terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Guerra Legitimada

A guerra contra os pobres e miseráveis está aberta. Em todos os ambientes urbanos, as elites se sentem ameaçadas. De alguma forma, a opinião pública deve ser convencida de que há inimigos públicos. Os traficantes são a bola da vez. Todos devem ser presos, de preferência, mortos. O consumo de drogas é constantemente marcado como a referência para a violência urbana. Matar bandidos traficantes tornou-se uma ação justa e legítima, socialmente aceita pela opinião pública. Os pobres sabem o que lhes espera, a cadeia é uma das estações ao longo de sua vida precária. Todos conhecem as condições aterrorizantes das cadeias públicas, os marginais, miseráveis, traficantes, bandidos sabem que sua estadia nos presídios não será nada agradável.
A operação de guerra mobiliza o Estado. As câmeras de TV, atentas, mostram a mobilização. Pela primeira vez, os militares e policiais do Rio de Janeiro são apresentados como se estivessem em uma guerra global. Tropas de elite, exército, marinha, etc., todo aparato para uma operação de envergadura. O Brasil teve sua semana de guerra do Golfo. Os soldados fazem poses, sobre tanques e carros blindados. Bonés, caras pintadas, metralhadoras em punho, todos fazem caras de maus, de soldados prontos para a guerra. O glamour da guerra, a fisionomia de soldados prontos para a o combate, desde as cenas do Vietnã se tornaram coqueluche. O cinema popularizou a atitude do soldado com o cigarro no capacete. É bem verdade que hoje o soldado socialmente correto é aquele que não fuma, ou, ao menos, mostra publicamente que não fuma. Mais tarde, na primeira guerra do Golfo, pilotos de caças da marinha norte-americana deram depoimentos de que como se sentiam ao atingirem alvos, as máquinas transformavam a guerra em um videogame. A partir de então, era como se a guerra verdadeira fosse substituída pelo jogo e a TV apresenta-a na forma de uma imagem espetacular. O cinema e a realidade se confundem absolutamente
Aqui, o cinema brasileiro também glamourizou o militar nacional, mas não o soldado, afinal, o militar nacional teve sua mancha devido à ditadura que espalhou o terror e a destruição. Mesmo que não tenha sido essa a intenção, o militar da tropa de elite da polícia passou a ser visto como um personagem de história em quadrinhos.
Os policiais cariocas foram transformados em heróis nacionais, em menos de duas semanas, a imagem da polícia mudou drasticamente. Era uma imagem construída sob os escombros da miséria, da violência, do abuso de poder, da corrupção individual e institucional. De repente, como num apertar do controle remoto, a polícia se vê diante da possibilidade de se tornar a instituição por excelência, salvadora e libertadora dos pobres. Os serviços do Estado, bem como as próprias polícias, não conseguiam avançar e tomar os morros cariocas, com uma simples ordem, uma operação espetacular é desencadeada.
A estratégia é elevar todos em atores de um cenário de extrema beligerância. O contexto é de guerra, os inimigos numa guerra podem e devem ser exterminados. Os termos utilizados tanto pelos meios de comunicação quanto pelas autoridades e militares são da específica linguagem da guerra. É preciso fazer com que todos adquiram o espírito do tempo, a guerra está presente e deve ser assumida por todos.
O conflito social será tratado com mão forte. Não importam as causas. Nada deterá as forças da guerra em avançar sobre as áreas urbanas de conflito. Mas por quanto tempo? sabe-se, cada vez mais, que as periferias dos grandes centros são perigosíssimas. Áreas conflagradas, chacinas, perseguições, medo. Os ricos estão com medo. Extensas áreas devem ser revitalizadas para o mercado. Grandes eventos esportivos no Rio de Janeiro requerem a atenção dos investidores, dos construtores e dos empreendimentos imobiliários.
A guerra contemporânea, mais e mais tem como propósito reativar a sociedade produtora de mercadorias. Invade, destrói, arrasa e depois reconstrói com o fito de trazer a liberdade da mercadoria. Neste âmbito, a sociedade é transformada e o mundo da mercadoria invade todas as sociedades e culturas.
Aqui, não parece ser muito diferente. No entanto, ainda o presidente Lula acredita que é possível resgatar os pobres nas áreas conflagradas. Sua política é de perseverar e colocar os marginais no mercado, guardando as devidas proporções, uma vez que os bandidos devem ser eliminados da comunidade, extirpados da vida social.
Ao longo da história, os pobres sempre estiveram em zonas de conflito, sempre estiveram em dificuldades. Necessitaram, em muitos períodos de guerra e miséria, da proteção. É característica da miséria, no capitalismo, a fragilidade, a dependência social, a emergência da proteção social, material e espiritual. Foi assim na Idade Média e hoje observamos a chantagem a que são submetidos nas periferias e nas zonas conflagradas. Gaza, Morro do Alemão, Cidade do México, periferia de Nova Delhi, Paris.
Os atuais inimigos não passam de pobres, absolutamente atirados à própria sorte. Os problemas do capitalismo não estão na ordem do dia para serem refletidos e abertamente dispostos a uma crítica. O que importa é garantir as condições para que o mercado assuma definitivamente a condução do processo social. A lógica da mercadoria é a sua ética, sua ontologia é sua condição fundamental, a saber, promover nas consciências o espírito do capital e na materialidade, as condições de sua realização de modo absoluto – processo inexorável. Os não-rentáveis deverão se submeter ou perecer. O consumo de drogas poderá fazer uma parte do trabalho sujo, morte, dependência, violência. De outro lado, os grupos criam espaços para manterem suas identidades. Funkeiros, adeptos do hip-hop, poetas avulsos, grupos culturais, gangues, torcidas organizadas, além de jovens religiosos de várias denominações cristãs assumem todos, de um modo ou de outro, o destino da periferia.
A escola pública faz o papel de contenção das energias. Socialização camuflada na forma de ensino formal e básico. Trata de garantir minimamente as relações entre iguais. O treinamento fundamental diz respeito a uma espécie de processo civilizatório, reduzido a uma lista de comportamentos minimamente esperados para trabalhadores com pouca rentabilidade.
Matar os pobres com vista panorâmica a partir do sofá da sala é um exercício da nova cidadania dos consumidores modernos. A guerra está presente, o Estado assume seu papel de limpeza daqueles que não podem produzir, aqueles que conseguirão consumir terão algum espaço, transitarão com certa liberdade, mas restringidos a determinados territórios.
Nossa tragédia está só no começo.