sábado, 18 de agosto de 2007

Inimigos Sociedade Anônima

Por Atanásio Mykonios

Trechos do Artigo Publicado na Revista Phrónesis
Do Programa de Pós-Graduação da PUC de Campinas
Volume 7 – Número 2
Julho-Dezembro de 2005 (p. 183-205)



O dogmatismo da mercadoria


Ao se mostrar indiferenciada no corpo social, a mercadoria se coloca como a panacéia de toda a satisfação pessoal. Atinge em cheio a sensibilidade e o caráter evasivo da abstração humana e satisfaz, notadamente, todos os flancos e todos os espaços da carência humana – tanto materiais quando psicológicos. Preenche a totalidade fragmentada dos indivíduos e parece que o faz exclusivamente para uma determinada pessoa singular, tudo isto para marcar a diferença entre todos, como seres únicos e insubstituíveis, assim como fazem as religiões no sentido da salvação pessoal. É um deus-mercadoria que fala para cada um no seu mais íntimo e profundo ser.
E a conseqüência inevitável dessa relação de atração metafísica é que cada ser social, ou cada pessoa consumidora adquirente de mercadoria, deve se sentir única e exclusiva, não pode haver comparações. Aquela mercadoria deve ser adquirida pela pessoa e a posse demarca definitivamente a diferença no corpo social. O merecimento para alcançar a mercadoria é pessoal e especial, diz respeito àquele consumidor – talvez a necessidade seja propagada de modo igual, já que a mercadoria é oferecida simultaneamente em horários de TV para todas as pessoas, de forma indiscriminada. É como um deus que profere sua palavra a todos, mas apenas alguns são capazes de ouvir o chamado desse deus tão poderoso. Os que são de fato convencidos, chegam às portas do paraíso e são aceitos na confraria dos eleitos. A aceitação social é marcadamente regulada pelo acesso à mercadoria e à sua conseqüente posse.
Ora, essa maneira sub-reptícia de compreensão social da mercadoria, leva-nos a constatar que, na corrida em busca da posse, o elemento de diferenciação social impõe um comportamento marcadamente estruturado em torno da violência e da agressividade, que é, por seu turno, legitimada ao extremo por mecanismos de controle social, de compensação diante das perdas e da formação de uma teologia de eficiência e eficácia.
No momento em que a mercadoria nos é oferecida, ela atinge igualmente os sentidos das pessoas, sua sensibilidade, suas ansiedades e angústias, suas esperanças e frustrações. Daí cada indivíduo que é submetido a esse jogo de sensualidade, responde conforme o seu lugar presencial, conforme sua realidade social, conforme sua perspectiva de aquisição. Isto é, o que move o indivíduo de posses e aquele desprovido de qualquer condição de adquirir a mercadoria parece ser a mesma, são as mesmas características metafísicas que foram anunciadas indiscriminadamente a todos, concomitantemente. E assim o que move o delinqüente e a senhora de bons costumes é a mesma necessidade despertada pela mercadoria.

Transformando todos em inimigos comuns


E dessa forma, todos são transformados em inimigos, de tal sorte que a força social está em manter as rédeas do modelo no seu limite, a fim de que todos tenham compreensão de que estão diante de um deus onipotente e onipresente. O sistema é realimentado pelos próprios indivíduos, ganha sua autonomia e se torna um fim em si mesmo.
O comportamento moral, as ações políticas, sociais, religiosas e éticas, são reguladas pelo deus-mercadoria, substancialmente contido na ontologia do sujeito social, que encara o seu estar na sociedade por meio da aquisição, ou mais tragicamente, por meio da manutenção do processo social do deus-mercadoria.
As ações morais dos indivíduos têm como pressuposto a própria mercadoria, ela é colocada como pré-condição no que concerne às decisões a serem tomadas sobre qualquer assunto ou nas relações entre indivíduos, bem como passa a ser a finalidade de toda a organização social. Do lápis às ataduras no pronto-socorro, dos alfinetes ao garfo, do papel higiênico à gasolina, da água à luz, tudo está regido regularmente pela mercadoria, e tudo se transforma numa verdade transcendente, com tal intensidade, que nada parece ser possível imaginar uma ruptura numa perspectiva insólita de transformação do modelo vigente.
Isto porque não é apenas um modelo do qual seja possível escapar impunemente, ao contrário, trata-se de um sistema que exige fidelidade e que açambarca todo o espectro social, não oferecendo alternativas ou escolhas aos seus indivíduos. É um sistema dogmático que impinge a todos a escravidão pactuada.
A sociedade atual e anônima é a sociedade dos inimigos comuns. Todos se tornam ferozes inimigos, cujo único objetivo é garantir a todo custo a mercadoria. E como verdadeiros abutres em torno da carniça, somos compelidos diariamente a sufocar a totalidade que existe em nós em nome da mercadoria, a deusa dos nossos sonhos de consumo. E aqui foi possível observar a confusão entre consumo e aquisição de mercadorias, como se ambos os termos possuíssem a mesma categoria ontológica. Em certo sentido sim, porém, o consumo humano é anterior à formação da sociedade das mercadorias.

Os inimigos se encontram
Parte considerável de nossa atual violência se deve a essa complexa rede de inimigos que a sociedade das mercadorias foi capaz de engendrar. Ao invés da criação de uma sociedade solidária, a mercadoria criou indivíduos preparados para a agressão constante, porque estes indivíduos entendem ser necessária a defesa de seus direitos ao acesso às mercadorias, como o direito de livre expressão ou confissão de fé, criando assim bandos organizados que saqueiam o tecido social em busca das mercadorias, criando, inclusive, uma teologia própria em torno da qual circulam os inimigos confessionais e outros que desejam a conversão.
Felizes os que podem adquirir as mercadorias! Eis as bem-aventuranças da idade contemporânea. A consciência social se contenta, então, com uma certa mobilização em torno da qual giram os valores da distribuição vista sob o ângulo da ética coletiva. E, contraditoriamente, esse movimento é um refluxo para o interior mesmo da mercadoria, que impulsiona os indivíduos a uma satisfação aparentemente perene, mas, em verdade, se tornou um redemoinho que traga todos para um mesmo ponto central.
Essa centralidade da mercadoria é a última expressão de uma arquitetura social que engloba de uma só vez o trabalho abstrato e o valor, regado substancialmente pela espiral do acúmulo do valor sobre o valor. Todos que se deitam num mesmo leito de morte se transformam em inimigos. Essa inimizade se configura em uma beligerância apática, num certo aspecto, mas noutro, torna-se explícita, gerando a própria morte dos indivíduos. Contudo, ela é mascarada por formas que dão a aparência de um pacto social permitido, como, por exemplo, a concorrência, a competência, o vencer a todo custo. A culminância desse processo é uma sociedade eivada de egoísmo e narcisismo absurdo, que leva os sujeitos adquirentes da mercadoria a uma verdadeira ode à sobrevivência e cuja perspectiva é o céu sem limites ou barreiras.
Nesta sociedade confeccionada a partir das relações determinadas pela mercadoria, encontram-se os valores das culturas que, via de regra, são subsumidos à grande formação social imposta pela deusa-mercadoria. Uma categoria que abrange todas as culturas e identidades, formando assim um círculo fechado e perfeito.

A necessidade colocada na contenda
Mas as necessidades materiais, paradoxalmente, prendem o homem à sua materialidade, mantém-o preso à terra, ao barro, às condições limítrofes. Contudo, essas forças limitadores são como que esquecida, deixadas num canto da consciência, exatamente quando esse homem se depara com a sua própria criação – refluxo de sua consciência na materialidade, em forma de objeto-mercadoria e então se sente liberto de uma suposta condição que, de alguma forma, pode ser superada ou transformada.
Tem-se a idéia de que a mercadoria pode transformar a humanidade das pessoas, dando-lhes uma condição superior, até mesmo numa perspectiva espiritual, como se o acesso a certos bens espirituais formasse uma outra entidade na humanidade mesma. Isto quer dizer que há uma sensação recorrente de que se consumirmos as mercadorias revestidas de arte, de cultura, como o teatro, a música, a dança, isto nos faria pessoas melhores, mais sensíveis, mais atentas, em outras palavras, mais justas, mais conscientes de nosso papel social na atualidade.
A mercadoria é um ente que se tornou global, cuja ontologia se explica por meio da submissão dos indivíduos à sua forma eternizante, constituindo uma cadeia de relações que, paradoxalmente são humanas e anti-humanas, fortalecida pela metafísica da estética, que aprisiona o humano em torno a uma condição de estreiteza existencial.
Isto significa dizer, em outras palavras, que a mercadoria não pode se sustentar indefinidamente porque não é capaz de gerar um equilíbrio do ponto de vista ecológico, nem um equilíbrio no que concerne a uma correlação de forças minimamente sustentável. O processo da valoração do próprio valor, implica um crescimento e um fomento material que não pode, em sua condição original, manter-se no sentido de satisfazer todas as necessidades abstratas dos indivíduos sociais.
Aqui, é necessário reconhecer que a sociedade das mercadorias promove uma relação entre indivíduos cujo produto final é, inexoravelmente, a morte, tanto no sentido da separação do homem de sua totalidade, quanto no que concerne à sua manifestação existencial.
Uma sociedade de inimigos perde sua perspectiva de preservação biológica da própria espécie. Isto implica uma condição que extrapola, inclusive, a realidade biológica mais elementar da natureza, que é a proteção da espécie. A morte ronda o espectro social. Mesmo assim, é possível vislumbrar uma nova perspectiva, em cuja formação social estarão implicados todos os desafios possíveis e imagináveis, pois após milhares de anos, a humanidade tem possibilidade de formular novas relações em um novo patamar, sem, no entanto, estar presa ao seu próprio passado, vislumbrando uma nova sociedade a partir da superação do que já se tornou notoriamente um modelo de morte, superando assim os limites da própria racionalidade ou mantendo-a nos limites necessários para a construção de uma arquitetura social que leve em conta a liberdade, o fim do trabalho determinado pelas condições do capitalismo, como centralidade protogênica do humano, dando fim a uma ciranda mortificante baseada na mercadoria.

Mercadoria e o fim da história

Por Atanásio Mykonios
Crítica da Necessidade




A mercadoria engendra um modo de relações cindidas, apartadas da história. Enfrentar teoricamente o sistema requer uma abordagem esotérica da compreensão marxiana do modo como se dá a mercadoria. Ela está no centro, mas será preciso enfrentá-la metodologicamente para determinar os elementos de sua contradição interna. A determinação da mercadoria e a extinção da história. A mercadoria revela o apagar de um processo vivo, concreto, real. Torna-se uma entidade metafísica que impõe o esquecido do trabalho e da origem das condições concretas em que este ocorre. O ponto de partida é literalmente esquecido. O processo de troca elimina a história, a história e a memória social, esconde a essência real das relações, coloca no lugar uma idéia que aparece naturalizada, divinizada, como que vinda dos céus.
O pensamento burguês se desprende do concreto e se transforma em uma força natural, ou uma força da natureza. Assume uma forma, a forma cristalizada, a forma que parece ser dada, conforme Marx apresenta. O componente histórico perde sua feição, a forma, aquilo que aparece se torna, a seu tempo presente, seu próprio conteúdo, nada mais, pois a historia que poderia indicar o processo e nele constatar o caminho percorrido não existe mais. Marx teoria sobre a teoria, como György Lukács, em História e honsciência de classe, afirma. Assim, a história tem o sentido não apenas de mostrar os fatos, os ocorridos, mas é o de mostrar o que ocorreu com o processo, como é que o homem transgride a própria realidade e coloca o mundo de cabeça para baixo.

O pensamento burguês, contudo, deve deparar aqui com uma barreira intransponível, visto que seu ponto de partida e sua meta são, embora nem sempre consciente, a apologia da ordem existente das coisas existente ou, pelo menos, a demonstração de sua imutabilidade. (LUKÁCS, 2003, p. 136)

O pensamento burguês e ao mesmo tempo seu próprio comportamento revelado pelo valor conseqüentemente afeta toda a vida social, inclusive a moral dos indivíduos, penetra na ética social, amplia-se no sentido das atividades científicas, a ciência se torna a visão burguesa do mundo e, tem como fundamento a iniciativa de romper com a história, transformar as relações de valor e necessidade em elementos naturalizados, em outras palavras, uma metafísica do mundo do valor, da mercadoria e da necessidade. Lukács, ainda salienta que:

deve eliminar do processo da história tudo o que tem um sentido, que visa a um fim; deve deter-se na mera "individualidade" das épocas históricas e de seus portadores sociais e humanos. Com Ranke, a ciência da história deve insistir no fato de que cada época histórica “está igualmente próxima de Deus”, isto é, alcançou o mesmo grau de perfeição e que, portanto, por motivos opostos –, não há, por sua vez, um desenvolvimento histórico. (Ibidem, p. 137)

As relações são produzidas pelos homens e não por outra coisa. A partir da naturalização, os fantasmas prorrompem em uma relação desvinculada da história e esta é um dado a mais para criar o grande pesadelo do homem em busca da grande alma que explique o mundo concreto. A consciência humana fica submetida e subsumida a um mundo de idéias e de formalidades, especulações e iluminações ansiadas e que leva o homem a procurar sua própria conversão, continuamente. A busca da essência real, se assim podemos chamá-la. Com Lucacks, o materialismo histórico nos revela a condição concreta do mundo e das relações. Será utilizado como forma de compreensão do histórico da mercadoria e da visão burguesa das relações cindidas pela metafísica da própria metafísica. Daí, a produção perder seu conteúdo histórico com a produção burguesa. Daí a passividade diante do processo social e das relações, diante do mundo, no qual a vida ganha um sentido natural, pois “Os objetos da história aparecem como objetos de leis naturais e imutáveis, eternas” (Idem, p. 137) e, por conseguinte, a representação da realidade deve ganhar contornos de uma estética pura, no sentido visível de que a racionalidade se coloca em um mundo de nuvens sendo “passível apenas de organização estética, como uma espécie de obra de arte” (Ibidem, p. 138), perdendo o sentido de sua manifestação concreta e desta forma, o que se nos aparece é o produto final, como um milagre, um desejo do eterno, como se o homem dependesse, daí em diante, de forças sobrenaturais para refazer continuamente o ciclo e reproduzir sua determinação, tornam-se um fantoche do destino alheio.
A forma do valor está impregnada na mercadoria, e o contrato social ou jurídico pode ou não revelar uma certa oficialidade, que implica a existência do Estado. No entanto, as relações colocadas pela mercadoria não atingem somente os homens oficiais, as pessoas jurídicas, mas sobretudo, toda a população, toda a sociedade colocada na determinação das trocas de valor.

O que distingue sobretudo o possuidor de mercadoria desta última é que para ela cada outro corpo de mercadoria conta apenas como forma de manifestação de seu próprio valor. Igualitária e cínica nata, a mercadoria está sempre disposta a trocar não só a alma, como também o corpo, com qualquer outra mercadoria, mesmo quando esta seja tão desagradável como Maritornes. (MARX, 1983, p. 80)

A igualdade a que a mercadoria advoga para si, nas relações sociais, parece dar a impressão a todos de que os indivíduos são iguais perante ela mesma. Ela iguala a todos em uma cadeia de trocas, bastando para isto que o seu adquirente possua uma determinada quantidade de equivalente geral, inclusive substituindo o valor pelo dinheiro, como expressão desta suposta igualdade. Tudo se passa como se o mundo estivesse perfeitamente ordenado, trabalhar, ganhar dinheiro, comprar e satisfazer necessidades. Tudo em um ciclo aparentemente perfeito. Basta que a sociedade coloque todos para trabalharem, anime os produtores a investirem, para que aumentem a produtividade e para que o consumo cresça como expressão do desenvolvimento, pois quanto mais o progresso proporcionar trabalho, maior a capacidade de consumo e maiores as perspectivas de manutenção dos trabalhadores no mundo do valor e da troca. O cinismo não se refere apenas à condição da mercadoria, mas especialmente ao fato de que o homem põe sobre esta a condição de um jogo de fetiches que ascendem à categoria de regulação do comportamento social e individual. Cabe acompanhar o trajeto oferecido a nós por Marx, quando faz a distinção do papel da mercadoria e sua função, quando de sua movimentação diante dos olhos dos homens, porque o caminho percorrido pela mercadoria nos dá a sua destinação e mais, nos oferece a possibilidade de compreendê-la em sua metamorfose ambulante. A mercadoria, por si, não tem consciência, mas ela adquire uma tal dignidade e um tal estatuto perante os homens que se torna autônoma, como vida própria, e que foge ao controle do homem, porém, este imagina ter sobre a mercadoria um controle absoluto, especialmente quando se coloca como consumidor ativo.

Esse sentido, que falta à mercadoria, para apreciar o concreto do corpo da mercadoria, o dono da mercadoria supre por meio dos seus cinco ou mais sentidos. Sua mercadoria não tem para ele nenhum valor de uso direto. Do contrário, não a levaria ao mercado. Ela tem valor de uso para outros. Para ele, ela tem diretamente apenas valor de uso de ser portadora de valor de troca e, portanto, meio de troca. Por isso ele quer aliená-la por mercadoria cujo valor de uso o satisfaça. Todas as mercadorias são não-valores de uso para seus possuidores e valores de uso para seus não-possuidores. (Ibidem, p. 80)

Ora, este caminho apresentado por Marx coloca o processo da troca-de-valor, em seu princípio originário. O princípio originário indica que um produto revela-se como mercadoria no momento em que o seu produtor de antemão coloca o produto na intenção da troca e não do uso específico. Cada mercadoria, por mais alienada que seja, carrega em si o valor de uso, mas para o proprietário, o produtor, aquele que com sua intencionalidade deseja trocar, não representa mais do que sua existência pode oferecer, ou seja, a própria troca. A alienação é outro elemento deste processo, o caminho se apresenta como uma cadeia ininterrupta de alienações, cuja base inicial está no momento primeiro em que o produtor oferece ao comprador um produto que aparece como seu real valor de uso, mas que é encapado pelo valor, pelo valor de troca. Não se trata do mesmo valor que historicamente foi determinada pelo escambo, ou a troca simples de objetos, mas de uma nova dimensão das relações materiais entre os homens. A realização da mercadoria se dá como valor, valor extrínseco, alienado da história, em outras palavras, sem história, sem ligação com o mundo concreto, pois o valor agora adquire uma vida própria, sem amarras, sem controle de que ali põe seu trabalho, mesmo que indireto, como na atualidade, envolto pela tecnologia de alta qualidade e eficiência. Por isso

Elas precisam, portanto, universalmente, mudar de mãos. Mas essa mudança de mãos constitui sua troca e essa troca as refere como valores entre si e as realiza como valores. As mercadorias têm que realizar-se, portanto, como valores, antes de poderem realizar-se como valores de uso (Idem, p. 80)

De fato, aqui está um dos cernes do problema substancial relativo à mercadoria. Sua essência é o valor. Mas esta essência está escondida na profundeza de sua própria realidade que não se manifesta, uma vez que para o comprador, o que permanece é o valor de uso, que para ele (o comprador) está plenamente resolvido o problema social, pois há um velamento da essência, deixando transparecer uma outra realidade, a que, de início dá o caráter formal ao produto, a saber, o seu valor de uso. Contudo, o valor está ali, ele é o motor que dá a propulsão à mercadoria como mercadoria. Cabe à mercadoria apresentar-se como sua pureza assim o determina, no seu conteúdo de uso, aquilo que é necessário ao usuário ou ao comprador. O valor de troca reflete a necessidade da própria troca, isto é indispensável para que a mercadoria realize sua trajetória, no entanto, isto só é possível se o trabalho socialmente determinado para a produção esteja vinculado ao valor de uso e não ao valor de troca. Mas surge a figura fantasmagórica da mercadoria como forma de garantir a circulação, o trabalho se torna o elemento chave que garante a produção e esta com vistas à troca, fecham o início do processo, assim o afirma Marx:

Por outro lado, as mercadorias têm de comprovar-se como valores de uso, antes de poderem realizar-se como valores. Pois o trabalho humano, despendido em sua produção, conta somente na medida em que seja despendido de forma útil para outros. Se o trabalho é útil para outros, se, portanto, seu produto satisfaz a necessidades alheias, somente sua troca pode demonstrar. (Idem., p. 80)

Há aqui um jogo muito sutil, entre trabalho, valor e mercadoria. O capitalismo prepara as condições para a sua superação, mas não a realiza, portanto, logicamente, o capitalismo não quer se ver como um reflexo negativo, é sempre a si mesmo = não admite contradição, mesmo que ela exista, o capitalismo não admite o processo dialético, rejeita-o.

Referências

Lukács, Georg. História e consciência de classe.: estudos sobre a dialética marxista. Tradução de Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2003. (Tópicos).
MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Vol. 1, Livro Primeiro: O processo de produção do capital, Tomo 1. Tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

Crítica da Necessidade

Por Atanásio Mykonios

A mercadoria é constituída pelo valor em sua origem, portadora de uma simbiose na qual o produto do trabalho, que é trabalho objetivado e cria objetos em valor de uso, se transforma em coisa mascarada pelo valor de troca, revestida por este em novo conteúdo: a mercadoria - sua alma ou seu fantasma. Para constituir o valor, há uma espécie de inversão do trabalho humano, destinado a uma nova condição social, arrancado da história e submetido ao propósito exclusivo do valor de troca, cujo resultado não é mais a atividade humana na relação com a natureza e o mundo, metabolismo que engendra e constitui a totalidade humana e que expressa um conjunto de necessidades e satisfações de cunho social e individual - é a produção na forma-valor, ativada como princípio fundamental do sistema.
A atividade humana é crucial para formação do homem, para sua determinação social; o trabalho não é apenas para o homem em sua singularidade, é para si na relação e pela relação com os outros homens, constitui-se fundante do processo social e de sua história, “aumento de valor do mundo das coisas” (MARX, 1967, p. 90).
O que se produz tem o caráter histórico à medida que assume a expressão do próprio homem, em sua existência, passando por sua tradição, identidade e conseqüentemente, juntamente com sua corporalidade, pois assume a dimensão de fazedor da própria realidade humana, não uma realidade isolada do mundo, das relações objetivas, é a constituição do homem em sua totalidade, por isto, “Aquilo que os indivíduos são depende, portanto das condições materiais da sua produção” (MARX, 1984, p. 15). E. para dar sustentação ao processo histórico, é a mediação e esta expressa o homem no mundo pelo seu modo de produzir, daí que “Esta produção só aparece com o aumento da população e pressupõe a existência de relações entre os indivíduos. A forma dessas relações é por sua vez condicionada pela produção” (Ibidem, p. 15-16).
É imprescindível que a sociedade busque formas de discernir os aspectos do valor, que carrega em seu interior uma contradição que necessita de ser compreendida, pois o sistema arranca da própria humanidade sua capacidade de realização e por se tratar de um modo único na história, de profunda escravidão social.
Enquanto não se enfrentar o valor não haverá possibilidade concreta de superação do sistema, esta no sentido dialético. Enfrentar esta questão não se faz apenas extirpando o dinheiro como meio de circulação, o dinheiro é o signo do processo, o equivalente geral, mas o que determina o processo do capitalismo é a forma como a produção se destina para a troca. Nem tampouco na organização social da distribuição, como ética distributiva. Portanto, generalizar o conforto, o progresso, o consumo, o acesso aos produtos não dá qualquer segurança quanto à justiça social. A emancipação do capitalismo implica voltar a atenção para a origem do processo e compreendê-lo na sua complexidade e evolução históricas e sua conseqüência radical é a revisão das necessidades de modo geral e no seu caráter individual.
A necessidade merece um destaque, pois é determinada pelo valor e desta forma, se desprende do conteúdo real, seja de uma região, de uma tradição, de uma cultura, de um modo peculiar de vida e assume um caráter universal, mesmo que não haja possibilidade de satisfazer a todos os indivíduos da cadeia de consumo. Quanto maior o nível de abstração, desprendido da base real, mais o sistema avança e aponta para suas contradições internas e, de outro lado, revela a exaustão dos recursos materiais manipulados pela produção. A base material não se multiplica, enquanto que a mais-valia (valor-sobre-valor) tem velocidade proporcional à necessidade de expansão do sistema, transformando a relação entre o que se produz e a abstração do valor em um vácuo que aumenta em escala progressiva.
Trabalho – Valor – Mercadoria – Troca – Necessidade – Tempo, será necessária a revisão desta cadeia e a questão urge. As duas pontas se unem e são solidárias desde seu início, isto é, Trabalho-Valor / Necessidade-Tempo. A necessidade não poderá ser abordada sem se levar a questão crucial do trabalho-valor, o que implica re-visitar todo o processo social produtivo. Mercadoria e dinheiro estão no centro, estabelecendo um movimento contínuo. Inicialmente tem-se a tendência, inclusive histórica, de enfrentar o problema a partir da mercadoria, criando mecanismos de distribuição da mesma, mas mantendo-se o processo do trabalho-valor quase intacto ou, no sentido de controlar o valor, o preço e a distribuição, gerando assim a ética da distribuição.
O modo como se produz, o que se produz e em especial o tratamento dado à produção com vistas exclusivas à troca, dá o sentido à mercadoria que se destaca como um elemento desprendido da história, do concreto da atividade humana, do trabalho em sentido geral. De nada adiantará rever o binômio originário do capitalismo se, ao mesmo tempo, não dermos atenção ao aspecto que determina a aquisição da mercadoria, a saber, a necessidade e, em conformidade com esta, o elemento que regula o processo, do princípio ao fim, o tempo. O tempo social da produção, da circulação e o da aquisição, configuram o tempo humano que controla e coage para um único fim, compra e venda, com a substituição dos modos de produção pela tecnologia e assim, parece necessário incluir o tempo relativo ao trabalho, em função das novas realidades sociais impostas pela tecnologia. O que fazer com o tempo diante de uma rarefação do trabalho?
A questão da necessidade se torna visceral. Quais são as reais necessidades? Após uma imensa estratificação dos produtores e dos produtos, após a evolução e crescimento dos modos de consumo, e o incremento de processos tecnológicos cada vez mais qualitativos que produzem uma fragmentação social, e uma realidade extremamente complexa, que se apresenta desgarrada da quantidade material disponível para o consumo, gerando um quadro de expectativas ilusório posto pela relação entre o valor disponível e a base real (material) da natureza, estamos diante de um fantasma. Será imprescindível abordar a questão da necessidade.