quarta-feira, 22 de agosto de 2007

A REPÚBLICA DAS CORPORAÇÕES I

Cinismo Social em Favor da Reprodução do Sistema


Por Atanásio Mykonios
Para uma Crítica Social




O Estado é uma entidade formalmente constituída a partir de uma
legitimidade social. Mas esta legitimidade se torna pretensa à medida que os
fantasmas tomam conta da prática social e dos mecanismos fragmentários do mundo
real dos negócios. Desde os primórdios da modernidade e com a chegada do modelo
capitalista de produção social, o Estado se tornou mais do que um simples
mediador entre contendores. Muito mais ainda do que promotor de justiça social.
As esquerdas compreenderam historicamente que o Estado deve ser tomado a bem das
forças revolucionarias e dos pobres, no sentido de promover uma ética
distributiva da riqueza; os burgueses passaram a defender o Estado como o grande
promotor, o avatar das liberdades da mercadoria. Por todo o século XX, o
Estado foi guindado ao modo de interesse social de partidos, grupos, ideologias,
sistemas, mas sobretudo, houve um sistema que venceu as contendas acerca da
dominação do Estado, este foi o capitalismo e sua força condutora que promoveu
um assolar da própria condição humana.
Lentamente o estado se torna uma
entidade fantasmagórica, um ente cujos meandros são expressão de seus corredores
frios, com salas com ouvidos, carimbos, olhares furtivos, burocracias,
jurisprudências, e uma aura espiritual que não pode ser apanhada com as mãos. As
pessoas somem, não têm face, não têm identidade, são protegidas pela formação da
pessoa estatal, que se estende à pessoa jurídica, uma concepção da sociedade da
mercadoria, que faz proteger aqueles que se constituem em gestores oficiais do
sistema, com suas empresas, produtos, etc.
Mas isto não é motivo para a
discussão atual. A questão que emerge é o fato de que a sociedade está
totalmente impregnada por um tipo de formação e organização que leva em conta as
corporações como entidades jurídicas das quais tudo pode ser atribuído, menos a
responsabilidade concreta acerca das grandes mazelas sociais. A sociedade está
marcada por uma republicanização das corporações, uma espécie de confrarias que
se estendem por todo o cenário convergente das relações econômicas. Tornaram-se
a coisa pública por excelência e neste sentido, o comportamento cínico e voraz
das entidades sem face e sem um responsável visível arrasta-se por todas as
estruturas da sociedade. Isto fica evidente à medida que os acontecimentos se
sucedem em todos os quadrantes das relações impostas pelo capitalismo e nada
mais parece ter um vínculo com a realidade. De outro lado, o modo pelo qual o
homem comum é vilipendiado em seus direitos mínimos e básicos revela uma espécie
de perversidade social da qual compactuam as corporações e seus gestores, em
toda sua conformidade com os interesses da expansão desenfreada da sociedade do
valor e de seus mecanismos sociais de controle e coerção. No ideário das
corporações, que são entidades jurídicas abstratas e que no entanto têm um papel
concreto no que diz respeito às relações de troca no mundo do capital, são
formalmente protegidas por um ordenamento jurídico capaz de fornecer a elas
instrumentos invisíveis de uma defesa que também se esconde nos meandros dos
corredores da burocracia socialmente estabelecida. Tudo ocorre como em um
espetáculo de horrores, em que os atores nada são a não ser sombras de algo que
não pode ser revelado na sua plenitude. O mundo se torna uma grande nuvem de
idéias que percorrem as consciências, penetra-as de modo obscuro e promove um
senso de injustiça sem que ninguém seja cúmplice ou responsável por
absolutamente nada. É talvez o modo pelo qual os legisladores, os gestores, os
mentores sociais encontraram para não revelarem sua própria face contida em
taras sociais que não podem ser reveladas na sua concretude. Mas o que isto
significa? Em grande medida, temos aqui a força e a marca de relações que estão
profundamente cindidas e pessoas que se vêem desprotegidas na sua magnitude. O
cidadão comum, que passa por agruras das mais diversas, só pode ter acesso ao
Estado por meio de corporações que se tornaram pontes e ao mesmo tempo fins em
si mesmas. Algo que se torna um fim em si mesmo perde a noção do real e do
concreto, escapa ao mundo das relações e torna-se um ser teratológico com a
única função de ser nutrido pelo exterior. A organização e o seu crescimentos
são silenciosos, mas eficientes, alastram-se como um reconhecimento em forma de
pacto social invisível... daí que não pode e jamais haverá no mundo social das
corporações nada além do que proteção e um comportamento que visa, por todos os
meios, compor-se com as lógicas internas do sistema, as instituições se
conformam ao mundo material para dele sugar seu sustento, e no atual sistema, a
forma-valor permanece como um gancho de reprodução social dos interesses das
corporações.
Há uma cultura que deitou profundas raízes, especialmente nos
paises da periferia do sistema, que necessitam de mecanismos de compensação
quanto à multiplicação do valor, e que prescindem quase totalmente do Estado
para cumprirem seus compromissos e negócios no mundo do valor e da mercadoria.
Some-se a isto toda a gama de sortilégios capazes de aprofundar a miséria, a
exploração e o cotidiano que esmaga as massas como baratas. As tragédias, os
assassinatos, os estupros, os roubos, a corrupção, o vilipêndio, o escárnio,
tudo isto se torna uma rotina de horrores contínuos e a banalização reflete o
fato de que o homem comum, o desempregado, o proletário, o professor, o
balconista, todos estão desamparados e não encontram qualquer forma de resposta
imediata aos seus desesperos. Se desejarmos resumir um pouco esta farsa social,
podemos dizer peremptoriamente que não há culpados em um sistema que dissolve
suas forças de dominação e exploração por entre os poros, abertos pela estrutura
de produção capitalista. Invisivelmente, os gestores vagam pelos corredores e
pelas reuniões, decidem e tomam a responsabilidade da reprodução, mas não os
encontramos face-a-face no mundo real. A burocracia social que foi absorvida e
assimilada pelo Estado moderno, não deixa de organizar o mundo em torno a uma
forma abstrata de conceber a justiça, mas que esta abstração nada mais é do que
a conformidade ao modelo social do valor e da mercadoria. Como mecanismos
teleguiados, os gestores corporativos, que sejam de qualquer denominação, como
gestores partidários, sindicais, religiosos, gestores de organizações
não-governamentais, associados, empresários, cooperados, associados, parece
estarem sempre isentos de qualquer responsabilidade diante as atrocidades
cometidas pelas suas representações dominadas formalmente pela expressão
jurídica contemporânea. A face oculta não se deixa mostrar em qualquer
circunstância e isto faz com que os indivíduos, em sua singularidade própria
sejam atirados à arena social da divisão do trabalho, do salário, dos serviços
prestados pelas corporações que se arvoram em bem-feitoras da humanidade, pois
consideram que seus serviços estão acima de qualquer suspeita. O que aparece é o
discurso cartesiano das gavetas subjetivas, o discurso da aparência, do
espetáculo, dos conceitos politicamente corretos e ditos por meio de uma espécie
de parcimônia, de elegância social e de lógica retórica.
Por isto, podemos
ver como as estruturas de gestão da coisa pública, bem como as condições de
encaminhamento das verdadeiras questões ficam engasgadas nas grandes salas
suntuosas do mundo jurídico que tem a seu favor o tempo do trabalho social das
grandes massas que ainda, de algum modo, fornecem o sustento dos gestores e de
outro, as próprias corporações que se afastam paulatinamente de sua verdadeira
função de servir a quem as de fato criou. O distanciamento nada mais é do que a
conseqüência formal da consciência burguesa em torno da mercadoria, que faz com
que a história seja perfeitamente incinerada e no lugar é colocada a forma-valor
e o éden desce do céu como um milagre do êxodo moderno, em forma de gôndolas de
supermercados suntuosos e nababescos. Somos um modelo social em decadência, pois
não se adquiriu a noção de uma sociedade em busca de justiça e de superação
deste modelo social, o que nos marca com indelével anomia. Todas as nossas
instituições, algumas com mais voracidade, enquanto outras totalmente
subsumidas, sucumbiram diante da expansão e da formação tautológica do sistema
capitalista. Mesmo que para isto seja possível sobreviver com um tipo de
discurso difuso e completamente alienado da realidade concreta dos indivíduos, a
perspectiva é sombria, por parte das próprias corporações, que nosso cinismo e
nossas taras sociais.
Nada disto parece mais incomodar as corporações, pois
cada uma, a seu modo, conforme seus interesses e práticas, institucionalizada
conforme seu público alvo, formalizam seu discurso em conformidade com o
fantasma que a todas seduz e as mantém em serena e hipnótica obediência social
em favor da forma-valor. São obedientes a si mesmas enquanto cumprem com seu
destino, isto é, o de realizarem a forma-valor em sua plenitude. A cada
audiência, a cada declaração, a cada justificativa, as corporações e seus
gestores caminham sobre as cabeças ceifadas pelos mecanismos de exploração da
forma-valor e o mundo se transforma em um grande calabouço de sofrimentos. Se a
classe média é incinerada em quedas de aviões ou se os pobres são alcançados por
balas inteligentes, as corporações permanecem incólumes e perfeitamente isentas
de qualquer responsabilidade, basta substituir os gestores caso a imagem pública
seja arranhada ou que a perspectiva de rentabilidade seja afetada pela crise
momentânea. As corporações contam a complexidade e fragmentação sociais para
diluir gradativamente a indignação das vítimas e transformar os processos em
contingências racionais, que se arrastarão por anos, sem que haja qualquer
resposta objetiva aos problemas por elas provocados.

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