quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

O (des)(encanto)

Atanásio Mykonios

Somos uma sociedade que encanta. Uma sociedade profundamente encantada e, mantida sob o jugo do engodo do encantado. O encantamento é como manter viva a esperança dos seres humanos em algo que provavelmente de modo racional não haveria como crer. Nossa história foi marcada por grandes formas de encantamento. A narração do extraordinário dos mitos sempre foi uma condição para fazer com que as pessoas acreditassem em algo para além do mundo presencial, tocado, sobretudo para que mantivessem sua crença em solo firme para prosseguirem sua existência. E isto porque há um grande risco que cada um de nós seja levado a uma dúvida absurda e absoluta, colocando em questão a própria sociedade, colocando-nos sob o tacão do desconhecido e do caos.
Mas havia uma espécie de ligadura entre as narrativas dos mitos e o mundo real. A vida corria e parecia haver um sentido. O sentido da unidade. O significado da unidade nos dava o significado do pertencimento, a afável dignidade de que pertencíamos a alguma coisa vinda do passado.
Para nós que estamos distantes desse tempo, esse mundo nos parece agora rotineiro, sem grandes emoções, destituído de movimento e silencioso. Nosso pertencimento é lançado para as coisas que fazemos e produzimos. O encantamento atual tem outro significado para nós. Continuamos a necessitar de sentidos para a existência. Mas agora, o mundo encantado tem como propósito fomentar dois aspectos da vida real.
O primeiro é a adesão a um sistema que hoje é mundial. Não estamos mais naquele período em que o capitalismo podia ser vista na confortável distância das culturas fechadas, hoje ele está por toda parte, está em todas as culturas, atingiu todas as tradições, todas as formações sociais, penetrou na organização dos povos. Nenhum Estado pode viver impunemente afastado do capitalismo, na luta contra o sistema, os estados hostis são tratados marginalmente, sufocados, destruídos se for necessário. A adesão torna-se função do encantamento, em outras palavras, quero dizer que o papel do encantador é de convencer a todos nós de que não há alternativa para a nossa própria trajetória. Pertencemos a um mito sem face, que deve ser seguido, a adesão a ele é condição sine qua non para a nossa existência.
Outro aspecto do encantamento é oferecer um mundo de possibilidades. Nunca tivemos tanta oferta de sonhos, a mercadoria resplandece, ela é o elemento de ligadura que o mito conseguia fazer na história anterior ao capitalismo. Essa forma de entender o mundo é absoluta nas nossas atuais relações.
Somos levados como zumbis a uma nova narrativa, o encantador nos chama para sermos felizes em um mundo de realizações materiais e simbólicas, sem precedentes, profissionais e sociais. O mito encantador nos remete a uma superfície de sensações de prazer social, e especialmente individual. A euforia diante de um mundo tecnológico e científico, as emoções que reproduzem a certeza de que a vida não tem fim, e o fim de si mesma é estar associado ao mundo encantado.
No entanto, este mundo encantado é tão frágil, talvez pelo fato de que ele também é encantado, não tem o poder de encantar. A modernidade nos surpreende constantemente. A apoteose das novas formas de capitalismo, com seus resultados econômicos, com as estruturas portentosas a nos sugar para dentro de um liquidificador global e que revela, como rastro, as estruturas esgarçantes deixadas como preço de um mundo que não pode mais parar.
E nos empurra para um desespero contido, permanente, escondido entre a obediência, o fastio, o tédio e a euforia enganosa. O absurdo da vida está presente. Somos pegos de surpresa diante de um mundo potencial, que tinha a obrigação de garantir a nossa felicidade em todas as condições e em todas as suas instâncias.
Deveríamos ser saudáveis, felizes, ativos, realizados, longe da ignorância, bonitos, equilibrados. A ciência tinha de nos dar a certeza de que estamos bem e que viveríamos sem dores, sem moderadores de apetite, sem vícios. E a tecnologia o conforto absoluto. A certeza de que com as novas máquinas ao nosso dispor estaríamos a um passo do paraíso. Mas o encantador não se deixa envolver, e esconde de nós que este mundo só é possível na utopia.
Os Estados tinham de nos dar a segurança social, os serviços tinham de estar atualizados, limpos, organizados. Para nós, quando encantados, o Estado deveria nos oferecer o melhor, que vinha de nós mesmos. Deveríamos ser inteligentes, nossa educação nos levaria ao mais alto dos cumes da realização social. Não estamos seguros em lugar algum.
Mas tudo parece inversamente proporcional ao que o encantador nos prometera. De fato, o encantamento tem de prometer e nos convencer das promessas, mesmo que elas não ocorram. Isto não quer dizer que o encantamento se encarregue de entregar as promessas, de realizá-las, é preciso que os encantados sejam levados ao ápice da sua crença. O resto fica por conta da atividade de cada indivíduo em um mundo sem sentido, guiado por uma espécie de bússola que aponta para a necessidade de produzir mais valor, e valor sobre valor, e mais valor, transformando a terra numa impressionante camada árida, sem vida.
O encantamento moderno se desfez da apaziguadora fonte criadora de mitos. O mito moderno, por excelência se volta para atender as demandas individuais. O encantar com sua narrativa técnica e absoluta, move a sociedade em nome da própria satisfação. Sua justificação aponta para o que há de melhor fora do próprio ser humano, as conquistas que implicam o intragável imperativo do progresso e do crescimento a todo custo.
Justiça, política, bem-comum, são motivações extremadas cuja identidade é filtrada pela lente de uma ética também estranha, que tem como pressuposto e imperativo a produção de coisas que se transformam em mercadorias.
Eis que o mundo desaba em face ao horror do desencanto. Tão rápido quanto o encanto nos envolve, tanto quanto o desencanto nos coloca diante da solidão, a realidade crua de um modo de narração social sem gosto, sem viço, sem profundidade. Perdemos a capacidade de refletir sobre nós mesmos. O que parecia a nossa libertação, o que parecia ser a emancipação de toda a história humana, marcada pelo sofrimento, não passa de um encontro cara-a-cara com a ilusão absoluta.
 Quiséramos ter a vida sonhada, tranquila, sem percalços, animados pela eficiência, trabalhando, vendendo, comprando, consumindo com nossas famílias e nossa fé. A perfeição dos dias sem conflito. Não passamos de um arremedo de realização.
A religião ainda tenta dar o sentido à vida. O conflito é visível neste aspecto, de um lado as velhas tradições que tentam resistir, com suas narrativas cada vez mais diacrônicas e, de outro lado, a nova, irradiante, esfuziante narrativa do desesperado mote da tecnologia, da eficácia e do terror em forma de engenhosidade.
A atmosfera está carregada. Agora estamos entre o desencanto e a aridez. Por toda parte encontramos insatisfação. Ora porque as religiões sucumbiram ao novo modo de ser da sociedade que produz trocas em volume e qualidade e de outro, a sociedade que não garante a todos a mesma condição e não será capaz de fazê-lo.
Assim é no Egito, como também nas periferias das grandes cidades, como em qualquer ambiente. É assim nas salas de aula, nas universidades, nos bares e nos campos de futebol. Bem lá no íntimo, sabemos que não conseguiremos chegar ao fim, como nos foi prometido. Perdemos o encanto cedo demais, para isto, bastaram 250 anos de apoteose científica, tecnológica e mercadológica.
Procuramos o sentido de formas as mais diversas, contudo, ainda estamos sôfregos, nossas conquistas não são nossas, são do mercado, da ciência, dos burocratas e administradores. Era para sermos mais felizes? Talvez. O mundo real está debaixo do nosso nariz. A política serve para conduzir um mundo teleguiado, e nós, cidadãos cada vez mais mundiais, distantes das reais motivações que se supõem estar a serviço das coletividades.
Agora, restam os confrontos que possivelmente se alastrarão por todas as partes. Alguns ainda sonham com maio de 1968. As os jovens pelas ruas incendiando as consciências no abalo das estruturas. Os Estados estão atentos, armaram-se até os dentes, com sofisticadas estruturas de controle e repressão. As máscaras estão caindo, uma após outra, a política se desfaz e os acordos servem para manter os canais de comércio lubrificados.
A Internet se torna um veículo que canaliza a informação e pode insuflar as massas. Derrubar governos, mas não os acordos. Destronar ditadores, mas não as relações sociais de mercado. Encantados permanecemos. Outro mundo parece não ser possível até agora. É um passo, a luta medieval assistida pela TV e pela Internet nos dá a dimensão de que o encanto se tornou tão poderoso que o não cumprimento de suas promessas, pode nos levar à barbárie absoluta.
Que tenhamos, ao menos, sensibilidade para perceber o desencanto.

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