domingo, 8 de maio de 2011

As gavetas do mundo real: os discursos fragmentados


Atanásio Mykonios

Eis aqui um problema de grande envergadura. Não se trata de uma percepção do mundo em sua totalidade. Estamos fragmentados em todas as direções. A produção humana parece se confundir com a própria especialização biológica. Nossas especificidades nos dão a amplitude de nossa fragmentação.
O que podemos dizer a respeito da sociedade? Dizer coisas dispersas sobre ela pode nos dar a certeza de que estamos com a verdade quanto à realidade social. Uma realidade pode ser, de um modo ou de outro, parcial aos nossos olhos. A realidade real, ou a realidade total pode ser esmagadora para cada um de nós, em nossa estupenda limitação, a consciência não seria capaz de abarcá-la por completo. Talvez esteja aí uma parcela de nossa isenção total, ou de uma espécie de ignorância a nos proteger dessa imensidão humilhante que nos oprime absolutamente.
Mas o conteúdo precípuo da Filosofia, em seu objeto, é a verdade. Pode não ser alguma coisa da qual nos é cara na atualidade, porém, Hegel nos mostra na Enciclopedia das Ciências Filosóficas, que “Em primeiro lugar, a Filosofia tem, de fato, seus objetos em comum com a religião. As duas têm a verdade por seu objeto...” (p. 39). Isto, na visão de Hegel, trata-se de uma fundamentação, digamos, absolutista no que tange à função da Filosofia. Sem dúvida, o trecho citado nos aponta para a necessidade da compreensão da totalidade.
É preciso enfrentar a dificuldade em lidar com a totalidade, destarte termos sido prevenidos por alguns pensadores, especialmente aqueles datados no século XIX. Hegel, Marx, Nietzsche, foram aquelas que nos alertaram para as formas de alienação que o Ocidente, em sua trajetória, teceu para a sua própria historia do pensamento e das formas sociais em que os indivíduos estavam enredados.
Muitos traçados foram feitos para identificar a natureza de nossa fragmentação. Os efeitos dessa pluralidade são interpretados por muitos. A diversidade cultural, o mundo das multiplicidades, o movimento intenso das informações, a velocidade tecnológica, o aparato científico em larga escala, a imagem que se transforma em conteúdo formal, a violência institucionalizada e, sobretudo, os fundamentalismos ideológicos e religiosos, são formas que nos marcam profundamente. Além disto, encontramos uma estupenda ereção da subjetividade, aspecto que nos impulsiona a compreender a representação do sujeito em sua suposta autonomia.
É possível que essas formas sejam tratadas de um modo evasivo, no refluxo das grandes tendências de análise. Também podemos estar nos enganando ou tentar encontrar uma resposta que caiba em todas as fechaduras, quiçá, uma chave que abra todas as portas do mundo real.
Foi assim com os grandes filósofos, que procuraram encontrar uma chave para o seu problema e foram tentados a acreditar que poderiam abrir todas as portas do céu, lendo os mistérios do inferno real que nos toma de assalto. Mas o Ocidente, por muitos séculos criou sistemas com o fito de enclausurar o real.  A potência do Eu e sua racionalidade culminou em episódios destrutivos para a humanidade como um todo. Os sistemas ganharam o estatuto de promover uma arquitetura social megalomaníaca.

Desde o Império Alexandrino, com sua característica unificadora, inspirando o Império Romano com suas hostes de poder e a condição nababesca de suas relações, passando pelo Medievo, que promoveu um sistema absoluto. Com a Modernidade, os sistemas ganharam uma aliada em potencial – a ciência. Mesmo assim, o Império da racionalidade instrumentalizou a realidade de modo que a ciência se tornara o braço dos novos sistemas, em busca da conversão do mundo à sua própria vontade.
Bastava, então, a culminância desse processo, historicamente realizado por meio de um sistema, talvez incidental, talvez determinista, que forçou a humanidade a se curvar peremptoriamente e de modo absoluto às suas determinações. Neste trajeto, o capitalismo galgou os estertores das formas sociais.
Tão relativo quanto objetivo, o capitalismo engavetou os discursos com todas as suas variáveis possíveis. É possível inferir um aspecto anterior, num esforço para compreender o fato do engavetamento dos discursos. Para que o capitalismo engendrasse uma estrutura compatível com tal engavetamento, parece crível afirmar que a Modernidade plantou algumas condições que dizem respeito à potencia do eu racional. Neste sentido, é possível observar que Descartes constrói um modelo matemático, espacial, capaz de criar as gavetas, que guardarão os discursos, autônomos da realidade das relações.  Ele nos diz então, no Discurso do método, a saber,

Depois, tendo notado que, para conhecê-las, teria algumas vezes necessidade de considerá-las cada qual em particular, e outras vezes somente de reter, ou de compreender, várias em conjunto, pensei que, para melhor considerá-las em particular, devia supô-las em linhas, porquanto não encontraria nada mais simples, nem que pudesse representar mais distintamente à minha imaginação e aos meus sentidos (...) cumpria que as designasse por alguns signos breves possíveis, e que, por esse meio, tomaria de empréstimos o melhor da Análise geométrica e da Álgebra (...) (Idem, Ibidem, p. 39-40)


E por que tudo isto? Para que seja dada à racionalidade a garantia de que terá êxito no seu empreendimento, um objetivo em busca de um objeto claro e distinto – existente, visto à frente do sujeito, de pé, claro, iluminado pela luz platônica. Utilizar a razão, mais do que qualquer outro artifício, até mesmo os mecanismos pré-conceituais, com a tentativa de chegar o mais possível às determinações do objeto, de modo claro, um método que parece ter elementos de fundamentação fenomenológica.
No entanto, a aproximar-se ao objeto não é o único intento dessa Modernidade, é mister observar que este objeto se encontra rigidamente estabelecido, em cujo invólucro guarda cada qual, em sua gaveta, discursos, pensamentos e comportamentos que não se cruzam. A vida é cindida desde então.

além disso, sentia, ao praticá-lo, que meu espírito se acostumava pouco a pouco a conceber mais nítida e distintamente seus objetos, e que, não o tendo submetido a qualquer matéria particular, prometia a mim mesmo aplicá-lo tão utilmente às dificuldades das outras ciências como o fizera com as da Álgebra. (Idem, p. 40)
           
A dificuldade parece se dissipar, na medida em que o sujeito pode, desde esse ponto, estabelecer a trajetória para abrir cada gaveta. O sujeito deve ter consciência de que é ele quem tem o poder de identificar cada gaveta com seu conteúdo precípuo.

E tendo notado que nada há no fato de que eu penso, logo existo, que me assegure de que digo a verdade, exceto que vejo muito claramente que, para pensar, é preciso existir, julguei poder tomar por regra geral que as coisas que concebemos mui clara e mui distintamente são todas verdadeiras, havendo apenas alguma dificuldade em notar bem quais são as que concebemos. (Ibidem, p. 47)

O pensamento que se torna a viga mestra da concepção e domínio do mundo, é o existente para as particularidades. As gavetas são criadas para que, a cada existência social, a cada instância do mundo, com suas particularidades, sejam a segurança dos indivíduos. A mecanicidade do pensamento revela a sua capacidade de identificar as gavetas e abri-las conforme o contexto exigente.
Em outras palavras, os discursos, guardados conforme as gavetas numeradas pelo cálculo matemático, são movimentados pelo sujeito, que objetivamente encontra o que certamente procura. Isto quer dizer que a cada ambiente portamos discursos respectivamente às suas exigências e demandas.
Há uma finalidade neste sentido, que é a de conceber o mundo em fragmentos, necessitando, portanto, comportamentos e discursos diversos conforme o modo pelo qual somos instados. No trabalho assumimos um modo de ser; na escola outro; com os amigos, outra forma; no culto, no meio público, na liberdade do privado, enfim, as linguagens se tornam cada vez mais complexas e, ao fim e ao cabo, não há relação entre estas, uma vez que se tratam de elementos cristalizados.
A fisionomia do mundo, desta forma, torna-se difusa, mais radicalmente, confusa. As éticas podem se misturar, mas absorvem os meios nos quais os indivíduos transitam. Conforme o modelo subjetivado das gavetas, isto é, de suas realidades respectivas. O cálculo espacial que Descartes propõe pode  traduzir um modo de criar as gavetas que constituem nosso mundo atual. Ao imaginarmos espacialmente nossos ambientes e comunidades dos quais derivamos, somos capazes, por conseguinte, de compô-los em ordem espacial, determiná-los e guardar nelas o que nos é devido e cobrado.
Como consequência desse modelo, encaramos a grande dificuldade de utilizar a ética aristotélica para moldar o juízo dos tempos fragmentados. Os aspectos constitutivos dessa ética nos impõem. Vejamos então o que Aristóteles nos diz quanto a isto, no Livro V, da Ética a Nicômaco: “Entretanto, o homem injusto nem sempre escolhe o maior, mas também o menor (no caso das coisas que são más de modo absoluto ele escolhe a menor parte). Como o mal menor, em certo sentido, é [10]), considerado um bem, e a ganância se dirige para os bens, considera-se que esse homem é ganancioso. E também iníquo, uma vez que essa característica inclui tanto querer muito as coisas boas quanto querer pouco as coisas más, e é comum a ambas.” (p. 2)
Ora, podemos dizer que para o Estagirita, é plausível que um indivíduo qualquer fosse julgado pela sua conduta em todos os ambientes aos quais pertencesse. Na comunidade política e na vida privada, era necessária a coerência como aspecto fundamental de sua conduta. Isto se deve, também, pelo fato de que os indivíduos viviam e compartilhavam poucas comunidades, uma diversidade proporcionalmente menor que a da contemporaneidade. Afinal, como poderíamos demonstrar a ganância de um sujeito social, se este convive em diversas comunidades, se na família ele pode ser amável e honesto e no trabalho absolutamente ganancioso e desleal?

Por outro lado, a organização social contemporânea expõe o mundo a uma administração do tempo e das necessidades. Ao refletir acerca dessa natureza das relações humanas e sociais, deparamos com a não menos trivial produção de mercadorias. Como citei em outros textos, não se trata de considerar a produção material das mercadorias neste contexto, mas de uma imobilidade que expressa, finalmente, a fragmentação social.
A sociedade das mercadorias permite a polissemia por meio de uma vasta rede que tem como lógica, sua própria manutenção. Uma das consequências mais nefastas dessa condição atual é que os acordos individuais podem ser desfeitos a qualquer momento, contudo, as relações devem manter, como num acordo implícito, o mundo das mercadorias.
O ser do capitalismo parece permitir em seu interior que os indivíduos se digladiem por seus interesses, inclusive lançam mão de subterfúgios politicamente considerados hegemônicos, como por exemplo, as mobilizações sociais, as reivindicações democráticas, os aparatos burocráticos e administrativos. Porém, não há mais nada além dessa armadura intransponível.
Para que haja flexibilidade, a sociedade das mercadorias diz aos indivíduos que têm a liberdade de estabelecer seus laços no âmbito do que lhes é permitido sem que afrontem decisivamente a produção e reprodução social do capital.
E para referendar essa condição social, apresento a afirmação de Marx, em sua obra Contribuição à crítica da economia política, “O trabalho criador de valor de troca, caracteriza-se, finalmente, pelo fato das relações sociais entre as pessoas se apresentarem por assim dizer como que invertidas, como uma relação social entre as coisas (...) Se é pois verdade dizer que o valor de troca é uma relação entre as pessoas, é necessário acrescentar: uma relação que se esconde sobre a aparência das coisas” (p. 37).
Sendo assim, as coisas assumem o verdadeiro conteúdo das relações. Portanto, em cada lugar, em cada ambiente, necessita-se de um discurso que se compromete em obedecer ao mundo da mercadoria, desta forma, a única ética possível e a da mercadoria, como um guarda-chuva, assume a condução dos indivíduos. Para que haja esta obediência, as gavetas salvaguardam as condutas esperadas.
A invasão do privado é a ampliação dos momentos institucionais das gavetas. Mesmo que aparentemente não há uma ligação entre as diversas gavetas, elas se entrecomunicam por meio do cálculo instituído para que todas as gavetas sejam uma espécie de teia a sustentar o mundo invisível da produção de valor, escondendo as reais relações materiais.
Somos metafísicos, diria.

Um comentário:

  1. Se me permites alguns comentários, parece-me que as gavetas existem, mas o armário é um só: o capital em seu processo de expansão. A Razão, a partir da modernidade, apesar de ter sido fundamental para o capitalismo, a partir de determinado momento foi suplantada por ele e passou a ficar a seus serviços. Sendo que hoje não passa de sua serviçal (daquele tipo bem burguês, que é usada pelo filho e pelo pai...). Já com o evento da ciência os pensadores passaram a não se importar com os adventos que aconteciam entre os homens. Marcuse, na Ideologia da sociedade industrial, lembra que Descartes com seu ego cogitans deixava incólumes as instiuições sociais e Hobbes que "o presente deve ser sempre preferido, mantido e levado mais em conta". Fora Kant, que escreve de olho nas descobertas de Newton e não está muito interessado na miséria social. Talvez o grande problema aqui seja o corte epistemológico que surge na modernidade, atravessa o idealismo alemão, e ressurge até entre os marxistas soviéticos, ie, existem leis objetivas que administram toda a realidade, seja ela física ou social, e, se existem, são as mesmas? Devemos nos harmonizar com elas? Se acreditarmos nisso
    o serviço de stalin e do Partido bolche foi de acordo com as forças que regem o Universo. Mas e se o indivíduo (o sujeito) tiver liberdade? Talvez, a totalidade, a identidade sujeito-objeto hegeliana esteja sendo erigida através da imposição do objeto.
    Ou seja, vivendo sob a organização social do capital, estamos longe da liberdade. O capital determina a Ciência em suas investigações. Há uma unidimensionalidade (Marcuse) latente, aliás, cortante, desconcertante, pungente! As contradições estão escondidas, mas permanecem existindo. Com isso,
    uma resistência a dita cuja (ciência contemporânea) é quase impossível. O tecnicismo capitalista agora é sinônimo de verdade. O pensamento está sendo assassinado aos poucos. Multiplicidade é um termo apenas aparente, totalmente vazio, pura ideologia. A ditadura da rentabilidade faz com que tudo só exista a partir dela. A democracia capitalista abre caminho a toques de canhão e grupos de elite das forças armadas, treinados para não serem homens e destruir àqueles que tentam ser! Diferenças existem, mas estão em segundo plano e dizem respeito a questões minúsculas e sem importância alguma. As gavetas existem, mas o armário é um só! E tudo que sai de dentro dele só serve a aparência, pois o vazio interno de cada usuário do conteúdo das gavetas é imposto pelo capital. O processo de mimese transforma cada um em autômato.
    Por mais nocivo que tenha sido, e esteja sendo, o governo da social democracia no Brasil, ela nasceu baseada em idéias, ié, a social democracia européia; que por sua vez nasceu da discussão e rompimento entre comunistas europeus e russos numa histórica reunião do Partido Comunista. Mas agora o vazio da mercadoria arrasa com eles e as idéias não valem coisa alguma! A ideologia, o pensamento e a História são destruídos, aniquilados por representantes absolutamente desprezíveis (anões, gente que aparece do nada, sem história, funda partidos, vence eleições até presidenciais) de interesses econômicos, marionetes sem nem sequer enchimento de estopa; seres dispostos a serem preenchidos por quem pagar mais. Todos a mais pura mercadoria!Vide o que está acontecendo em SP.
    O vislumbre do real, a radical crítica de tudo que está acontecendo, é possível. Não é fetichização da Teoria Crítica, do Capital ou de Marx, mas, mesmo também tendo sido tornados (a contragosto)mercadoria me parecem os únicos capazes de nos auxiliar.
    Parece-me, Grego, que as gavetas estão sendo destruídas, pulverizadas e jogadas ao mar e, depois, faz-se um espetáculo disso.

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