrato ou do concreto.
Satisfazer sonhos não é a mesma coisa que satisfazer necessidades materiais imediatas. Os sonhos das necessidades materiais podem se confundir com a perspectiva de sua realização, mas permanecerão sonhos quando seu objetivo ocorrer.
O sonho da sociedade que produz mercadorias é expandir sua capacidade de aplicar aos indivíduos a formalidade dos objetos materializados. A satisfação não reduz a capacidade de criar novos sonhos e a ação de sonhar é tão potente quanto uma bomba de efeito nuclear. Mas é próprio da natureza do jogo fazer com que o sonho primordial  seja o de que conceber a existência a partir do jogo e não fora deste.
O que podemos observar no cotidiano é a impressionante satisfação dos indivíduos. A satisfação pela vida social que possuem, a imensa capacidade de perpetuar a estupidez de uma sociedade organizada para travar os seres humanos, esmagá-los e, mesmo assim, criar a consciência reificada do mundo que pode nos dar tudo.  Estão satisfeitos por estarem no interior do jogo e quando se sentem frustrados é porque não foram competentes o suficiente para encontrarem, no interior do jogo, as formas pelas quais poderiam se manter nele sem serem excluídos.
Por outro lado, há os que gostariam que o jogo fosse mais equilibrado ou menos “injusto”. Suas regras principais por mais que sejam questionadas, permanecem. Mas há um desequilíbrio nessa realidade. Se o jogo é feito para que uma parte se mantenha jogando e outra esteja como espectadora, não é possível que todos assumam os mesmos papéis. No entanto, todos acreditam que isto pode acontecer e suas lutas intestinas servem apenas para conduzir o jogo sempre para o mesmo ponto – início e fim são a mesma coisa.
Chega-se a um ponto em que o jogo continua por si mesmo e parece não mais depender dos jogadores. Eles podem ser substituídos, eliminados, arrancados à força, serem submetidos a toda espécie de adestramento. Desde muito cedo, todos são treinados para o jogo. O fato é que o jogo está acima das vontades pessoais e das coletividades. A sociedade está satisfeita com o jogo, tanto que as regras não mudaram desde que foi instituído há mais de 250 anos.
Satisfazer necessidades implícitas à condição em que se encontram os indivíduos não é a mesma coisa do que viverem insatisfeitos com o jogo. São duas perspectivas diferentes. O que ocorreu no percurso histórico é que ambas as necessidades convergiram pelo processo de transformação tautológica do próprio jogo.
Em outras palavras, as necessidades do jogo se tornaram as necessidades dos jogadores. É por esta razão que não encontramos, nos indivíduos e nas instituições, uma consciência necessária de insatisfação quanto o jogo, contra este, porque ele adquire sua própria personalidade, seu caráter efetivo, ele se faz por si mesmo. Não é apenas um jogo que pode ser desfrutado numa tarde de lazer, é a efetivação de que suas regras assumem a condução real da vida.
O jogo some das consciências individuais, adquire um caráter de invisibilidade, tão espontâneo ele se faz para a vida, que sua justificação praticamente beira à mitologia. É o mito transfigurado, restituído como segunda natureza em que os seres humanos são destituídos de sua consciência ou, como alguns sonharam, de sua emancipação, para reduzirem-se a uma difusa massa corpórea que se move para fazer o jogo continuar.
Mas se o jogo perde sentido ou se deixa de cumprir com sua lógica, isto não afeta decisivamente os jogadores. Eles continuam a jogá-lo, movidos por uma ordem que está naturalizada na consciência e no corpo. É a ordem que manda jogar em qualquer circunstância, o jogo deve ser jogado. A única verdade, unívoca, instantânea e movente e a força que o jogo adquiriu após dois séculos e meio de sua criação.
Desta forma, a única insatisfação que tem lugar na condição dos jogadores é a de não conseguirem jogar o jogo ou, mais objetivamente, não poderem ganhá-lo para si mesmos. Mas o que isto quer dizer? Ganhar o jogo não significa possuí-lo definitivamente. De modo contrário, o jogo não tem um dono.
Todos se dirigem ao jogo. Os que esperam entrar nele, os que não conseguem, os que têm vontade mais não sabem como fazê-lo. Hás os que ficam impacientes, com muita sede, não entendem o que ocorre. E também aqueles que ficam nas imediações do jogo e sabem que não poderão entrar, mas vivem das migalhas dos espectadores.
Isto é ainda mais interessante, na medida em que todos se sentem donos de seu próprio destino, imaginando que têm, também, a condição de determinar os rumos do jogo, sair e entrar em campo quando lhes aprouver ou ditar suas próprias regras na doce ilusão de que não são afetados pelo jogo na sua integralidade.
Não importa se o jogo tem ou não qualquer sentido, basta que os jogadores permaneçam em seus lugares, apostos para assumirem uma posição no quadro geral. Poderão ser substituídos, e o são continuamente, mas isto não importa - tudo deve prosseguir. Importa, em última instância, que tenha sua linguagem própria e que possa ser absorvida por todos os jogadores e, de fato, o é, à medida que todos conhecem as regras sem pestanejar.
Assim, é possível compreender o quão poderoso o jogo é sobre a consciência, relativizando o próprio jogo, reduzindo-o a um mero estado espiritual cujo alcance é a realização das propriedades subjetivas dos seus jogadores.
O que não é possível perceber que não passa de um jogo de azar.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

A farsa da academia

Atanásio Mykonios


Um ensaio a respeito das relações acadêmicas no Brasil. Seria isto possível, elaborar uma crítica contundente sobre as mazelas da academia brasileira sem temer as represálias que advirão como forma de patrulhamento ideológico?

Mesmo assim, me parece que o risco deve ser assumido. A burocratização da universidade pública brasileira teve um efeito devastador na sua organização. Apesar d ter havido um controle de ferro nos anos da ditadura militar, o fato é que isto parece ter criado um hiato que favoreceu uma burocracia feudalista, que teve como consequência mais nefasta a criação de nichos de controle por parte das hostes docentes.

A história das lutas pela justiça, pelas liberdades de expressão e autonomia da universidade, deu lugar a uma plêiade de administradores denominados gestores da coisa pública. Mas isto ainda não é o mais grave.

A ciência administrativa não teve início na técnica de gerenciamento do Estado, foi este o último bastião a sofrer as influências históricas do controle da produção de mercadorias.

Mas, ao longo do século XX, a ideia de uma universidade autônoma e emancipada, capaz de refletir criticamente os destinos sociais foi, progressivamente, superada pelo pragmatismo da ciência a serviçal do processo capitalista. E não haveria outro caminho, uma vez que a ciência só foi capaz de expandir suas fronteiras por conta da expansão calculada do valor. A mercadoria pagou à ciência-mercadoria a sua qualificação histórica.

A velha e boa intenção acadêmica de transformar os indivíduos em cidadãos melhores e capazes, hoje é uma versão de algo que parece uma farsa social.

Talvez, o que podemos fazer, de alguma forma, é reconhecer certa ingenuidade que nos moveu por longos anos, de nutrir a crença de que a universidade seria um núcleo de resistência e honestidade intelectual. Não deixa de ser um nicho fundamental, cada vez menos influente e mais e mais arrogante.

Para além dos muros da universidade não há vida intelectual. Ela é um templo científico, todos acorrem à ciência para moldar o comportamento social. Pedagogicamente, os cientistas são consultados para melhor orientar a vida cotidiana, o que fazer, como fazer, o que comer, o que vestir, como se portar e reagir às adversidades sociais. A ciência nos dá a nova virtude social.

Este templo reduz a liturgia do processo do conhecimento a uma série de regras tecnocráticas que favorecem as estruturas de poder. Ironicamente, os governos militares favoreceram os núcleos de interesses de grupos na academia.

Entre nós, algumas gerações foram formadas numa espécie de vácuo das lutas sociais da universidade, exatamente naquele período em que a repressão assumiu um caráter decisivo para a emergência dessas gerações, formando-as na ideologia mais acabada do capitalismo absoluto e total. Não obstante a pretensa manutenção da qualidade do ensino público, das condições de excelência do ensino, a mentalidade produtivista ganhou as cátedras por meio de políticas que pressionaram a expressão do conhecimento em catapulta do capitalismo tardio.

Os modelos científico-tecnológicos promovidos pela lógica da forma-mercadoria impulsionaram as descobertas e a articulação dos conhecimentos em grandes transformações dos processos de produção. As pesquisas se voltam para atender mercados e a indústria, nada mais conveniente e seguro, destina os recursos à produção cada vez mais acelerada de mercadorias e as teorias gestadas servem a este fim. Mais tarde, migram para o interior das salas de aula e especialmente para os laboratórios.

No entanto, mesmo que muitos continuem a acreditar piamente que seu esforço acadêmico deve ser registrado como um exemplo de abnegação e apostolado, em favor da grande missão de salvamento dos ignorantes, a verdade parece ser bem outra.

A velocidade com que os conteúdos são transmitidos na universidade demonstram a sua obsolescência. Mas isto não quer dizer que se a academia atingisse um grau de eficiência na transmissão dos conhecimentos necessários e o fizesse em tempo recorde, não alteraria o cenário no qual a universidade está definitivamente metida.

O mercado pode, hoje, em muitos aspectos, pagar por conta própria para a formação de seus trabalhadores. Os cursos de aperfeiçoamento, em grande escala, não precisam da academia, atuam em paralelo e com mais eficiência.

Os avanços no know-how não estão, como se imagina, no interior dos laboratórios acadêmicos. A velocidade das descobertas faz com que mais e mais nos convençamos de que o mercado trafega com mais desenvoltura que os mecanismos de pesquisa universitários.

A não ser aqueles grupos que estão perfeitamente sintonizados com as vontades dos produtores de mercadorias, os demais se sentem absolutamente defasados. Neste sentido, percebe-se que os conhecimentos adquiridos nos bancos acadêmicos, especialmente no âmbito das profissões técnico-exatas, são pouco utilizados na prática dos exercícios profissionais.

Por outro lado, as demais áreas do conhecimento, notadamente as humanas, se sentem relegadas a um nível de concessão de espaços. Muitos, por conseguinte, aproveitam o ostracismo e criam suas próprias condições de trabalho, atuando com o propósito de favorecer um grupo seleto, que ingressa na universidade e progride sob a proteção das elites acadêmicas, criando, de um modo perverso, uma espécie de caixa-preta dos programas de pesquisa, em favorecimento daqueles que continuarão os projetos e destinando o favorecimento de recursos aos que trafegam sem qualquer constrangimento por entre os meandros da burocracia docente. Uma reserva de mercado que tem o verniz do discurso social das ciências humanas, politicamente correto.

Uma pesquisa superficial com profissionais de várias áreas demonstra que muito rapidamente as bases de conhecimento são deixadas de lado ou nem são utilizadas. Os jovens assumem diversas profissões, além de vários empregos. Podemos dizer que cada profissão exige tarefas diferenciadas.

Os processos tecnológicos assumem o papel de direcionar a produção e articular os conhecimentos necessários. Tem-se, então, a impressão de que agora, como em um passe de mágica, a humanidade descobre uma nova janela do saber – a interdisciplinaridade. O mercado quer, o homem sonha e a universidade obedece.

Isto se deve não à compreensão iluminada dos pedagogos, mas à pressão utilitária e pragmática dos processos de produção que sempre visam ao aumento da produtividade e da competitividade.

E de uma forma desesperada, os sacerdotes da educação, os gestores e os beatos da pedagogia, veem sua honra deflagrada pela nova ordem social. A universidade se torna e continuará, por um bom tempo, a alavanca social, mas o modelo de ensino e aprendizagem está definitivamente em crise. Mais claramente, o mercado não prescinde tanto mais dos conhecimentos que a academia oferece.

Isto parece indicar, de algum modo, que os bancos escolares e acadêmicos servem para criar um ambiente socializante, articulado em torno de determinadas ideologias, adestramento social necessário para que o projeto de civilização não seja colapsado definitivamente.

Continuará a farsa do discurso em favor da lisura e autonomia universitárias, a estrutura carcomida, as exigências da produção intelectual, as condições precárias de trabalho. Porém, ainda assim, a universidade pública está no horizonte onírico dos que desejam nela ingressar e daqueles que imaginam que ali poderão planejar a compra de novas propriedades ao longo prazo.

Assim como destaquei em meu texto As gavetas do mundo real: os discursos fragmentados, o discurso da academia está engavetado, serve para aplainar as consciências nos quadrantes da sala de aula e nos corredores e para criar um torpor relativo às condições de inutilidade a que está submetida, talvez pela indiferença racional da sociedade que encontrou a via de escape contra o pensamento – a mortificação pela mercadoria.

De qualquer forma, as pressões da sociedade atual não nos mostram que ela esteja preocupada com os destinos intelectuais da universidade. Ao contrário, quanto menos crítica for a instituição, melhor para a produção da exuberância social da mercadoria.

Na universidade onde atuo, a aridez da reflexão e as expectativas para o cumprimento de metas pragmaticamente estabelecidas é a realidade absoluta. Nas reuniões ordinárias em todas as instâncias nada mais importa a não ser a execução das tarefas e o cumprimento das metas.

O Estado brasileiro exige desempenho, chantagem é uma prática corriqueira, mas, de que forma isto ocorre? A coerção ocorre tendo como moeda de troca os recursos à disposição. Mais uma vez, o cerne da questão está na forma como o capitalismo age sobre suas próprias instituições, coagindo-as na medida exata dos interesses e das trocas necessárias.

Para isto, o modelo adotado parece-me esbarrar na utopia coreana. Colocar todos na escola e formá-los tecnologicamente. A velha e boa intenção sindical de fornecer formação técnica para que os trabalhadores tenham condições de enfrentar os desafios tecnológicos.

Como bons tarefeiros, exercemos ordinária e exemplarmente nossa função alienada, de docentes que têm na burocracia e no tecnicismo as orientações para a realização da universidade. Mesmo uma universidade nova não foge a este padrão de conduta.

Poucos, ou quase ninguém, se dá conta de que o contexto atual se deve a um processo social, político e especialmente o fato do esmagamento das estruturas de pensamento em favor da produção social das mercadorias. A aridez com que a reflexão ocorre nos dá a nítida impressão de que estamos em um jogo macabro, em que a farsa se torna realidade e verdade absoluta.


Com que avidez os docentes encaram sua atividade acadêmica, criando mecanismos perversos de destruição dos seus supostos oponentes! Se os alunos tivessem conhecimento às barbaridades que o meio acadêmico costuma promover, ficariam estarrecidos. Certamente, não mudaria a perspectiva da academia. E por quê?

Porque o mercado está acima dessas pendengas. O pedantismo da honestidade intelectual não será mais capaz de alterar a realidade de uma premissa inquestionável: a forma-mercadoria e a produção de valor norteiam a formação dos indivíduos, independentemente de sua orientação social. Não passaria de mais um detalhe, o que importa, definitivamente é alcançar o objetivo absoluto, por isso, toda forma de sodomia não afetará a concepção dos estudantes, pois também querem ser sodomizados.