domingo, 1 de maio de 2011

A invisível forma-social. Ou para uma resposta acerca das dialéticas que não se tocam


Atanásio Mykonios

Resposta a amigo querido


Tentarei, mas não sei se terei competência para fazê-lo - elaborar uma resposta às considerações, mas será ampla.

A minha pesquisa no âmbito daquilo que denomino CRÍTICA DA NECESSIDADE, me levou a considerar que parece haver várias dialéticas que são submetidas e relacionadas, umas às outras, no interior do sistema produtor de mercadorias.

Neste sentido, tendo a assumir (confesso), minha veia hegeliana e marxiana. No Primeiro Capítulo de O Capital, a partir da segunda metade, Marx trata o valor na perspectiva dialética.

Na verdade, é o valor que se desdobra, efetivando sua condição. A substância do valor (e aqui a consideração é aristotélica), é o trabalho. A mercadoria, do ponto de vista material, é de fato a ponta final do processo, dialeticamente estabelecido pelo valor, como uma espécie de trajeto, cuja teleologia é a mercadoria.

Mas, aqui reside uma filigrana, às vezes de difícil compreensão, a saber, que a mercadoria não é necessiariamente o produto, mas a forma que estabelece uma relação. Por isso, Marx mesmo discute na ordem das formas (outro elemento aristotélico e hegeliano - interessante as ferramentas usadas por Marx). Uma forma social é algo imperceptível, ela se realiza cotidianamente, mas os indivíduos não compreendem a causa dessas relações, aqui ditas como formas sociais.

E mais, são formas que fogem ao controle efetivo dos indivíduos, eles não conseguem se desvencilhar dessa realidade, podem até compreendê-la, mas o esforço para superá-las prescinde um cabedal de compreensão acerca das causas desse mecanismo.

Então, a dialética do valor tem como fundamento o trabalho. Ao se desdobrar o valor, essa dialética "interna ao capitalismo" tem como perspectiva a forma-mercadoria. Não é exatamente a mercadoria apenas como a que satisfaz as necessidades. O trabalho que gera valor, do ponto de vista antropológico, haverá nele valor de uso, qualquer que seja (material, espiritual, simbólico, cultural, estético, etc.) Aqui observamos a concretude da atividade humana, como bem salientara Hanna Arendt acerca da totalidade dessa atividade no processo de formação humana.

Ora, a necessidade precípua, diz respeito ao modo como construímos nossa necessidade, carregada de história, cultura, trabalho. Ao longo da história das necessidades, havia como que uma relação mais realista neste sentido, como o trecho de Hegel, intitulado, O Artesão, que se encontra na Fenomenologia do Espírito, em que, ao produzir um objeto, este vincula-se à existência de quem o faz; há uma extensão do processo, e quando ele vê a coisa feita, sabe que ali há sua história, a tradição de sua família, de sua religião, do seu meio, dos materiais que vêm do seu lugar, sua região, os ensinamentos, etc.

Mas, com a mercadoria, as reais necessidades são maquiadas e, neste sentido, todas se tornam uma necessidade história. A mercaodia nos dá a impressão de que, a cada nova invenção científica, a cada nova mudança tecnológica, criamos a certeza de que sempre foi assim e mais, de que não há como abrir mão disto. É o mundo invertido, a sociedade das mercadorias nos impõe uma metafísica que forçosamente se torna real; enquanto que as reais necessidades são, a partir de então, consideradas metafisicas.

As necessidades assumem um caráter absolutamentge metafísico e por esta razão, assumem uma dialética social que se desprende da outra dialética, interna ao sistema.

E os mecanismos sociais para isto são interessantes e perversos. O trabalho se torna a viga mestra desse processo. A imperiosa ação em favor das mercadorias, nos dá a sensação de que somos premidos pelas possibilidades de realização do mundo social das mercadorias.

Aqui, me parece haver um problema. Porque as sociedades e grupamentos humanos, culturais, sempre tiveram desejos e necessidades. Aliás, sempre consumiram, o que é totalmente plausível, considerando a condição antropológica, biológica e social dos indivíduos e seus grupos. Evidentemente, a construção histórica do capitalismo foi, lentamente, elaborando a ideia do desejo de aquisição e de realização por meio das mercadorias. No início o valor absoluto estava no trabalho, em seguida, na pura mercadoria.

É o caso do marketing, da propaganda, do discurso da pureza das mercadorias, que servem para satisfazer necessidades fisiológicas e que são portadoras de uma função social – daí o trabalho ser, obrigatoriamente, no capitalismo, uma fonte de dignidade, pois o que fazemos com ele, é salvar o mundo e oferecer-lhe o melhor de nós para o melhor dos outros.

Esta é uma das contradições nesse processo. A mercadoria tem duas condições precípuas. Vamos a elas.

Para ser mercadoria, com sua condição de valor-de-troca, ela necessita ter, em sua origem, o valor-de-uso. Marx, ele mesmo, observou isto. Só é mercadoria porque carrega consigo o valor-de-uso, caso contrário, não poderia ser mercadoria e também porque, de um modo radical, creio que o capitalismo não teria a capacidade de se tornar hegemônico, tautológico e totalitário.

A imagem possível, se me permite, seria a seguinte: o núcleo é o valor-de-uso; a capa, ou a alma da mercadoria é o valor-de-troca. Aqui, reside mais uma das dialéticas desse mecanismo monstruoso. Pois o capitalismo, como sistema de gerenciamento da sociedade das mercadorias, vale-se dessa condição, e os indivíduos são obrigados a conviver com esta contradição. É quando somos mergulhados nesse processo e, com frequência, somos levados e obrigados a nos submeter a isto. Também pelo fato de que o Capitalismo nos diz que a relação das mercadorias se dá por meio do "desejo" ou da vontade "individual".

Daí penso, sinceramente, que há uma confusão nesta questão. Muitos, até mesmo da esquerda teórica, creem que isto se deve à perfídia dos indivíduos, que se trata de uma espécie de tara individualista, uma compulsão pelo consumo desenfreado, uma instabilidade psicológica, ou, um comportamento avarento, ou, como alguns dizem, um egoísmo apoteótico, prejudicando os pobres, porque não distribuímos.

Este equívoco se deve porque, nesse processo dialético, em que a relação social esconde a forma-valor e a forma-mercadoria, tende-se a culpabilizar os indivíduos, o que me parece uma perversidade. Fato que leva os próprios indivíduos a sustentarem psicológica e ideologicamente, uma culpa que os torna irresponsáveis ou simplesmente passivos.

Um comentário:

  1. O rigor crítico que este texto transmite destrói os edifícios pseudo-teóricos que se fundam nas idiossincrasias dos indivíduos. Bravo!!
    Mas podemos ir adiante, e perceber que o momento atual é da mercadoria, ié, do valor de troca, do "adeus ao valor de uso". O valor de troca tomou as rédeas do processo e, ao fazer isso, cria as necessidades nos pseudo-sujeitos para funcionar como mecanismo de expansão do capital.

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